terça-feira, 2 de novembro de 2010

POEMAS EM PROSA (II)

Fragmentos de Iluminações

III

No bosque há um pássaro, seu canto vos detém e vos faz corar.

Há um relógio que não soa.

Há uma catedral que desce e um lago que sobe.

Há uma pequena carruagem abandonada nas moitas, ou que desce a vereda às carreiras, engalanada.

Há um grupo de pequenos comediantes disfarçados, vistos na estrada pela beira do bosque.


Há, por fim, quando se tem fome e sede, alguém que nos expulse.

IV

Sou o santo, orando no terraço, — como os animais mansos pastam até o mar da Palestina.

Sou o sábio na cátedra sombria. Os ramos e a chuva se arrojam sobre a janela da biblioteca.

Sou o transeunte da grande estrada pelos bosques anões; o rumor das represas abafa meus passos. Vejo, longamente, a melancólica lixívia dourada do poente.

Eu bem seria a criança abandonada no cais que partir para o alto-mar, o pequeno servo que segue a alameda cujo final toca o céu.

As sendas são ásperas. Os montículos se cobrem de giestas. O ar é imóvel. Quão distantes estão os pássaros e as fontes! Isto só pode ser o fim do mundo, avançando.

V

Que me aluguem por fim esta tumba, branca de cal e com as linhas de cimento em relevo — bem fundo na terra.

Apoio meus cotovelos na mesa, a lâmpada ilumina vivamente estes jornais que só releio de idiota, estes livros sem interesse.

Numa distancia enorme acima da minha sala subterrânea, as casas se implantam, as brumas se reúnem. A lama é vermelha ou negra. Cidade monstruosa, noite sem fim!

Menos acima, estão os esgotos. Dos lados, nada senão a espessura do globo. Talvez os abismos de azul, poços de fogo. É nesses planos que talvez se encontrem luas e cometas, mares e fábulas.

Nas horas de amargura, imagino bolas de safira, de metal. Sou senhor do silêncio. Porque uma aparência de clarabóia empalidecerá no canto da abóbada?

Conto

Um Príncipe se envergonhava por jamais haver se dedicado senão à perfeição das generosidades vulgares. Previra espantosas revoluções no amor, e suspeitava que suas mulheres eram capazes de algo melhor que esta tolerância adornada de céu e de luxo. Queria ver a verdade, a hora do desejo e da satisfação essenciais. Fosse ou não uma aberração da piedade, ele o quis. Possuía ao menos um poderio humano suficientemente vasto.

Todas as mulheres que o haviam conhecido foram assassinadas. Que vandalismo no jardim da beleza! Sob o sabre, elas o abençoaram. Ele não encomendou outras novas. — As mulheres reapareceram.

Matou todos que o seguiam, após a caça ou libações. — Todos os seguiam.

Divertiu-se estrangulando os animais de luxo. Fez queimar os palácios. Arrojava-se sobre as gentes e as esquartejava. — A multidão, os tetos de ouro, os belos animais existiam ainda.

Pode alguém extasiar-se na destruição rejuvenescer na crueldade! O povo não murmurou. Ninguém ofereceu a ajuda de seus conselhos.

Galopava altaneiro certa noite. Um Gênio surgiu, de uma beleza inefável, inconfessável mesmo.
De sua fisionomia e de sua postura emanava a promessa de um amor múltiplo e complexo! de uma felicidade indizível, insuportável mesmo! O Príncipe e o Gênio se aniquilaram provavelmente na saúde essencial. Como não teriam podido dela morrer? Morreram juntos então.

Mas este Príncipe morreu, em seu palácio, em uma idade comum. O Príncipe era o gênio. O Gênio era o Príncipe.

A música erudita faz falta a nosso desejo.
(Arthur Rimbaud, Uma temporada no inferno & Iluminações. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. Tradução: Ledo Ivo.)

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