quarta-feira, 4 de novembro de 2009

DIÁRIO DE UM EX-FILHO

Minha mãe odiava livros. Ou melhor: gostava de Iracema, de José de Alencar. Lia o jornal todos os dias, e comentava os principais fatos comigo, em especial os do noticiário político. Esse hábito familiar teve consequências em minha vida, pois levou-me a cometer o terrível equívoco de prestar vestibular para Jornalismo, o que lamento profundamente, todos os dias, esbofeteando meu rosto em frente ao espelho. Por outro lado, a influência materna contribuiu para que eu tivesse uma visão crítica da realidade, que mais tarde me levou a cometer outro equívoco, o da militância política (fui trotsquista dos 18 aos 30 anos de idade, do tipo que distribui panfletos em portas de fábricas, faz comício em defesa da greve geral e coisas assim). Não me arrependo da visão crítica que desenvolvi em relação ao capitalismo, lendo o primeiro volume de O Capital, de Marx; apenas não vejo uma maneira viável de sairmos do inferno. Minha mãe, aliás Dona Zica (apelido de Lázara) era católica devota; reagi a isso com um ateísmo prolongado (eu li, desde criança, livros sobre a Inquisição, as Cruzadas, a conquista do México, o apoio clerical aos regimes de direita, e considerei a Igreja Católica o mais antigo poder totalitário do planeta, ainda que abrigando alguns santos notáveis, como São Francisco de Assis).
Do ateísmo passei ao budismo, após ler a biografia de Bashô escrita por Leminski e conhecer o mosteiro zen Morro da Vargem, em Ibiraçu, no Espírito Santo; mas sobre isso vou falar uma outra hora. Deu para notar que a influência de minha mãe foi marcante em minha vida, até quando me opus a ela, de forma categórica? Ao contrário de meu pai, ela não foi uma intelectual, mas uma secretária das Indústrias Reunidas Matarazzo que conformou-se ao destino de dona de casa. Cuidava de suas plantas com zelo e carinho inigualáveis (eu tenho um pequeno jardim em meu apartamento, que trato com amor e respeito), organizava a casa com um grau de perfeccionismo assombroso e tinha um raciocínio bastante prático, lógico, funcional (enquanto meu pai era emotivo, quixotesco e inconsequente). Soube assimilar um pouco de ambos: o lado prático da mãe e o lado aventureiro do pai, acrescentando minhas próprias descobertas. Hoje eu já posso perdoá-los, e agradecer pelo que fizeram por mim; só não me deram o que não tinham condições de me dar. Às vezes, leva muito tempo para entendermos isso. Às vezes, é tarde demais.

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