terça-feira, 29 de setembro de 2009

GALERIA: ESPADAS (I)


POETAS DE MACAU (I)

Depois de o ministro Lin Zexu ter sido queimado
pelo fumo do ópio
os meus antepassados começaram a emigrar
para a Montanha de Ouro
deixando na terra natal
as avós a roer as saudades no mato de sarça
Mas a vergonha de serem vendidos como cules
terá sido registrada por algum arquivo histórico?

A história, sempre pela estrada de sentido único
ladeada pelas águas em que flutuam cadáveres
Há inumeráveis histórias
para anotar esse facto
Sempre que contemplo com os olhos dos antigos o cair da chuva
aparece o ditador na bruma
empurrando a história do Palácio Imperial
para decapitá-la na praça da Tribuna Meridiana

*

A história é uma doença incurável
que contamina o meu sangue moderno
por isso tenho de engolir
uma grande dose de antibióticos de Einstein
Afinal, foi o combate da Ponte Lu Go que
fez içar a bandeira da defesa na fortaleza
Eu parti para longe
rumo à fogosa floresta tropical da Indochina
onde fui contaminado pela peste incurável do Verão pleno

Acabei por regressar nos anos de solidão
com a direita espinha dorsal
a marcar a minha dignidade
O vento persegue o eco dos meus passos
e os gemidos ecoam nos meus ouvidos
desde o passado, desde o presente

junho de 1982

(Dois poemas de Tao Li, traduzidos ao português por Yao Jingming)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

GALERIA: JEANLOUP SIEFF (VI)


DO LIVRO POETA EM NOVA YORK (XV)


MENINA AFOGADA NO POÇO
Granada y Newburg

As estátuas sofrem com os olhos pela escuridão dos ataúdes,
porém sofrem muito mais pela água que não desemboca.....
que não desemboca.

O povo corria pelas ameias rompendo as varas dos pescadores.
Pronto! As margens! Depressa! E coaxavam as ternas estrelas....
que não desemboca.

Tranquila em minha memória, astro, círculo, meta,
choras pelas bordas de um olho de cavalo....
que não desemboca.

Mas ninguém poderá dar-te distâncias no escuro,
a não ser o limite afilado: porvir de diamante....
que não desemboca.

Enquanto as pessoas buscam silêncios de almofada
você geme para sempre definida em teu anel....
que não desemboca.

Eterna nos finais das ondas que aceitam
combate de raízes e prevista solidão....
que não desemboca.

Já vêm pelas rampas! Levanta-te da água!
Cada ponto de luz te dará uma cadeia!...
que não desemboca.

Mas o poço alarga tuas pequenas mãos de musgo
insuspeitada ondina de tua própria ignorância....
que não desemboca.

Não, que não desemboca. Água fixa em um ponto,
respirando com todos seus violinos sem cordas
na escala das feridas e dos edifícios desabitados.
Água que não desemboca!

Tradução: Claudio Daniel

domingo, 27 de setembro de 2009

GALERIA: JEANLOUP SIEFF (V)


DO LIVRO POETA EM NOVA YORK (XIV)


PANORAMA CEGO DE NOVA YORK

Se não são os pássaros
cobertos de cinza,
se não são os gemidos que golpeiam as janelas da boda,
serão as delicadas criaturas aéreas
que manam o sangue novo pelo escuro inextinguível.
Mas não, não são os pássaros,
porque os pássaros estão a ponto de ser bois;
podem ser rochas brancas com a ajuda da lua
e são sempre garotos feridos
antes que os juízes levantem a tela.

Todos compreendem a dor que se relaciona com a morte,
mas a verdadeira dor não está presente no espírito.
Não está no ar nem na nossa vida,
nem nestes terraços enfumaçados.
A verdadeira dor que mantém as coisas acordadas
é uma pequena queimadura infinita
nos olhos inocentes dos outros sistemas.

Um traje abandonado pesa tanto nos ombros
que muitas vezes o céu os agrupa em ásperas manadas.
E as que morrem de parto sabem na última hora
que todo rumor será pedra e toda trilha pulsação.
Nós ignoramos que o pensamento tem arrabaldes
onde o filósofo é devorado pelos chineses e pelas larvas.
E alguns meninos idiotas encontram nas cozinhas
pequenas andorinhas com muletas
que sabiam pronunciar a palavra amor.

Não, não são os pássaros.
Não é um pássaro o que expressa a turva febre de lagoa,
nem a ânsia de assassinato que nos oprime a cada momento,
nem o metálico rumor de suicidio que nos anima a cada madrugada.
É uma cápsula de ar onde nos dói o mundo inteiro,
é um pequeno espaço vivo ao louco uníssono da luz,
é uma escada indefinível onde as nuvens e rosas esquecem
a gritaria chinesa que ferve pelo desembarcadouro do sangue.

Eu muitas vezes me perdi
para buscar a queimadura que mantém as coisas acordadas
e só encontrei marinheiros largados sobre as varandas
e pequenas criaturas celestes enterradas sob a neve.
Mas a verdadeira dor estava em outras praças
onde os peixes cristalizados agonizavam dentro dos troncos;
praças do céu extranho para as antigas estátuas ilesas
e para a terna intimidade dos vulcões.

Não há dor na voz. Só existem os dentes,
mas dentes que calarão ilhados pelo negro relento.
Não há dor na voz. Aqui só existe a Terra.
A Terra com suas portas de sempre
que levam ao rubor dos frutos.

Tradução: Claudio Daniel

sábado, 26 de setembro de 2009

GALERIA: JEANLOUP SIEFF (IV)


LITERATURA COREANA NA USP

Caros, no dia 07 de outubro, quarta-feira, às 10h, acontecerá um sarau dedicado à literatura contemporânea na Coréia, na Universidade de São Paulo, com a presença dos autores Shin Dal Ja, Lee Ho-cheol e Kwon Oh-Ryong. Na ocasião, haverá também um debate com a participação dos professores Boris Schnaiderman, Moacir Amâncio, Jorge de Almeida e Antonio Menezes, e o pré-lançamento do livro Contos contemporâneos coreanos. A organização do evento é do Grupo de Estudos Coreanos da USP, coordenado pela profa. Yun Jung Im.

Local: sala 260 do prédio de Letras da FFLCH.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

OCUPAÇÃO PAULO LEMINSKI: VINTE ANOS EM OUTRAS ESFERAS







O Instituto Itaú Cultural iniciará no dia 01 de outubro a mostra Ocupação Paulo Leminski: 20 Anos em Outras Esferas, com curadoria de Ademir Assunção. A homenagem ao poeta, tradutor, romancista e compositor curitibano, considerado o autor mais criativo de sua geração pelo mestre Haroldo de Campos, trará inúmeras surpresas, inclusive poemas inéditos do autor de Catatau. Confiram mais informações no blog Espelunca ou no site do Itaú Cultural.

Endereço: Avenida Paulista, 149, Paraíso, São Paulo (SP), próximo à estação Brigadeiro de metrô.

Tel.: (11) 2168 1777

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

GALERIA: JEANLOUP SIEFF (III)


DO LIVRO POETA EM NOVA YORK (XIII)


O REI DO HARLEM

Com uma colher
arrancava os olhos dos crocodilos
e golpeava o traseiro dos macacos.
Com uma colher

Fogo de sempre dormia nas rochas,
e os escaravelhos bêbados de anis
esqueciam o musgo das aldeias.

Aquele velho coberto de flechas
ia ao lugar onde choravam os negros
enquanto rangia a colher do rei
e chegavam os tanques de água apodrecida.

As rosas fugiam pelos fios
das últimas curvas do ar,
e nos montões de açafrão
os meninos machucavam pequenos esquilos
com um rubor de frenesi manchado.

É preciso cruzar as pontes
e chegar ao rubor negro
para que o perfume do pulmão
golpeie-nos a fronte com seu vestido
de cálida pinha.

É preciso matar o louro vendedor de aguardente,
todos os amigos da maçã e da areia,
e é necessário bater com os punhos fechados
nas pequenas judias que tremem cheias de borbulhas,
para que o rei do Harlem cante com sua multidão,
para que os crocodilos durmam em longas filas
sob o amianto da lua,
e para que ninguém duvide da infinita beleza
dos espanadores, raladores, cobres e caçarolas das cozinhas.

Ah, Harlem! Ah, Harlem! Ah, Harlem!
Não há angústia comparável a teus olhos oprimidos,
a teu sangue estremecido dentro do eclipse obscuro,
a tua violência vermelha surda-muda na penumbra,
a teu grande rei prisioneiro, com uniforme de porteiro.

*

A noite tinha uma rachadura e quietas salamandras de marfim.
As garotas americanas
levavam meninos e moedas no ventre,
e os rapazes desmaiavam na cruz da espreguiçadeira.

Eles são.
Eles são os que bebem o whisky de prata junto aos vulcões
e tragam pedacinhos de coração pelas geladas montanhas do osso.

Aquela noite o rei do Harlem, com uma duríssima colher
arrancava os olhos dos crocodilos
e golpeava o traseiro dos macacos.
Com uma colher.

Os negros choravam confundidos
entre guarda-chuvas e sóis de ouro,
os mulatos mascavam gomas, ansiosos por chegar ao torso branco,
e o vento empanava espelhos
e quebrava as veias dos dançarinos.

Negros, Negros, Negros, Negros.
O sangue não tem portas em vossa noite boca acima.
Não há rubor. Sangue furioso por baixo das peles,
viva na espinha do punhal e no peito das paisagens,
sob as pinças e retamas da celeste lua de Câncer.

Sangue que busca por mil caminhos mortes esfarinhadas e cinza de nardos,
céus hirtos, em declive, onde as colônias de planetas
rodam pelas praias com os objetos abandonados.

Sangue que olha devagar com o rabo do olho,
feito de espartos esprimidos, néctares de subterrâneos.
Sangue que oxida o alísio descuidado em um rastro
e dissolve as borboletas nos cristais da janela.

É o sangue que vem, que virá
pelos telhados e terraços, por toda parte,
para queimar a clorofila das mulheres louras,
para gemer ao pé das camas ante a insônia dos lavabos
e estrelar-se em uma aurora de tabaco e sob amarelo.

É preciso fugir,
fugir pelas esquinas e encerrar-se nos últimos pisos,
porque a medula do bosque penetrará pelas frinchas
para deixar em vossa carne um leve rastro de eclipse
e uma falsa tristeza de guante desbotado e rosa química.

*

É pelo silêncio sapientíssimo
quando os camareiros e cozinheiros e os que limpam com a língua
as feridas dos milionários
buscam o rei pelas ruas ou nos ângulos do salitre.

Um vento sul de madeira, oblíquo no lodo escuro,
escarra nas barcas partidas e crava pontilhas nos ombros;
um vento sul que leva
colmilhos, girassóis, alfabetos
e uma pilha de Volta com vespas afogadas.

O esquecimento era expresso por três gotas de tinta sobre o monóculo,
o amor por um só rosto invisível à flor de pedra.
Medulas e corolas compunham sobre as nuvens
um deserto de talos sem uma só rosa.

À esquerda, à direita, pelo Sul e pelo Norte,
se levanta o muro impassível
para o topo, a agulha da água.
Não busqueis, negros, sua greta
para achar a máscara infinita.
Buscai o grande sol do centro
como se fosse uma pinha zumbidora.
O sol que desliza pelos bosques
convicto de não encontrar uma ninfa,
o sol que destrói números e não cruzou nunca um sonho,
o tatuado sol que desce pelo rio
e muge seguido de caimães.

Negros, Negros, Negros, Negros.
Jamais serpente, nem zebra, nem mula
empalideceram ao morrer.
O lenhador não sabe quando expiram
as clamorosas árvores que corta.

Aguardai sob a sombra vegetal de vosso rei
que cicutas e cardos e urtigas turvem últimos terraços.

Então, negros, então, então,
podereis beijar com frenesi as rodas das bicicletas,
colocar pares de microscópios nas tocas dos esquilos
e dançar por fim, sem dúvida, enquanto as flores eriçadas
assassinam nosso Moisés quase nos juncos do céu.

Ah, Harlem, disfarçado!
Ah, Harlem, ameaçado por gente de trajes sem cabeça!
Chega-me teu rumor,
chega-me teu rumor atravessando troncos e elevadores,
através de lâminas cinzentas,
onde flutuam seus automóveis cobertos de dentes,
através dos cavalos mortos e dos crimes diminutos,
através de teu grande rei desesperado
cujas barbas chegam ao mar.

Tradução: Claudio Daniel

GALERIA: JEANLOUP SIEFF (II)


UM POEMA DE MANUEL BANDEIRA


NOITE MORTA

Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.

Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.

No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.

Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.

O córrego chora.
A voz da noite...

(Não desta noite, mas de outra maior)

(Poema do livro Ritmo Dissoluto.)

terça-feira, 22 de setembro de 2009

GALERIA: JEANLOUP SIEFF


CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS

Comecei a ler poesia aos 13 anos, com as Flores do Mal, de Baudelaire, e o Corvo, de Edgar Allan Poe. Meu pai, que sabia de cor os versos de Vou-me embora pra Pasárgada, insistiu para que eu lesse Manuel Bandeira. Confesso que a primeira impressão que tive após ler a Estrela da Vida Inteira foi a de pura e simples indiferença: “não é Baudelaire”, devo ter pensado na época, “não é Rimbaud, nem William Blake, nem Maiakovski”. Eu não entendia como alguém que escrevia versos como “Para cá, para lá... / Para cá e... / — O novelozinho caiu” era considerado um grande poeta. Mesmo os versos de Pasárgada, que levavam meu pai às lágrimas, eu achava banais e previsíveis. Claro, entre o final da adolescência e as aulas de literatura brasileira no cursinho eu pude aceitar a sua importância histórica, de “São João Batista do Modernismo”, e, mais do que isso, um homem de cultura enciclopédica, bom ensaísta, crítico, tradutor e raro conhecedor de poesia latino-americana contemporânea. Sem dúvida, um dos maiores intelectuais que tivemos em nossa literatura.

Porém, relendo a Estrela da Vida Inteira, em diversas fases de minha vida, até os dias de hoje, noto que minha opinião sobre a poesia de Manuel Bandeira pouco mudou: não gosto do uso de diminutivos, que, a meu ver, tornam os versos tolos (“Santa Teresa não, Teresinha... / Teresinha do Menino Jesus”); irritam-me as “ternurinhas” do poeta com o seu porquinho da índia, o tom ingênuo-sentimental de boa parte de sua produção (ele foi um herdeiro da poesia romântica e simbolista, como Cecília Meireles), a coloquialidade prosaica, as fotografias de cenas cotidianas, inspiradas em crônicas de jornal... tudo isso, sempre achei muito, muito chato, algo que não me diz respeito, simplesmente.

Eu curtia sim, e curto até hoje as invenções de Oswald de Andrade (em especial a prosa poética de Memórias Sentimentais de João Miramar), a música dissonante de Raul Bopp (Cobra Norato), as imagens poéticas de Murilo Mendes (Siciliana e Tempo Espanhol, sobretudo), alguns versos da Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, a Rosa do Povo e a Máquina do Mundo, de Drummond... mas, de Manuel Bandeira, eu poderia fazer uma antologia com apenas 30 poemas (sendo o meu favorito, até hoje, o Pneumotórax, com a sua deliciosa crueldade). Claro que não é qualquer um que escreve poemas como Evocação do Recife, e escrever apenas um bom poema pode ser a justificativa de toda uma vida de trabalho literário. Agora, não o considero um poeta da mesma estatura que Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

GALERIA: ARTE BUDISTA (VIII)


UM POEMA DE CECÍLIA MEIRELES (fragmentos)

Sou rio, serpente,
corro para onde quero, sozinha,
para longe corro
Sou perfume de óleo fervente,
ervas, flor, semente
em viva brasa.
Do meu fogo morro.
Não há fogo de sol nascente,
não há fogo de sol ardente
que se compare à labareda minha.
Olha os meus braços que seguem na minha frente,
finas cordas de seda muito seguras,
olha o meu vasto cabelo sombrio,
que é uma vela redonda de noite e de vento
Olha o meu corpo como um navio
cortando as horas escuras
e a louca espuma fosforescente...
Olha na minha boca o mel das tamareiras...

(...)

Minhas pernas são altas, leves e ligeiras
são minhas pálpebras tendas franjadas
e a sombra das caravanas se deita nas minhas olheiras.

Há nos meus olhos verdes luas levantadas
que escutam passar sedentas feras.

(Do livro Oratório de Santa Maria Egipcíaca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006)

GALERIA: ARTE BUDISTA (VII)


domingo, 20 de setembro de 2009

UM POEMA DE WALLACE STEVENS


A POESIA É UMA FORÇA DESTRUTIVA
Isto é que é a miséria,
Nada ter no coração.
É ter ou nada.

É uma coisa ter,
Um leão, um boi no seu peito,
Senti-la respirando ali.

Corazón, cachorro bravo,
Bezerro, urso de pernas tortas,
Ele prova seu sangue, não cospe.

É como um homem
No corpo de uma fera violenta.
São seus os músculos dela...

O leão dorme ao sol.
O nariz entre as patas.
Ela pode matar um homem.

Tradução: Ronaldo Brito

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

GALERIA: ARTE BUDISTA (VI)


TRÊS POEMAS DE AUGUST STRAMM

CAMPO DE BATALHA

Torrões moles afrouxam o ferro
Sangues filtram flocos de limo
Crostas migalham
Carnes lamam
Amamentar estua nos destroços
Entrematanças
Chispam
Olhos de crianças


ASSALTO

De todos os ângulos terrores uivam querer
Ácida
Açoita
A vida
Ante
Si
Aqui
A morte arfante
Os céus farrapam
O horror ceifa selvagante os cegos


SONHO

Pelos arbustos estrelas se enroscam
Olhos submergem fumam afundam
Murmuram balbúcios
Flores fendem
Olores instilam
Borrascas inundam
Ventos vagam tragam apagam
Lenços se rasgam
Cair assusta na noite funda.

Traduções: Augusto de Campos

(Do livro Poemas-Estalactites. São Paulo: Perspectiva, 2009)


August Stramm (1874-1915), poeta alemão. Formado em Filosofia na universidade de Halle, trabalhou como inspetor dos correios em Bremen. Convocado para lutar na I Guerra Mundial, faleceu em combate na frente russa. O poeta, que integrou o grupo da revista literária Der Sturm, foi um dos autores mais talentosos e inventivos do expressionismo alemão, abandonando a métrica e fraturando a sintaxe de forma radical. Além da poesia, escreveu também para o teatro. No Brasil, foi traduzido por Augusto e Haroldo de Campos (este último publicou um ensaio sobre o poeta, no livro O Arco-Íris Branco).

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

GALERIA: ARTE BUDISTA (V)


UM POEMA DE GUENÁDI AIGUI

NUVENS

Nesta
aldeia de ninguém
trapos indigentes nas cercas —
teréns de ninguém.

E sobre elas nuvens de ninguém,

e adiante — anúncios sobre a infância:
crianças esquálidas, bravias;

e música sobre o nu
de mulheres hunas e citas;

e aqui, no leito, ao rés dos olhos,
algures, junto a pestanas úmidas,
alguém morria e chorava,

enquanto eu compreendia
de uma vez por todas — era

minha mãe.

1960

Tradução: Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman

terça-feira, 15 de setembro de 2009

GALERIA: ARTE BUDISTA (IV)


UM POEMA DE WERNER HERZOG

Binho-Moinho mora
do lado de lá da lagoa
Ali onde está o sapo
sentado sondando a mosca.

Às vezes o único amigo
de Binho é João-Trovão,
que a vida toda só
meteu os pés pelas mãos.

Com medo de falar,
Binho bate na boca.
E assim, há anos,
tudo corre na santa paz.

E nos meses sem a letra R,
pontualmente com a noite,
desce sobre a lagoa.

Tradução: Lúcia Nagib

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

GALERIA: ARTE BUDISTA (III)




UM POEMA DE MIKLÓS RADNÓTI

SEXTA-FEIRA

O abril enlouqueceu,
O sol sequer raiara.
Fiquei mais sóbrio, numa
semana: enchendo a cara.

O abril enlouqueceu,
geando, hoje, te dana
Alguém escreve e trai o
país cada semana.

O abril enlouqueceu,
rangia a neve e, quando
fugiam, todos tinham
seus corações rachando.

O abril enlouqueceu
e ulula sobre o gelo.
Partiram três amigos.
Jamais voltei a vê-los.

O abril enlouqueceu.
Choveu, por vezes, forte.
Um deles vive doido
e ignora a própria sorte.

O abril enlouqueceu
e o rio encheu depressa.
Um outro já não vive:
dois tiros na cabeça —

morreu há quatro dias.
Um último foi preso
na guerra. Frutas gelam.
Sorrio com desprezo.

Tome cuidado — escuto,
e vingue-se de tudo...

18.5.1941

Tradução: Nelson Ascher


Nota sobre o autor: Miklós Radnóti nasceu em Budapeste, em 1909. Órfão de pai aos 12 anos (a mãe morreu durante o parto), foi criado por tios ricos. Estudou Administração e Técnica têxtil. Poeta e tradutor de poesia clássica e moderna, viajou a Paris, onde conheceu poesia de Apollinaire, que influenciou sua produção. Judeu e esquerdista, fez oposição ao governo do almirante Horthy, de tendência fascista, e escreveu uma série de éclogas sobre a Guerra Civil Espanhola. Após a invasão de seu país pelo exército alemão, foi internado em campos de trabalhos forçados. Faleceu em 1944, executado durante a II Guerra Mundial. É um dos mais notáveis poetas contemporâneos do idioma húngaro. No Brasil, alguns de seus poemas foram traduzidos por Paulo Ronái e por Nelson Ascher.

domingo, 13 de setembro de 2009

GALERIA: ARTE BUDISTA (II)


SÓROR JUANA INÉS DE LA CRUZ (IV)

Piramidal, funesta, de la tierra
nacida sombra, al cielo encamina
de vanos obeliscos punta altiva,
escalar pretendiendo las estrellas;
si bien sus luces bellas
exentas siempre, siempre rutilantes,
la tenebrosa guerra
que con negros vapores le intimaba
la vaporosa sombra fugitiva
burlaban tan distantes,
que su atezado ceño
al superior convexo aún no llegaba
del orbe de la diosa
que tres veces hermosa
con tres hermosos rostros ser ostenta,
quedando sólo dueño
del aire que empañaba
con el aliento denso que exhalaba;
y en la quietud contenta
de imperio silencioso,
sumisas sólo voces consentía
de las nocturnas aves
tan oscuras tan graves,
que aún el silencio no se interrumpía.
Con tardo vuelo, y canto, del oído
mal, y aún peor del ánimo admitido,
la avergonzada Nictímene acecha
de las sagradas puertas los resquicios
o de las claraboyas eminentes
los huecos más propicios,
que capaz a su intento le abren la brecha,
y sacrílega 11ega a los lucientes
faroles sacros de perenne llama,
que extingue, sino inflama
en licor claro la materia crasa
consumiendo; que el árbol de Minerva
de su fruto, de prensas agravado,
congojoso sudó y rindió forzado.


(Versos iniciais do Primero sueño de Sóror Juana Inés de la Cruz. Primero sueño y otros textos: Buenos Aires, Clásicos Losada, 2004.)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

GALERIA: ARTE BUDISTA (I)


SÓROR JUANA INÉS DE LA CRUZ (III)

"Em 1695, morria no Convento de São Jerônimo, Nova Espanha (hoje México), a monja, poeta e intelectual Sor Juana Inés de la Cruz, aos 47 anos de idade, um ano depois de ter sucumbido às pressões eclesiásticas do tempo e renunciado definitivamente ao mundo das letras. Deixava, para a sociedade da época e para a tradição literária hispano-americana dos séculos subseqüentes, não apenas uma obra prismática, composta de poemas, peças de teatro, escritos filosóficos, cartas e discussões teológicas, mas também uma lição de ousadia intelectual e lucidez crítica.

Além de ter dialogado, enquanto poeta, com os principais representantes do barroco de língua espanhola, ter aproveitado criativamente todas as formas literárias disponíveis e inventado outras — o que atesta a sua indiscutível importância na história da poesia colonial do continente — Sor Juana desempenhou um papel importante na defesa, em pleno século XVII, do direito de as mulheres terem acesso irrestrito aos livros e ao conhecimento. Não bastasse isso, ainda teve a coragem de discutir e desafiar - com uma habilidade argumentativa até então considerada privilégio exclusivo dos homens letrados - as idéias de um dos mais consagrados intelectuais do barroco ibero-americano: Pe. Antônio Vieira.

Tal desafio deu-se através da famosa Carta Athenagórica, de 1690, enviada pela monja mexicana ao então bispo de Puebla, Manuel Fernández de Santa Cruz, seu interlocutor intelectual. Nela, realizou uma minuciosa leitura crítica do Sermão do Mandato, desmontando, ponto por ponto, os argumentos teológicos do padre português em torno das 'finezas de Cristo'. Por motivos ainda nebulosos, essa carta foi publicada pelo destinatário ao lado de outra carta-resposta que o próprio bispo teria escrito sob o pseudônimo feminino de Sor Filotea de la Cruz, na qual discorda veementemente da freira, não sem antes elogiar suas qualidades retóricas. Abstendo-se de discutir os argumentos teológicos apresentados na Carta Athenagórica, o bispo de Puebla levanta dúvidas quanto à vocação religiosa da freira, visto que para ele, a dedicação por ela dispensada aos livros mundanos, à poesia e ao entedimento eram o atestado irrefutável de seu distanciamento das Sagradas Escrituras. A publicação dessas cartas foi o início de toda uma polêmica que ultrapassou as fronteiras do vice-reinado da Nova Espanha e adquiriu considerável repercussão nos meios clericais da Península Ibérica. E que levou a monja barroca a escrever sua fabulosa Resposta a Sor Filotea de la Cruz, uma espécie de relato autobiográfico, no qual faz a defesa apaixonada de sua vocação e de seu direito de exercer o ofício intelectual. Para isso, faz o elogio do saber multidisciplinar e da prática poética, retraça sua própria trajetória no mundo das letras e argumenta a favor das 'mulheres doutas' de todos os tempos. Atrai, com essa nova carta, a animosidade eclesiática, é abjurada pelo seu próprio confessor e, pressionada por vários prelados, acaba por se render, dois anos depois, ao silêncio e ao ostracismo.

Durante muito tempo, pelo menos até o final do século XIX, sua obra — publicada em três tomos, com última reedição em 1725 — também ficou silenciada. Sua figura ainda permaneceu, simbolicamente, através de alguns relatos biográficos, entre eles o do Pe. Jesuíta Diego Calleja, que se empenhou em ‘salvar’ a imagem da monja, relevando as suas virtudes religiosas e ocultando tudo o que pudesse obscurecer sua reputação. Procedimento esse repetido por vários escritores católicos. Foi necessário que uma mulher, Dorothy Schons, trouxesse à tona, no início deste século, o lado subversivo de Sor Juana e a revalorizasse enquanto mulher e intelectual, abrindo caminho para sucessivos, embora ainda precários, estudos sobre a sua vida e sua obra.

Não obstante tenham aparecido, ao longo deste século, importantes textos críticos e biográficos com a nítida preocupação de redimensionar a contribuição da monja mexicana para as letras hispano-americanas, pode-se dizer que o trabalho que realmente colocou Sor Juana no circuito cultural da América Latina e do mundo, foi o monumental livro de Octavio Paz, Sor Juana Inés de la Cruz o las trampas de la fe, publicado em 1982.

Paz, que sempre manteve uma relação dialógica com a tradição, preferindo lê-la sob o prisma das idéias de ruptura e de mobilidade (‘uma tradição que se petrifica se prolonga até a morte’, diz) vai, nessa obra, construir uma Sor Juana que se destaca tanto no contexto da literatura barroca de língua hispânica quanto no cenário da moderna poesia ocidental. Além de criar para si mesmo (naquela perspectiva de Borges, no Kafka y sus precursores) a sua precursora hispano-americana que, enquanto tal, nada fica devendo aos modernos poetas europeus, visto que o próprio autor a compara a eminentes representantes da "tradição da ruptura", como Mallarmé e Valéry."

(Excertos do ensaio O barroco à luz da modernidade: sor Juana Inés de la Cruz e Octavio Paz, de Maria Esther Maciel. Leiam o texto integral na página http://www.jornaldepoesia.jor.br/bh5cruz.htm)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

GALERIA: A IMPORTÂNCIA DA LEITURA


SÓROR JUANA INÉS DE LA CRUZ (II)

DOIS SONETOS

Al que ingrato me deja, busco amante;
al que amante me sigue, dejo ingrata;
constante adoro a quien mi amor maltrata;
maltrato a quien mi amor busca constante.

Al que trato de amor, hallo diamante,
y soy diamante al que de amor me trata;
triunfante quiero ver al que me mata,
y mato al que me quiere ver triunfante.

Si a éste pago, padece mi deseo;
si ruego a aquél, mi pundonor enojo:
de entrambos modos infeliz me veo.

Pero yo, por mejor partido, escojo
de quien no quiero, ser violento empleo,
que, de quien no me quiere, vil despojo.

* * *

Amor empieza por desasosiego,
solicitud, ardores y desvelos;
crece con riesgos, lances y recelos;
susténtase de llantos y de ruego.

Doctrínanle tibiezas y despego,
conserva el ser entre engañosos velos,
hasta que con agravios o con celos
apaga con sus lágrimas su fuego.

Su principio, su medio y fin es éste:
¿pues por qué, Alcino, sientes el desvío
de Celia, que otro tiempo bien te quiso?

¿Qué razón hay de que dolor te cueste?
Pues no te engañó amor, Alcino mío,
sino que llegó el término preciso.

(Poemas de Sóror Juana Inés de la Cruz, do livro Primero sueño y otros textos. Buenos Aires: Clásicos Losada, 205)

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

SÓROR JUANA INÉS DE LA CRUZ






“São muitos os enigmas de sóror Juana Inés de la Cruz: os da vida e os da obra. É claro que existe uma relação entre a vida e a obra de um escritor, mas ela nunca é simples. A vida não explica inteiramente a obra e esta tampouco explica a vida. Entre uma e outra há uma zona vazia, uma fenda. Há alguma coisa que está na obra e não está na vida do autor: isso é o que se chama criação e invenção artística e literária. O poeta, o escritor, é o olmo que, sim, dá peras. (...) Para o padre Calleja, a obra da religiosa não é senão uma alegoria de sua vida espiritual; para Pfandl, é a máscara de sua neurose. De uma ou outra maneira, sua obra deixa de ser literária: o que estes dois críticos nela lêem é a transposição de sua vida. Uma vida santa para Calleja e um conflito neurótico para Pfandl. A obra transforma-se em hieróglifo da vida; na verdade, como obra, se evapora. (...) Contudo, embora nos pareça única — e assim é de fato — é evidente que a poesia de sóror Juana está relacionada com um grupo de obras, umas contemporâneas e outras vindas do passado, da Bíblia e dos Pais da Igreja até Góngora e Calderón. Eles constituem uma tradição e por isso surgem aos olhos do escritor como modelos a serem imitados ou rivais a serem igualados. O estudo da obra de sóror Juana imediatamente nos coloca em relação com outras, e estas com o ambiente intelectual e artístico de seu tempo, ou seja, com tudo isso que constitui o que se chama ‘o espírito de uma época’. O espírito e alguma coisa mais que o espírito: o gosto. Entre a vida e a obra encontramos um terceiro termo: a sociedade, a história. Sóror Juana é uma individualidade poderosa e sua obra possui inegável singularidade; ao mesmo tempo, a mulher e seus poemas, a freira e a intelectual se inserem numa sociedade: a Nova Espanha do final do século XVII.

Não pretendo explicar a literatura por meio da história. O valor das interpretações sociológicas e históricas das obras de arte é sem dúvida limitado. Ao mesmo tempo, seria absurdo fechar os olhos diante desta verdade elementar: a poesia é um produto social, histórico. Ignorar a relação entre sociedade e poesia seria um erro tão grave como ignorar a relação entre a vida do escritor e a sua obra. Mas Freud já nos prevenia: a psicanálise não pode explicar inteiramente a criação artística; e da mesma forma que existem na arte e na poesia elementos irredutíveis, que resistem à explicação psicológica e biográfica, existem elementos irredutíveis à explicação histórica e sociológica. (...) Estamos diante de realidades complementares: a vida e a obra desenvolvem-se numa dada sociedade e, assim, são inteligíveis somente dentro de sua história; por sua vez, essa história não seria aquela que é sem a vida e a obra de sóror Juana. Não basta dizer que a obra é um produto da história; é preciso acrescentar que a história também é um produto dela.”

(Octavio Paz, in Sóror Juana Inés de la Cruz: as armadilhas da fé. São Paulo: Mandarim, 1998.)

GALERIA: ANTICRISTO, DE LARS VON TRIER


terça-feira, 8 de setembro de 2009

LETRA NEGRA (fragmento)

esta é a maneira de sermos brutais,
com a aspereza
de quem caminha
pelas ruas,
mascando lascas.

não preciso dar explicações
com palavras de madeira,
porque sou impuro
e espontâneo
como a fera.

esta é minha sombra magra, confesso,
estes, os meus passos desordenados.

nenhuma estrela para definir o dramatismo da noite
ao longo da jornada,
nem os ramos
de uma árvore inclinada.

quem considere imprecisa a descrição,
que escreva o seu próprio
rascunho,
com a fúria
violeta
do escaravelho.

sem contar nove vezes
menos um eco,
sigo minha jornada bípede,
de energúmeno.

nada aqui faz sentido para os meus lábios
vociferantes;

e como não venero
deuses de esterco,
nem as clausuras
cíclicas da história,

sigo andando
com minhas omoplatas,
minhas axilas,
meu caralho,

minha testa
desenhada
com símbolos alquímicos,

e um poema
escrito para ninguém
nas linhas torcidas
de meus pulsos.

(Fragmento do poema longo Letra Negra, de Claudio Daniel, que será publicado em breve pelo selo Arqueria.)

GALERIA: O CLÃ DAS ADAGAS VOADORAS

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Caros, confiram a minha entrevista para o programa Perfil Literário, comandado pelo Oscar D’Ambrosio para a Rádio Unesp em http://aci.reitoria.unesp.br/radio/perfil_literario.

Quem quiser conhecer um pouco da novíssima poesia feita no Chile e na Venezuela pode acessar o blog Me Urbe, Antología Arbitraria, editado por Gladys Mendía e Ennio Tucci.

Aliás, a Gladys é também editora da revista literária latino-americana Los Poetas del 5. Confiram os endereços na lista de links ao lado.

domingo, 6 de setembro de 2009

GALERIA: GILDA

ESCRITO EM FLOR

paisagem musical
onde o amarelo
dá sentido ao vermelho:
esta é uma canção
de amor
.

*
lábio (pétala)
submerge
em topázio-tigre,
até sangrar as ilhas
do desejo.

*
esfinge do espelho
ou cegueira:
(real) imaginária
.

*
uma flor (a lebre), partículas do mundo nas retinas.

*
cada abelha sonha
uma rosa imantada
.

*
violetas indagam
onde trópicos noturnos,
ritmos bruxos,
areias núbeis
de contato.

*
no avesso das pálpebras:
onde ver o porto
da viagem,
do mistério ao desatino
.

Para Reginabhen, 2003/04

(Poema de Claudio Daniel, do livro Fera Bifronte. Bauru: Lumme, 2009)

sábado, 5 de setembro de 2009

GALERIA: A RODA DA FORTUNA

PARTITURA

Perplexidade, raios de um sol

que redesenha seu centro;

essa matéria tão delicada,

ferozes epitélios da flor;

deslizando das pupilas,

revoluta, para outro mar,

após tingir o flanco da noite.

Fosse apenas o perambular

em outra relva, seria tema

de chanson; dissociada de mim,

reclinada em lua minguante,

seria musa de retrato fauvista,

excedendo o rubro tigrino.

De todo modo, um dia vou

felinizá-la em partitura.

(Poema de Claudio Daniel, publicado no livro Fera Bifronte. Bauru: Lumme Editor, 2009)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

GALERIA: KILL BILL


LEOA, CLAVÍCULA

Jovem negra pinta de azul-violeta as pontas dos mamilos.

Há jaguares
sob as unhas.

Mímica
de esfinge
nos pulsos.

Núbia voz animal raio-de-pedra golpeia nudez janaína
reflexo de híbrida
orquídea
ou seio-
noite-
flor-
que incandesce.

(Três colares
de relva;
riscos
gravados
na rocha,
sortilégio.)

(Pintura: mascar o carvão leonino da desértica
epiderme,
ruminando
arenoso
até cantar
a clavícula.)

(Poema de Claudio Daniel, do livro Figuras Metálicas. São Paulo: Perspectiva, 2004.)

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

GALERIA: RAINHA MARGOT


POESIA BRASILEIRA NO MÉXICO

A antologia Alguna poesia brasileña, organizada por Rodolfo Mata e Regina Crespo, acaba de ser publicada no México, pela editora da UNAM. O livro, com cerca de 400 páginas, reúne poemas de Roberto Piva, Sebastião Uchoa Leite, Waly Salomão, Paulo Leminski, Orides Fontela, Ana Cristina César, Nelson Ascher, Josely Vianna Baptista, Claudio Daniel, Ricardo Aleixo e Claudia Roquette-Pinto, entre outros. A seleção de autores e textos, generosa e criteriosa, fornece um amplo quadro das diversas tendências estéticas que surgiram no Brasil nos últimos 50 anos.

GALERIA: BLUE VELVET


terça-feira, 1 de setembro de 2009

DIÁRIO DE UM SAUDOSISTA

Pertenço a uma geração que nos anos 80 frequentava cineclubes para assistir filmes de arte europeus e circulava à noite pelo Bexiga, que tinha espaços interessantes como a Livraria Pau-Brasil, o Madame Satã, o Carbono 14 (onde assisti pela primeira vez o filme The Wall, do Pink Floyd), além de bares, restaurantes e pizzarias. Todo mundo fumava. Era uma época sem internet ou telefone celular, mas havia jornalismo crítico e de qualidade (como esquecer as matérias de Claudio Abramo e Maurício Tragtemberg na Folha de S. Paulo, ou o suplemento Folhetim, que saía aos domingos, sempre publicando poemas de Augusto de Campos, Paulo Leminski, José Paulo Paes e outras feras?).

Editoras como a Brasiliense, a Max Limonad e a L&PM publicavam, pela primeira vez no Brasil, livros da geração Beat, como On the Road, de Jack Kerouac, Uivo & Outros Poemas, de Allen Ginsberg, e ainda autores malditos como Antonin Artaud. No teatro, era possível assistir a peças como O Percevejo, de Maiakovski, com direção de Luís Antônio Corrêa. O mais belo espetáculo que vi até hoje.

A música brasileira viveu uma renascença criativa, com a Vanguarda Paulista de Arrigo Barnabé, Tetê Espíndola e Itamar Assumpção, que se apresentavam em lugares como o Lira Paulistana (o fato curioso é que quase todos eles eram paranaenses radicados em Sampa). Quando ouvi pela primeira vez Clara Crocodilo fiquei fascinado com a mistura de música atonal, ópera, performance e linguagem de histórias em quadrinhos; esse disco, para mim, é o momento mais radical e inventivo da MPB desde o Araçá Azul, de Caetano Veloso (não por acaso, os dois compositores se apresentaram juntos no programa Mocidade Independente, então capitaneado por Nelson Motta na Bandeirantes. Imaginem um programa de tevê dedicado à música de qualidade, poesia, cinema, sem apresentar modelos anoréxicas ou trogloditas musculosos; é difícil imaginar algo assim hoje em dia, né?).

Isto sem falar dos shows da série Fábrica do Som, que aconteciam no Sesc Pompéia e eram transmitidos pela TV Cultura: num deles, dedicado aos 50 anos de Augusto de Campos, houve uma emocionante homenagem ao poeta, com números musicais de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Arrigo Barnabé, Eliete Negreiros, Tetê Espíndola, enfim, só a fina flor da música brasileira na época.

Claro que éramos todos comunistas.

Sonhávamos em transformar o PT num partido revolucionário, que derrubaria a ditadura militar e implantaria o socialismo no Brasil. Eu e meus amigos usávamos a estrelinha vermelha do PT na jaqueta, junto ao broche do sindicato Solidariedade, que faria a revolução política na Polônia, substituindo a burocracia stalinista por uma democracia operária.

Sonhos de uma noite de verão...

Estudei jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, ali no prédio da Gazeta, na Avenida Paulista, porque acreditava que era possível fazer um jornalismo investigativo, que fosse a fundo na denúncia das injustiças sociais. Nunca pensei em trabalhar numa assessoria de imprensa para escrever releases de uma nova marca de xampu ou de sabonete hidradante. Nunca pensei que o jornalismo iria morrer, transformado nessa coisa escrota que é a revista Veja.

Pertenço a uma geração que acreditou em utopias. Que foi às ruas em 1984 exigir eleições diretas para presidente da república. Que fez oposição à "Nova República" de Tancredo e Sarney, distribuindo panfletos convocando greves e ocupações de fábricas. Que exigiu o impeachment de Fernando Collor de Mello. Que ouvia Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, lia os beats, Antonin Artaud, Poesia Concreta e Leon Trotsky.

Pertenço a uma geração que era apaixonada pelo futuro. E este não é o futuro que a gente sonhava.

Não mesmo.