quinta-feira, 30 de julho de 2009

ONTEM E HOJE

Caros, o poeta Augusto de Campos escreveu certa vez, no livro Verso Reverso Controverso, que “o novo que foi novo é tão novo quanto o mais novo novo”.

Isto significa que uma canção do século XII do poeta-músico provençal Raimbaut d’Aurenga, por exemplo, não é menos nova que uma canção de Arnaldo Antunes.

Porque o grau de informação nova de uma obra de arte não é determinado pelo ano em que foi criada, e sim pela sua incorporação (ou não) em nosso repertório cultural, em nossa sensibilidade.

Quando ouvimos uma canção de Arnaut Daniel, ela nos surpreende por vários motivos: pela riqueza do texto (e a inusitada construção de rimas, como em L’aura Amara), pela entonação, ritmo, instrumentação, pelo modo como palavras e música são combinados, enfim, por todos os elementos que formam a canção.

Do mesmo modo, ficamos surpresos quando ouvimos a música do teatro nô ou cantos tibetanos. Ou uma composição de Pixinguinha. Ou um coral de Bach. Ou uma canção de Caetano Veloso, do disco Araçá Azul, por exemplo.

Não digo isso para dizer que o passado é melhor que o presente, mas para afirmar que a informação nova é aquela que ainda hoje causa estranheza, porque não foi totalmente assimilada.

Já uma música composta hoje, mesmo sendo de boa qualidade, pode não ter nenhuma informação estética nova, se apenas repete ritmos, melodias, estilos e formações instrumentais que todos estamos carecas de conhecer.

Por essas e outras que não podemos entender a arte, qualquer arte, a partir do tempo histórico apenas; caso contrário, não faria sentido algum ler Homero ou Shakespeare hoje, se eles se referem a épocas e países tão diferentes dos nossos.

Se lemos esses autores hoje é porque eles ainda têm muito o que dizer, tanto no sentido referencial (os temas básicos do amor, da morte, da luta, do sofrimento e da transcendência são atemporais) quanto no sentido estético.

Grandes artistas (que Pound chamava de inventores) vencem o Senhor Tempo e são sempre atuais, porque inesgotáveis: alguém já conseguiu exaurir tudo da Divina Comédia de Dante? Ou dos Lusíadas de Camões?

Já um poema meia-boca, que lemos a primeira vez e basta, como os de Adília Lopes, Cacaso ou Francisco Alvim, não trazem nenhuma informação nova, e por isso são dispensáveis.

O que importa, a meu ver, é buscar a informação nova tanto no passado quanto no presente, tanto nos autores novos quanto nos clássicos, dentro da visão que Haroldo de Campos chamava de sincrônica.

Valorizar apenas o passado e dizer que nada de bom existe hoje é sem dúvida uma atitude míope ou reacionária; mas olhar apenas o presente e deixar de lado o que há de mais radical e inventivo na tradição é tolice.

Eu não abro mão de ler sempre Matsuo Bashô, Maiakovski, Li T'ai Po, Helder, Celan, Safo, João Cabral, Lezama Lima, e nem por isso deixo de me entusiasmar por Camila Vardarac, poeta carioca de 21 anos, ou Nicollas Ranieri, poeta mineiro de 18 anos, ambos mais amadurecidos do que muitos poetas de minha geração.

Leio apenas aquilo que me ensina algo que eu ainda não sei; o poema que tem a capacidade de sempre me acrescentar alguma coisa, não importa se escrito neste ano ou no segundo milênio antes de Cristo.

Arte não tem idade. Tem (ou não) qualidade estética. Essa é a questão.

UM POEMA DE LEWIS CARROLL

ACERTE OU ERRE
(Pares de premissas em busca de conclusões)

Nenhum careca necessita pente;
Nenhum lagarto tem cabelo.

Alfinetes não são ambiciosos;
Agulhas não são alfinetes.

Algumas ostras estão caladas;
Pessoas caladas não são divertidas.

Rãs não escrevem livros;
Algumas pessoas usam tinta para escrever livros.

Certas montanhas são intransponíveis;
Todos os estilos podem ser transponíveis.

Nenhuma lagosta é insensata;
Nenhuma pessoa sensata espera impossibilidades.

Nenhum fóssil pode ser em amor cruzado;
Uma ostra pode ser em amor cruzada.

Um homem prudente evita hienas;
Nenhum banqueiro é imprudente.

Nenhum sovina é altruísta;
Só os sovinas guardam cascas de ovo.

Nenhum militar escreve poesia;
Nenhum general é civil.

Todas as corujas são satisfatórias;
Certas desculpas são insatisfatórias.

Tradução: José Lino Grünewald

DO LIVRO POETA EM NOVA YORK (XII)


A AURORA DE NOVA YORK

A aurora de Nova York tem
quatro colunas de lodo
e um furacão de pombas negras
que chapinham nas águas apodrecidas.

A aurora de Nova York geme
por imensas escadarias
buscando entre as arestas
nardos de desenhada angústia.

A aurora chega e ninguém a recebe em sua boca
porque ali não há amanhã nem esperança possível:
às vezes as moedas em enxames furiosos
perfuram e devoram meninos abandonados.

Os primeiros que saem compreendem com seus ossos
que não haverá paraísos nem amores desfolhados;
sabem que vão ao lodo de números e leis,
aos jogos sem arte, a suores sem fruto.

A luz é sepultada por cadeias e ruídos
no impudico repto de ciência sem raízes.
Pelos bairros há pessoas que vacilam insones
como recém-saídas de um naufrágio de sangue.

Tradução: Claudio Daniel

terça-feira, 28 de julho de 2009

UMA FLECHADA CERTEIRA






Caros, a editora Arqueria, coordenada pela poeta Virna Teixeira, que publica plaquetes de poesia de autores brasileiros atuais e traduções de poetas estrangeiros com qualidade gráfica impecável, já tem um site. Anotem o endereço: http://arqueria.wordpress.com/. Entre outros títulos, a Arqueria publicou Quando o meu generoso coração falhar, de Horácio Costa, Love is all, de Daniela Ramos, e Como suturar lembranças, da própria Virna Teixeira.

TRÊS POEMAS DE CARLOS ROBERTO GÓMEZ BERAS


TESTIMONIO DE OTOÑO 1

En la escasez
de su tierra
la encontré
silenciosa
como una alhaja
desde siempre
extraviada
y opaca
como uma moneda
en el fondo
del agua.


BAJO LOS ROBLES

Sin sentido ya.
Bajo la sombra de un silencio
cobijados
indefensos
como esperando el final de este poema
fabricamos vidas ajenas
y besos de húmedas maderas.


SIN RASTRO

Entre sombra y sombra
sucede en un instante
la historia de tu boca.
Porque el tiempo no es ya
un río en Éfeso
y un beso tuyo dura apenas
lo que una cicatriz
sobre la piel del agua.


(Do livro Aún —1992-1989. Santo Domingo: Isla Negra, 2007)

ME SEGURA QU’EU VOU DAR UM TROÇO

O bafo dos dentes do dragão. O bafo da boca da besta. O bafo da boca do falso profeta. Sinal nas tetas e nas mãos. A segunda morte. Os novos céus e a nova terra. A cidade de ouro puro semelhante a vidro transparente. Ave imunda. A árvore da vida da nação contaminada. Eis que faço novas todas as coisas. Quem vencer herdará todas as coisas. A queda da babilônia — a visão da grande prostituta assentada sobre a besta. Ballet miserável — mendigos se jogando aos pés dos doadores de esmola: expondo os cotos: proxenetas: putas: passadores de fumo: capitães de fragata ou seja cafetães de gravata: pivetes do Cacique: camelôs às voltas com o rapa: catadores de comidas nas latas de lixo: o grotesco e a caricatura do pitoresco: o oferecimento total: obsequiosidades de colonizadores: purulências, fezes, secreções, pus, mijo, lepra. Décor: parede feita de baratas nos Alagoas. Volta ao Ballet: exposição pública de mercadorias: barbeiros fazendo barbas ao ar livre: jogadores de dominó vestidos de pijamas: liame imediato com o sobrenatural no candomblé: acarajé fazendo na hora com pibigás em plena rua. Desintegração. Como juntar o continente americano ao continente asiático numa política de 3º. Mundo?

Am = saque de 500 anos apenas. Os trópicos vagos e os trópicos lotados. Feira brasileira e bazar oriental.

Alegres tópicos: bagana — papanata — ponta firme — campar com a pururuca — encher a moringa da fumaça — buchicho — xarope — muquirana.

(Fragmento do livro Me segura qu’eu vou dar um troço, de Waly Salomão. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora / Edições Biblioteca Nacional, 2003)

sábado, 25 de julho de 2009

LIVRE PENSAR É SÓ PENSAR...

Caros, há poucos dias escrevi, respondendo ao comentário de um leitor, que “procuro usar o espaço da Pele de Lontra para divulgar o trabalho de autores novos, que em geral nunca serão resenhados na seção Rodapé da Folha de S. Paulo. Isto não quer dizer que eu deseje unanimidade (que é sempre burra, como dizia Nelson Rodrigues). Acho importante abrir espaços de discussão na mídia alternativa, como a internet, para que possamos analisar criticamente, de modo argumentativo, a produção dos mais novos. É isto o que se espera da crítica séria: critérios de escolha e argumentação. E justamente isso é o que falta nos cadernos culturais da imprensa diária, que apenas louvam os nomes consagrados pelo establishment rumoroso e silenciam em relação aos demais. É contra isto que eu sempre lutei e continuarei lutando, aceitando pagar o preço pela dissidência”. Nesse mesmo comentário, feito a respeito da publicação de um poeta jovem aqui no blog, disse, mais adiante: “Voltando a tuas mensagens, são sempre bem-vindas, escreva quando quiser. Sempre aprovo mensagens críticas quando sei que são sinceras e sem intenção agressiva; as poucas mensagens que recusei publicar até hoje eram ofensivas. Discussão de idéias é outra coisa, e a Pele de Lontra sempre esteve aberta a isso”. Recupero este texto para responder a outro leitor, inclusive para desculpar-me pelo tom talvez um pouco emocional de minhas respostas. Às vezes, no calor da discussão, podemos exagerar um pouco no uso das palavras, o que, claro, é perdoável, de parte a parte, quando nos animamos muito com o tema discutido. Porém, quero deixar bem claro que não fico chateado se alguém escrever algo diferente daquilo que penso, nos comentários aos posts, desde que haja respeito, sinceridade e argumento. Escrevam discordando de mim, por que não? Como dizia o Millôr Fernandes, “livre pensar é só pensar...”.

Há braços,

CD

MINHA ESTANTE

Caros, estou relendo Guimarães Rosa: Magma, Sagarana, Tutaméia, Primeiras estórias e agora o Grande Sertão: Veredas. De todos os prosadores brasileiros que li até hoje, nenhum me impressionou mais que o velho Rosa. Li o Grande Sertão pela primeira vez aos 17 anos, e não cansei de reler esse romance maravilhoso nas últimas três décadas. É o maior poema épico de nossa literatura, o equivalente, talvez, à Chanson de Roland e ao Cantar de Mio Cid, e, nos campos linguístico, simbólico e metafísico, só encontra paralelos no Fausto de Goethe e no Ulisses de Joyce. Como pequena homenagem a esse feiticeiro que viu o diabo na rua, no meio do redemunho, escrevi o poema em prosa abaixo, todo ele construído com frases roubadas de vários contos do autor de A terceira margem do rio:

CARTA DE NENHUM LADO

e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto. senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. eu não tinha arma ao alcance. tivesse, também, não adiantava. com um pingo no i, ele me dissolvia. assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava. sua casa ficava para trás da serra do mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o temor-de-deus. ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pelos, com o aspecto de um bicho.nenhuns olhos têm fundo; a vida, também não. dava-se de entre vinte-e-muitos e trinta anos; devia ter bem menos, portanto. miúdo, moído. mas concreto como uma anta. sofria como podia, nem podia mais desespero. o arrepio negro das árvores. o mundo entre as estrelas e os grilos. semiluz: sós estrelas. o assombrável! inútil resistir, inútil fugir, inútil tudo. se e se? a gente ia ver, à espera. com os soturnos pesos nos corações; um certo espalhado susto, pelo menos. eram horas precárias. sou homem de tristes palavras. eu já sofria o começo da velhice — esta vida era só o desmoronamento. e ele? por quê? devia de padecer demais. distâncias, passaram-se e passam-se, na retentiva da gente, irreversos grandes fatos — reflexos, relâmpagos, lampejos — pesados em obscuridade. tenho de me recuperar, desdeslembrar-me, excogitar — que sei? das camadas angustiosas do olvido. como vivi e mudei, o passado mudou também. alguém, antes de morrer, ainda se lembrava de que não se lembrava. então, o fato se dissolve. as lembranças são outras distâncias. eram coisas que paravam já à beira de um grande sono. flor, limite de transformação. linda já de outra espécie. só fiz que fui lá. com um lenço, para o aceno ser mais. eu estava muito mais no meu sentido. ao por fim ele apareceu, aí e lá, o vulto. estava ali, de grito. chamei umas quantas vezes. trevava. ele me escutou. ficou em pé. por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. e estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. nessa água, que não pára, de longas beiras; e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

(Texto apócrifo construído a partir da colagem de frases do livro Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa.)

DO LIVRO POETA EM NOVA YORK (XI)


PAISAGEM DA MULTIDÃO QUE URINA
(Noturno de Battery Place)


Ficaram sozinhos:
aguardavam a velocidade das últimas bicicletas.
Ficaram sozinhas:
esperavam a morte de um menino no veleiro japonês.
Ficaram, sozinhos e sozinhas,
sonhando com os bicos abertos dos pássaros agonizantes,
com o agudo guarda-sol que espeta
o sapo recém-esmagado,
sob um silêncio com mil orelhas
e diminutas bocas de água
nos desfiladeiros que resistem
ao ataque violento da lua.
O menino do veleiro chorava e quebravam-se os corações
angustiados pelo testemunho e vigília de todas as coisas
e porque no solo celeste de negros caminhos
ainda gritavam nomes escuros, salivas e rádios de níquel.
Não importa que o menino cale quando lhe cravam o último alfinete,
não importa a derrota da brisa na corola do algodão,
porque há um mundo da morte com marinheiros definitivos
que assomarão aos arcos e os congelarão por trás das árvores.
É inútil buscar o ângulo
onde a noite esquece sua viagem
e espiar um silêncio que não tenha
trajes rotos e cascas e pranto,
porque apenas o diminuto banquete da aranha
basta para romper o equilíbrio de todo o céu.
Não há remédio para o gemido do veleiro japonês,
nem para estas pessoas ocultas que tropeçam nas esquinas.
O campo morde sua cauda para unir as raízes em um ponto
e o novelo busca pela grama sua ânsia de longitude insatisfeita.
A lua! Os policiais! As sirenes dos transatlânticos!
Fachadas de crina, de fumo, anêmonas; luvas de borracha.
Tudo está roído pela noite,
de pernas abertas sobre os terraços.
Tudo está roído pelos tíbios tubos
de uma terrível fonte silenciosa.
Oh pessoas! Oh mulherzinhas! Oh soldados!
Será preciso viajar pelos olhos dos idiotas,
campos livres onde silvam as mansas cobras deslumbradas,
paisagens cheias de sepulcros que produzem fresquíssimas maçãs,
para que venha a luz desmedida
que temem os ricos por trás de suas lupas,
o olor de um só corpo com a dupla vertente de lis e ratazana
e para que se queimem estas pessoas que podem urinar ao redor de um gemido
ou nos cristais onde se compreendem as ondas nunca repetidas.

Tradução: Claudio Daniel.

DO LIVRO POETA EM NOVA YORK (X)


TUA INFÂNCIA EM MENTON

Sim, tua infância já fábula de fontes.
Jorge Guillén

Sim, tua infância já fábula de fontes.
O trem e a mulher que farta o céu.
Tua solidão esquiva nos hotéis
e tua máscara pura de outro signo.
É a infância do mar e teu silêncio
onde os sábios vidros se quebravam.
É tua hirta ignorância onde esteve
meu torso limitado pelo fogo.
Norma de amor te dei, homem de Apolo,
pranto com rouxinol alucinado,
porém, pasto de ruína, te afiavas
para os breves sonhos indecisos.
Pensamento de frente, luz de ontem,
índices e sinais do acaso.
Tua cintura de areia sem sossego
atende apenas rastros que não escalam.
Porém eu hei de buscar os recantos
tua alma tíbia sem ti que não te entendes,
com a dor de Apolo detido
com que rasguei a máscara que vestes.
Ali, leão, ali, fúria do céu,
te deixarei pastar em minhas faces;
ali, cavalo azul de minha loucura,
pulso de nebulosa e ponteiro,
hei de buscar as pedras de lacraias
e os vestidos de tua mãe menina,
prato de meia-noite e pano roto
que tirou a lua da face do morto.
Sim, tua infância já fábula de fontes.
Alma estranha de meu oco de veias,
hei de te buscar pequena e sem raízes.
Amor de sempre, amor, amor de nunca!
Oh, sim! Eu quero. Amor, amor! Deixai-me.
Não me tapem a boca os que procuram
espigas de Saturno pela neve
ou castram animais por um céu,
clínica e selva da anatomia.
Amor, amor, amor. Infância do mar.
Tua alma tíbia sem ti que não te entendes.
Amor, amor, um vôo da corça
pelo peito sem fim da brancura.
E tua infância, amor, e tu infância.
O trem e a mulher que farta o céu.
Nem tu, nem eu, nem o ar, nem as folhas.
Sim, tua infância já fábula de fontes.

Tradução: Claudio Daniel

DO LIVRO POETA EM NOVA YORK (IX)


NORMA E PARAÍSO DOS NEGROS

Odeiam a sombra do pássaro
sobre a preamar da face branca
e o conflito de luz e vento
no salão da neve fria.

Odeiam a flecha sem corpo,
o lenço exato da despedida,
a agulha que mantém pressão e rosa
no gramíneo rubor do sorriso.

Amam o azul deserto,
as vacilantes expressões bovinas,
a mentirosa lua dos pólos,
a dança curva da água na margem.

Com a ciência do tronco e do rastro
povoam a argila de nervos luminosos
e patinam lúbricos por águas e areias
degustando o amargo frescor de sua milenar saliva.

É pelo azul crepitante,
azul sem um verme nem uma trilha adormecida,
onde os ovos de avestruz permanecem, eternos,
e perambulam intactas as chuvas dançarinas.

É pelo azul sem história,
azul de uma noite sem temor do dia,
azul onde a nudez do vento vai partindo
os camelos sonâmbulos das nuvens vazias.

É ali onde sonham os torsos sob a gula da erva.
Ali os corais empapam o desespero da tinta,
os adormecidos apagam seus perfis sob a madeixa dos caracóis
e permanece o oco da dança sobre as últimas cinzas.

Tradução: Claudio Daniel

domingo, 19 de julho de 2009

DO LIVRO POETA EM NOVA YORK (VIII)


PAISAGEM DA MULTIDÃO QUE VOMITA
Anoitecer de Coney Island

A mulher gorda vinha na frente
arrancando as raízes e molhando o pergaminho dos tambores;
a mulher gorda
que vira pelo avesso os polvos agonizantes.
A mulher gorda, inimiga da lua,
corria pelas ruas e pisos desabitados
e deixava pelos cantos pequenas caveiras de pomba
e levantava as fúrias dos banquetes dos últimos séculos
e chamava o demônio do pão pelas colinas do céu arrasado
e filtrava uma ânsia de luz nas circulações subterrâneas.
São os cemitérios, eu sei, são os cemitérios
e a dor das cozinhas enterradas sob a areia,
são os mortos, os faisões e as maçãs de outra hora
os que nos pressionam a garganta.
Chegavam os rumores da selva do vômito
com as mulheres vazias, com meninos de cera quente,
com árvores fermentadas e camareiros incansáveis
que servem pratos salgados sob as harpas da saliva.
Sem remédio, meu filho, vomita! Não há remédio.
Não é o vômito dos hussardos sobre as tetas da prostituta,
nem o vômito do gato que engoliu uma rã por descuido.
São os mortos que arranham com suas mãos de terra
as portas de pederneira onde apodrecem nublados e sobremesas.
A mulher gorda vinha na frente
com as pessoas dos barcos, das tabernas e dos jardins.
O vômito agitava delicadamente seus tambores
entre algumas meninas de sangue
que pediam proteção à lua.
Ai de mim! Ai de mim! Ai de mim!
Esta visão minha foi minha, mas já não é minha,
esta visão que treme despida pelo álcool
e despede barcos incríveis
pelas anêmonas dos cais.
Defendo-me com esta visão
que mana das ondas por onde a aurora não se atreve,
eu, poeta sem braços, perdido
entre a multidão que vomita,
sem cavalo efusivo que corte
os espessos musgos de minhas faces.
Porém a mulher gorda seguia na frente
e as pessoas buscavam as farmácias
onde o amargo trópico se fixa.
Só quando içaram a bandeira e chegaram os primeiros cães
a cidade inteira se agrupou nas galerias do embarcadouro.

New York, 29 de dezembro de 1929.

Tradução: Claudio Daniel

UM POEMA DE FRANCISCO DOS SANTOS

AO FIM DE UM INIMIGO

um grito rompeu
todas as veias
um soluço ocluso
glotal
sonoro
(se desfez o que era fôlego)
encolhido na promessa da asa
o não morto
em tempo hábil
(a morte como uma grande boca com dentes de ouro)
e quanta tristeza naquele olho que chora

(Poema do A imagem sem centro -- brevíssima de poesia, de Francisco dos Santos. Florianópolis: Editora da Casa, 2009)

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Caros, já está on line uma nova edição da revista literária eletrônica Germina, editada por Silvana Guimarães e Mariza Lourenço. A publicação traz um caderno em homenagem a Rodrigo de Souza Leão, traduções de Gertrude Stein por Luci Collin, entrevista com Xico Sá, artigos sobre artes plásticas e uma boa seleção de poemas e textos em prosa de Adriana Versiani, Pedro Maciel, Luís Serguilha, Fernando Karl, Ronald Augusto.

Na seção A genética da coisa, foram publicados textos comentados por seus próprios autores; eu participei com o poema Betty Blue, e aponto as afinidades entre minha escrita e a linguagem cinematográfica. A Germina, em minha opinião, é uma das revistas literárias mais interessantes editadas hoje no Brasil, vale a pena ler.

A revista Desassossego, editada por alunos de mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo, também está on line, e traz artigos interessantes sobre Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Ana Hatherly, além de poemas, entrevistas, contos e resenhas.

Ao contrário do que afirmam certos críticos literários da Folha de S. Paulo e da Veja, eu considero que os sites e blogues de literatura, hoje, são muito mais atualizados, democráticos e qualitativos do que os cadernos culturais da chamada grande imprensa, que reduzem cada vez mais o espaço das resenhas e privilegiam autores consagrados e publicados pelas grandes editoras. Quem quiser conhecer o que se faz de melhor na poesia brasileira contemporânea perderá o seu precioso tempo indo à FLIP ou lendo a Folha Ilustrada, mas encontrará muita informação em sites como Germina, Cronópios e Zunái.

TRÊS POEMAS DE FLÁVIO CASTRO

GÊNESE

enfermo ventre grávido padece praça bizarra
parábolos brinquedos enlouquecidos
pérfidos perfis perfilados
rostos gêmeos
passos possessos
caos silencioso vazio
tórridos relâmpagos calados
oeste escarlate de nuvens arquitetas
desfecho longínquo retorce poetas distintos


ANJO TORPE

silêncio envermelha crepúsculo sangrento
sopro turbilhona convulsivamente
sólida solidão dos muros
lamentos feéricos
distúrbios poéticos regressivos
paralisia profética do sentido prático
criatura inválida tece evasão imaginária


SOMBRA

língua sábia lambe áspero cárcere fictício
sonhos evaporam silêncio mortificado
originais duma vitalidade dilatada
arcaica simbologia redentora
cega fonte culta
suave azul obscuro
tristes olhos extremos
assombrosas cores vigorosas
manuscritos carcomidos
sublimes pilares paralelos
sopro cuspido no êxatase bucal
trépidos movimentos sincronizados
fragmentos empíricos pelos vasos oníricos

(Poemas do livro Audito. Niterói: C. L. Edições, 2009)

PALESTRA NA SEXTA-FEIRA

Caros, nesta sexta-feira, dia 17 de julho, às 19h30, darei uma aula aberta na Associação Palas Athena, intitulada Um estímulo à imaginação e à criatividade pelo trabalho poético. O evento será uma apresentação do Laboratório de Criação Poética, programa desenvolvido com o objetivo de apresentar conceitos teóricos sobre a poesia e desenvolver exercícios práticos de criação. Local: rua Leôncio de Carvalho, 99, Paraíso, próximo à estação de metrô Brigadeiro. Aguardo vocês lá!

terça-feira, 14 de julho de 2009

A CORRUPÇÃO DO PSDB













SOB FOGO CRUZADO, YEDA CRUZIUS TENTA DEFENDER O INDEFENSÁVEL

"A governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius (PSDB) negou no sábado, 9, que marido tenha recebido R$ 400 mil das empresas fabricantes de cigarro Alliance One e CTA Continental formando um caixa 2 para a campanha da atual governadora. (...)

Em entrevista no último sábado, em Porto Alegre, a governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius, negou que o marido, Carlos Crusius, tenha recebido R$ 400 mil em espécie de duas fabricantes de fumo para caixa dois de sua campanha. Gravações divulgadas pela revista Veja mostram conversas entre Marcelo Cavalcante, ex-assessor da governadora, e o empresário Lair Ferst. O áudio comprovaria o uso de caixa dois na campanha. Na gravação, o ex-assessor diz que as empresas fabricantes de cigarro Alliance One e CTA Continental doaram, cada uma, R$ 200 mil em espécie, que foram entregues ao marido de Yeda, Carlos Crusius. Yeda afirmou que o marido não trabalhou na arrecadação da campanha. Perguntada se as empresas fizeram as doações para caixa dois, a governadora respondeu que não leu a reportagem da revista, mas disse que “parece” que uma tem recibo da doação e que outra nega ter doado.

Como nos outros casos, a governadora mais uma vez foi denunciada por um de seus aliados. Ela foi denunciada pela ex-companheira de um ex-assessor, Magda Koegnikan. Segundo Magda, Ferst afirmou que entregaria as gravações às autoridades para provar que o esquema do Detran era mantido por integrantes do governo Yeda, e não por ele. Segundo a revista Veja, Cavalcante ainda afirmou que a governadora sabia do suposto esquema de corrupção no Departamento Estadual de Trânsito (Detran). O ex-assessor diz, na gravação, que entregou uma carta de oito páginas na qual o empresário Lair Ferst descreveria como funcionava o esquema que desviaria recursos. A carta foi entregue para que Ferst tentasse se livrar da suspeita de participação no esquema."

MINHA ESTANTE

ROÇZEIRAL

Rosas farpadas incorporam
aos espinhos, o arame, no fogaréu
do canteiro. O lutador, que as escolhe
ao pegar na palavra, ao pedir a palavra
se fere, e despedaça o frágil perfume
concentrado nos seus botões ferozes.
Este é o fecho da luta corporal
entre quem escreve e quem lê
o livro-bomba, que sempre explode
na cara de quem o abre e folheia.

(Poema de Armando Freitas Filho, do livro Lar, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.)

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

No dia 13 de julho, segunda-feira, a partir das 19h30, acontecerá o lançamento do livro Imagem sem centro — brevíssima de poesia, de Francisco dos Santos, publicado pela Editora da Casa. O evento será na UGUES, rua Marquês de Itu, 1039 (esquina com a rua Martim Francisco), no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Eu estarei lá para prestigiar o poeta, artista plástico e amigo Francisco dos Santos, que já tive a satisfação de publicar na Zunái.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

MINHA AGENDA






Caros, no dia 15 de julho, quarta-feira, participarei de um debate com Claudio Willer sobre o tema Leituras poéticas contemporâneas: um olhar sobre o Oriente, que acontecerá das 16 às 18h, na Livraria da Vila (Itaim) em São Paulo (SP). O evento tem curadoria do filósofo e poeta Chiu Yi Chih. Na ocasião, haverá o lançamento de meu novo livro de poemas, Fera Bifronte, publicado pela Lumme Editor, e de Geração Beat, livro de Claudio Willer publicado pela LP&M.

Local: Livraria da Vila, na rua Dr. Mário Ferraz, 414, Itaim.

Já no dia 17 de julho, sexta-feira, às 19h30, darei uma aula aberta na Associação Palas Athena, intitulada Um estímulo à imaginação e à criatividade pelo trabalho poético. O evento será uma apresentação do Laboratório de Criação Poética, programa desenvolvido com o objetivo de apresentar conceitos teóricos sobre a poesia e desenvolver exercícios práticos de criação.

Local: rua Leôncio de Carvalho, 99, Paraíso, próximo à estação de metrô Brigadeiro.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

DITADURA CHINESA REPRIME OS UIGURES












Soldados chineses reprimem com violência as manifestações de protesto dos uigures na região de Xinjiang, num conflito que já matou mais de 150 pessoas. Este é o maior ato de resistência contra o regime totalitário chinês desde a ocupação da praça Tianamem pelos estudantes, em 1989. Segundo o noticiário do Último Segundo, do portal IG, “em Urumqi, a capital da província de Xinjiang, dezenas de milhares de soldados saíram às ruas para patrulhar a cidade depois que militares de outras regiões se uniram aos mais de 20 mil combatentes que estão na localidade desde domingo. No bairro uigur de Urumqi, vários estabelecimentos muçulmanos amanheceram destruídos e as mesquitas locais não abriram. Segundo os moradores, a região foi atacada ontem por entre 200 e 2 mil chineses da etnia han. Pelo menos quatro uigures teriam morrido nos confrontos”.

A região de Xinjiang foi ocupada pelo império chinês no século XIX. Os seus habitantes originários, muçulmanos de idioma turco, nada têm a ver com a cultura chinesa (assim como o Tibete, ocupado em 1950 e submetido a um genocídio que vitimou mais de um milhão de pessoas, além da destruição de riquezas naturais e monumentos históricos). Para tentar eliminar a resistência da população, o governo chinês realizou uma “limpeza étnica” e enviou milhares de colonos para a região, de maneira que hoje os uigures são minoria em sua própria nação. Apesar disso, os uigures continuam pleiteando o direito à sua autonomia política e cultural, o que é visto pela ditadura chinesa como “movimento separatista contra-revolucionário” e clichês do gênero.

Segundo a reportagem do Último Segundo, “o líder do Partido Comunista (PCCh) em Xinjiang, Li Zhi, afirmou hoje que os detidos nos protestos de domingo, mais de 1,4 mil, sofrerão punições de todos os tipos, inclusive execuções”. Certamente, não haverá condenação oficial da ONU, pois a China faz parte do Conselho de Segurança da organização, é uma das maiores economias do planeta, tem população de um bilhão de pessoas e dispõe de arsenal nuclear. Obama vai ficar quieto, ou no máximo fazer alguma “condenação” diplomática, sem qualquer iniciativa de embargo econômico ou pressão política (ao contrário do que faz com a Coréia do Norte ou o Irã, por exemplo). Os intelectuais, no entanto, podem e devem protestar. Aliás, eles têm a obrigação moral de fazer isto.

A CRÍTICA LITERÁRIA REFLETE A CRIAÇÃO POÉTICA CONTEMPORÂNEA?

Leda Tenório da Motta: a resposta é mais: não! Temos surtos de mapeamento, listagens, classificações empenhadas. Recenseamentos sazonais avulsos e como que piedosos. A uma dessas intervenções devemos — de resto — a descoberta de Ana Cristina César. Mas isso não faz uma cultura da coisa. A exceção é aquela prestimosa coleção de livros da Duas Cidades — a ClaroEnigma — , que, no final dos anos de 1980, não apenas captou uma esparsa, inédita e pulsante produção brasileira, mas a estudou em orelhas e prefácios assinados, alentados e sofisticados, dotando gente praticamente desconhecida — Age de Carvalho, Paulo Henriques Brito, Rubens Rodrigues Torres Filho, Sebastião Uchoa Leite, entre outros — do melhor e mais belo aparato crítico. Sob a direção de um então também desconhecido — Augusto Massi —, que depois se voltaria para outras artes, essa pequena biblioteca de novos foi um gesto de ópera, no melhor sentido da expressão.

Aurora Bernardini: a crítica literária dá conta hoje, de avaliar uma criação poética contemporânea? A avaliação de uma pedra preciosa implica a verificação do preenchimento ou menos de certas condições exigidas por critérios tradicionalmente estabelecidos de preciosidade: luz, pureza, lapidação etc. Na avaliação de uma criação artística há critérios estáveis somados a critérios que necessariamente mudam conforme os tempos, logo a boa crítica literária dará, sim, conta da avaliação de uma criação artística, de qualquer época, mas não em qualquer época. A resposta abaixo explica o porquê. A crítica literária reflete a criação poética contemporânea? Em parte. Só se os critérios de fatura de dada obra contemporânea estiverem dentro do alcance dos critérios de avaliação dos valores imanentes, estáveis (Hartmann, Ingarden, Argan, Ostrower, Candido...) e dos que mudaram na crítica, até então (especialmente os concernentes a função da obra). Se os artistas são “as antenas da raça” (Pound), o máximo que pode fazer a crítica é acompanhá-los e validá-los ou não. (Às vezes, descobri-los ou redescobri-los). Ela pode se mover mais lentamente, mas ela chega lá. Por isso, cuidado: todos os criadores podem chegar à sua “expressão” (Bakhtin), mas apenas poucos entre os que chegarem à sua expressão poderão vir a ser considerados verdadeiros artistas.
Carlos Felipe Moisés: se por “refletir” entendermos ecoar, repercutir, desdobrar, eu sem hesitar diria que reflete, sim, não tem como escapar disso. Tirante o caso do crítico megalômano, excessivamente cioso de luz própria (portanto, o mau crítico ou o pseudocrítico), a crítica vai sempre atrás, é atividade subsidiária, dependente; sua função é de caixa de ressonância. Mas não é uma atividade meramente passiva, o que valeria dizer irrelevante ou dispensável. A boa crítica desmonta, analisa, interpreta, permitindo que venha à tona, e se faça compreensível, aquilo que na criação poética está apenas latente.
Victor da Rosa: faz tempo que os jornais não dão conta mais de nada. Jornais são instituições muito mais duras e muito mais comprometidas do que qualquer outra. E não acredito na possibilidade de um crítico andar de mãos dadas com a instituição. Oswald já nos mostrou, em ato, que a instituição é vegetariana. Mas esta já é outra história. De qualquer modo, eu leio cada vez menos jornais. Em todo caso, é cada vez mais inútil.

(Leia a íntegra deste debate na edição de agosto da Zunái.)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

UM POEMA DE MARCELO SAHEA


Vejam outros poemas visuais do Marcelo na Zunái de agosto.

domingo, 5 de julho de 2009

UM POEMA DE FABÍOLA RAMON

CORPULAÇÃO (ESCRITURA DA CARNE)

Dentro de mim,
um, meio, desassossego sugado na areia que move e leva e traz.

Uivos-rouge abafados na carne

Penso alto, falo baixo.
Captadas as palavras perdidas na lixeira dos PCs; formam jogos, viram ouro.

Suspende corpo crepito; passos certos de uma dança sem intenção.
Esfrega dorso em seu oposto
Pêlo eriçado pelo desconhecido.

Se hospeda na invasão.
Deixa-se ir inteira, para além do pêlo, para além da carne.
Finca no azeite do bicho.

Jogo de palavras; lanço uma, duas, três..... Formam frases inteiras, mas nada muda quando faladas. Escritas, portam-se com outra intenção (Atention!).

Metamorfoseiam-se de escamas reflexas.
Cooptados, viram presas da imensidade.
(mais que frêmito)

única união ultrapassa cadacorpo (à corps perdu), cada qual, soprando o instinto natural de cada coisa: razão da ex-sistência?

Levanto-me para ver o que não escrevo.
- O que não vejo?
Atrás do vão, trincas de destino numa vastidão,
Rabiscos tatuados para fazer tua noite.

(já não mais bichos; balbuciam palavras)

Agora, mais que o nada: um sopro.


(Leiam mais poemas da Fabíola na edição de agosto da Zunái.)

DOIS POEMAS DE MICHELINY VERUNSCHK

BIOGRAFIA

Nasci de um abismo
e nele me equilibro.
Tudo desmedido.
Tudo voraz.
Tudo a boca de uma grande loba
[estrela em pêlo de caranguejeira].
Tudo essa teia
de saliva e luz negra.
Tudo esse uivo de danceteria
viaturas
bairros sujos.
Tudo um delay de mim
multiplicado por mim.
Tudo esse tiro
[um ou dois estampidos?]
esse giro
essa queda
esse fim.


O LEÃO

Flor carnívora
ele aquece a paisagem:
sol sobre cinzas
sal
sugem.
Apenas uma carícia
cabe no seu nome,
faro aceso
a contrapelo,
e uma mulher de luz
chupa-lhe o mastro.
Simétrico e circular,
o seu rugido
fere tulipas,
pequenos coleópteros,
enche copos, cálices, calas.
Ácido e doce
amamenta todas as suas fêmeas.
Depois dorme,
cidade inexistente.

(Leiam mais poemas da Micheliny na edição de agosto da Zunái.)

POEMAS DE ADRIANA VERSIANI

TREZE CANÇÕES DE AMOR E MORTE PARA ALEJANDRA PIZARNIK


A gaiola virou pássaro, enfaixei suas mãos e coloquei sobre elas pesadas pedras.
Amordacei-as, para que você não sinta dor.

Seus dedos tocam a chuva.

A jaula virou muro, quebraram-se as xícaras e tenho um milhão de cacos nos olhos.
Ceguei-os, para que você não sinta dor.

Chove e meus dedos tocam os seus.

Que a morte seja doce e nos vista de seda.

*
Crisálida pendurada no lustre da sala.
A luz de mercúrio não explica.
Noite adentro, asas dançam aos poucos
e vejo soar um ruflar imóvel.

*
Seu nome chão,
pai e pó.

Mãe,
seu nome.

Você chama.
Arde em mim Alejandra.

Alejandra,

Você,

Seu nome.

*
Um anjo sangra na sacada e ela,
ferida,
mergulha para dentro do sono.

Panos para sempre no varal da infância.

*
A ave sobre o banco do jardim
onde nos tocávamos.

Havia febre.

Sua ausência é essa chuva que me acompanha.


*
Ajoelhei-me para desamarrar as botas e percebi gotas de sangue no cadarço
Chamei por seu nome Alejandra,
enquanto procurava por vestígios nas frestas dos tacos.

*

Vidro líquido na retina
Corpo coberto de espelhos

Fogo Fátuo,

Hálito que perfuma meus pés.

*
O corpo lançado ao mar foi feito em pedaços por peixes famintos.
Nunca atraiu as românticas ostras,
que permaneceram fechadas sobre suas pérolas.

*
Um animal invade a noite trágica.
Com cólera de fera e sangue nos olhos,
rompe a margem do espelho.

*
Acabou o banquete dos mortos.
Na areia do deserto escrevo seu nome.
Alejandra,
Água viva
Sol aceso no céu da boca.

*
Punhos cerrados.
Escorre entre os dedos uma alma delicada de mulher.

*
Tenho medo de não saber nomear o que não existe.
Ela não existe.

*
Vem lua,
Vem sol e eu

jamais estive aqui nessa fogueira imprecisa.

Alejandra,
meu amor ,
me diga:

(Leiam mais poemas da Adriana na edição de agosto da Zunái.)

quinta-feira, 2 de julho de 2009

IN MEMORIAM







Rodrigo de Souza Leão (1965-2009)

ADEUS, AMIGO

Conheci o Rodrigo há uns dez anos.

Hoje, soube que ele foi embora. Recebi a notícia como um soco a nocaute.

Não sei o que dizer.

O que escrevo aqui é menos uma crônica do que um desabafo.

Rodrigo foi um poeta visceral; ele não buscava apenas soluções estéticas. A criação, para ele, era uma forma de iluminar o próprio caos.

Ele escrevia com as entranhas.

Poesia confessional? Sim. Apesar disso, deixou obras notáveis, como a novela Todos os cachorros são azuis e o livro de poemas O caga-regras.

Há muitos livros inéditos também, que ele guardou nas gavetas ou publicou na forma de e-books, como Impressões sob pressão alta, 25 tábuas, No lioral do tempo e síndrome.

Na web, é possível acessar dezenas de entrevistas que ele fez com outros poetas, inclusive comigo, e publicadas no site Balacobaco.

Sua produção era compulsiva.

É necessário que alguém organize todos os seus textos, na forma de edição crítica, para reunião em livro.

Mas não vou aqui fazer análise literária do amigo morto; já o fiz, quando ele era vivo, em dezenas de trocas de e-mails e em conversas telefônicas periódicas, e também no prefácio que escrevi para um de seus e-books.

Eu o encontrei pessoalmente apenas duas vezes, no Rio de Janeiro; a primeira foi em seu apartamento, quando fizemos a única reunião do conselho editorial da Zunái, há uns três ou quatro anos, e a segunda foi há poucas semanas, no Real Gabinete Português de Leitura, durante o festival Artimanhas Poéticas.

Fiquei surpreso por ele aceitar o convite para participar do recital, pois Rodrigo não saía de casa, nunca, por problemas de saúde (nos últimos meses, porém, chegou a fazer até um curso de pintura, e começou a dar voltas no quarteirão, algo impensável quando o conheci).

O que dizer sobre Rodrigo?

Que foi uma das pessoas mais doces que conheci?

Sempre gentil, generoso, compreensivo e, paradoxalmente, lúcido. Porém, muito cruel consigo mesmo.

Ele sabia que não ia ficar muito tempo por aqui.

Como Leminski, Torquato, Faustino.

Ele sabia que, em pouco tempo, ia cair fora do “triste hospital” de que falava Mallarmé.

E caiu fora, mesmo.

Hoje, recebi a notícia de que o meu amigo e parceiro na Zunái, desde o início da revista, virou constelação.

Adeus, Digo.

Você vai deixar muitas saudades em todos os que o conheceram e conviveram contigo.


"Guelras e silêncio. As formigas passeiam pelos peixes. Jonas e sua baleia estão expostos. À mostra, toda a tradição. Estandartes nas mãos. Crianças começam a cantar o estribilho do hino nacional. As bandeiras se masturbam no vento. Poetas discutem a complexidade do mundo sem complexidade. O hino é belo e a flâmula é verde e amarela. Eu só queria romper a bolha que me prende a esta casa e a estes metros quadrados. Eu iria à feira ver os peixes mortos. Sentir o odor fétido das sardinhas expostas. E não ler em algum lugar que tudo está à venda. Inclusive as cabeças dos líderes da oposição poética. Um a um decapitados por serem apenas diferentes."

(Poema de Rodrigo de Souza Leão, do livro O caga-regras. Pará de Minas: Virtual Books, 2009.)

UMA CONVERSA COM WILSON BUENO

Zunái: Uma característica que chama a atenção nos seus textos é a mudança de estilo, uma inquietação, parece-me, diante da língua errante, que precisa ser reinventada, renovada a cada instante. Neste aspecto, a sua obra é “infantil”, no sentido dado ao termo pelo filósofo francês Jean-François Lyotard e pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, por exemplo, já que, constantemente, você reinventa o seu conceito e dá nomes novos às coisas, ou recorre a um novo estilo. Parece-me, por isso, que a magia (numa alusão à teoria de Agamben) da sua obra reside no fato de você não acreditar que ela tenha um destino específico e, desse modo, você a refaz o tempo todo e a deixa aberta para leitores de todas as faixas etárias. Você poderia falar sobre essa sua inquietude perante a linguagem?

Bueno: Brinco sempre dizendo que face ao sucesso de recepção de Mar paraguayo, andando hoje aí em vários países, objeto de teses de mestrado e doutorado em centros de referência da vida universitária, e com leitores apaixonados em vários sentidos, eu poderia fazer Mar paraguayo-2, Mar paraguayo-3, 4, 5, até ele virar aquele “horror-movie”, Sexta-Feira 13, que, se não estou enganado, já está em sua oitava versão... (na verdade, na 12ª). Eu quero sempre o inusitado, embora não haja nada de novo sob o Sol, como nos ensina sabiamente o Eclesiastes... Mas a literatura é de uma amplidão inimaginável, inesgotável.

De todas as artes. a que me parece mais poderosa no sentido da ampliação do imaginário. Em respeito a essa “natureza”, que é dela a sua maior marca, acho, a rigor, que nada mais faço do que honrar isso, ao lançar mão dessas possibilidades... Aí a incursão, a cada novo livro, por sendas, caminhos, bifurcações, atalhos, alagadiços... Costumo dizer que sou um pequeno buscador das tardes (melancólicas) da floresta... Se chego lá, aí já não é mais comigo, mas com quem se interessar possa por onde andou mi corazón perseguidor... Sim, você tem toda razão: sou um reescritor por excelência, tanto pela artesania obsessivo-flaubertiana do meu processo de criação propriamente dito quanto pelo reandar caminhos já andados movido por novos pés e quiçá, outros olhares. Reolho, reescuto, releio as coisas, poderia, também dizer, em ampliação da resposta à sua pergunta...

Zunái: No caso dos textos para crianças, espera-se que eles tenham moral edificante. Os chuvosos, por exemplo, narra, quase em tom enciclopédico, a vida de uma família de pingos de chuva até a sua transformação em “múltiplos gasosos”. Não há aí uma moral explícita. Aliás, já dizia Walter Benjamin que é uma bobagem achar que as crianças gostam das fábulas unicamente por sua moral. Porém, a despeito disso, só uns poucos escritores “ousam” quebrar as expectativas dos pais e da escola, a maioria dos livros não se afasta dos desfechos morais e edificantes. Como você vê a literatura infanto-juvenil brasileira hoje?

Bueno: Perdoe-me, mas com as altas e honrosas exceções de praxe, e bem ralas, acho que não temos uma literatura infanto-juvenil digna desse nome. Como é a faixa etária em que a venda do livro se torna mais fácil, os meninos do Brasil, no geral, estão muito mal-servidos. Escrevem cobras e lagartos movidos apenas pela sanha da grana que continua a destruir coisas belas... Sempre moralizantes, edificantes, numa disposição de ajudar a ensinar o certo e o errado que, olha, me dá engulhos... Cachorros do céu, além de outros coisas, também é uma resposta, digamos, “política”, a esta pasmaceira, herdeira dos edificantes La Fontaine da vida...

Eu adoro La Fontaine, porque é um fabulista fabuloso, mas tiro um sarro danado dele, chamando-o sempre de Dr. La Fontaine... Não perdoo, até hoje, ele ter punido a cigarra daquela forma... Curioso, menino atrevido, criado no sertão profundo até os sete anos, a ter, como bichos de estimação, coatis e macaquinhos, quando não filhotes de jaguatirica, feito gatinhos, embora estes já nasçam marcados por uma ferocidade absurda, logo que alfabetizado em Curitiba me contaram na escola a fábula da Cigarra e da Formiga... Fiquei furioso com esta última ao se negar a dar abrigo a quem lhe embalara os dias de trabalho sob a encantada maravilha dos sons mais lindos... Você sabia que o Braguinha, o compositor popular, faz uma chacota ao Dr. La Fontaine que acho antológica… Você a conhece? A formiga se dispõe a um autocrítica hilária: “Eu acho que tem razão,/ minha cigarra querida./ Vivo juntando mil coisas / e desperdiçando a vida”...
(Leia a entrevista na íntegra na edição de agosto da Zunái.)

UM POEMA DE ARNALDO ANTUNES

meu corpo camba
leia lân
guido larga
do ergui
do mas
bem
bambo
ainda
sobre ambas
as pernas
descansando
um tanto
ou canta
rolando algo
ambíguo
sob
a lâmpada
apagada
do banheiro
pêndulo
adiando
o novo
golpe
inevitável
do inimigo
espelho

(Leiam outros inéditos de Arnaldo na edição de agosto da Zunái.)