domingo, 1 de agosto de 2021

QUATRO POEMAS DE DIRCE CARNEIRO

 












A PELE QUE HABITO

Invólucro da matéria

embrulha meus ossos

músculos, nervos

a carne do ser

 

A pele que me habita

poros do mundo

absorve a matéria

em todos os sentidos

dias cheios de opostos

 

A pele que me habita

envolve tempos

incertos

 

VIDA E MORTE

 

Exorcizo o medo

voo sobre a cidade

vidas desconfiadas vagam

emudecidas

a fala é ponte ao perigo

 

Dar as mãos é proibido

o andar é solitário

viver ou morrer, aleatório

mesmo tendo feito opção

 

Despedidas tristes

humanos vão

sozinhos daqui

do inferno –

para onde?

Recolho as asas

pouso na janela

último olhar

lá fora

 

Já confundo

o imaginário projetado

na tela cibernética

no livro aberto

as notícias planetárias

 

com o mundo após a janela

 

 TAÇA INGLÓRIA

A noite entrou

não há lua nem estrelas

os símbolos

as letras

o canto

são meros bibelôs.

 

Sonhos repousam num barco

no fundo do mar.

águas turvas agitam o mar

há vermelho borbulhando

e não é o néctar vital

nas veias do oceano

é o sangue das artérias

do corpo desfeito

das palavras surdas

é o sangue

da insensatez

da vileza

 

Casacas brindam

o luto cravado

nos corações de muitos

são loucos

tolos

 

Nada a celebrar

não há ganho

perdeu-se o elã

do mapa desenhado

 

Não pode haver brinde

quando a conquista é vil

quando se cravou

um punhal na crença

 

Lá fora...aqui dentro...

não há regozijo

os que brindam

olham para as masmorras

para as correntes

para o corpo infantil prostituído,

para corpos aviltados

para os que dormem na sarjeta,

para o nosso ouro que se foi

e que ainda irá

 

Não há ganhos.

Quando se é um

a vitória é de todos...

e a derrota também.

Que será?

 

EM CÓDIGOS DESCE O VÉU

contorno a penumbra da noite

véu de chuva esmaece o dia

som de trovões acorda de sonhos

raios lampejam, só tênue chama

 

sugestão da névoa em riscos molhados

toda vida envolta nas incertezas

unir pontos de chuva em labirinto

a saída, molhar-se, enlamear-se

 

lavar-se nas mesmas gotas de barro

tornear-se nas mãos umedecidas

pés no pedal, novo em formatação

atenção nas filigranas, detalhes

 

o diabo mora nos sutilezas

preencher frestas com dedo certeiro

por à unha, inscrição do mais secreto

cravar com sangue o Sol que se avizinha

 

OPERETA

 

Maneirismo,

batuque na mesa.

mesóclise à la Jânio,

olha para trás.

Avisa:

é duro,

dedo em riste

vai e vem,

ligeiro,

golpe certeiro.

Aviso aos bandidos:

conheço-os bem,

vadios,

cercam-me,

sirvam–me

fiéis.

Sei o cheiro da traição,

de longe.

Pois eu sou.

Somos.

Pares da mesma dança

Acorrentados.

Peito a peito,

cuspe de um

é o de outro.

lambe o chão

que seu rei pisa.

Deposita no painel

o voto da vergonha.

 

Um comentário:

  1. Grata Cláudio por este susto bem-vindo na manhã de domingo!
    Li num só fôlego e confesso: vejo-me diferente escritora e leitora, poeta, e quando me vejo assim, há tensão: "O que ditou a liberdade criadora, mesmo sendo depois esmerilhado, dando-lhe eu guarida?"
    A palavra que tenho para este sobressalto domingueiro é gratidão, mestre.

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