terça-feira, 9 de junho de 2015

RETRATO DO ARTISTA



















UMA POÉTICA ENTRE O SILÊNCIO E O RUÍDO

Duda Machado realiza uma arquitetura poética concentrada, com economia sintática, densidade semântica, discurso fraturado, elíptico, espacialização de palavras e linhas. Sua pesquisa formal deriva da leitura intensa de João Cabral de Melo Neto e da Poesia Concreta, mas também da ressonância do Tropicalismo e da contracultura, elementos presentes em outros poetas de sua geração, como Antonio Risério e Waly Salomão. Como letrista de música popular, Duda Machado assina canções como Hotel das estrelas, musicada por Jards Macalé e gravada por Gal Costa no disco A todo vapor. Seu livro de estreia, Zil, publicado em 1977, reúne poemas visuais brutalistas, com clara influência do grafitti, como Paint back, composições breves, irônicas e bem-humoradas (“Inferno: os anjos ouvem / a décima sinfonia de Beethoven”), peças permutatórias, construídas pela repetição das mesmas palavras, em ordem e combinação diferentes (“habitar os abismos / manter a face / voltada para o sol // habitar / manter os abismos / voltados para o sol // os abismos / a face / o sol: / gozo louco”) e inventivos poemas em prosa, como Ária (“lambança, aboio, maracatu, papoamarelo, caroá, xerém, gado preto sobre o campo branco, esplendor de estandartes”).

O desenho minimalista terá continuidade em seu  segundo livro de poemas, Um outro, reunido, juntamente com Zil, no volume Crescente, publicado em 1990. A nova coletânea radicaliza o esforço de concisão, só comparável ao desenvolvido por Carlos Ávila, Ronald Polito e Júlio Castañon Guimarães, e o leque temático se amplia, dialogando de modo mais enfático com a vida e o mundo, como nestas linhas de Visão do avesso: “neon insone / esquinas frigorífico // na madrugada / drogada / céu e asfalto / se ombreiam / exaustos // a um canto / travesti e pivete / apressam um trato // : déja vu / restos / pano rápido”. Em Hora do rush, peça composta de apenas oito palavras, encontramos este pequeno retrato urbano, de um expressionismo ácido: “moinhos / de braços / inimigos / ao vento / s’entre / ferindo”. Em outra peça, Sortilégio, Duda Machado faz um delicado retrato do cotidiano, dialogando com a passante de Baudelaire: “moça / sob a chuva / anda / olha / como quem / abre cortinas // a chuva lhe cai em cima / ou se limita / a segui-la?”. O lirismo não está ausente, mas é redimensionado em estruturas poéticas calculadas que valorizam o som e o silêncio, a figura e o vazio: pensamento, sonoridade e visualidade formam uma unidade estética, na qual a voz lírica e o referente externo são elementos da ficção encenada que é o próprio poema.


Margem de uma onda, publicado em 1997, inaugura nova fase na escrita de Duda Machado: o poeta reconstrói a sintaxe, em versos mais longos, sem cair na mera discursividade. As figuras metonímicas, cortes bruscos, variações de ritmo e palavras inesperadas vivificam a fala, compondo quadros expressivos da cena urbana, como na peça Urubu-abaixo: “overdose de dezenas / de dúzias / desovam / desossam / desencarnam / subterrâneos jardins de infância / de quem mais carniça que criança / abocabraba / saliva rala / tudo que os exprime / reinventa o crime / etês / erês / num bafo de forra / vão mamando cola”. O realismo crítico, em outras peças, aproxima-se, pela paródia, da linguagem jornalística, como acontece em Fim de semana: “Já entraram no barraco fuzilando. / No balão de oito metros de largura / o nome dele estava escrito / com lanternas na rabeira. / Deixaram um corpo amarrado no poste / pra todo mundo ver. / A maior parte / é no fim de semana”. Adivinhação da leveza, livro mais recente do autor, publicado em 2014, mantém a discursividade linear, com temas reflexivos, intimistas e a reinvenção do cotidiano, como no minipoema Jornada: “Sarcasmos do sol, / a pausa e, depois, / o céu inflige / o seu recorde / de cicatrizes”. 

(Artigo publicado na edição de junho da revista CULT)

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