sexta-feira, 26 de junho de 2015

RETRATO
















Mulher branca beija mulher negra,
desnuda seus mamilos;
percorre luas
vermelho-flamboyant
vermelho-tiês
vermelho-eritrino
vermelho-flamingo.
Mínimas mãos
acariciam intermitentes
centaura cabeleira
espraiada nas espáduas.
Arroxeados lábios
palmilham cada cavidade,
fenda, fresta, frincha
indistintas estrelas
ferruginosas, deusa
mergulhada em deusa,
ambas melusinas, duplicidade
de pequenas, delicadas luas
até o reluzir das alamandas.

Claudio Daniel, 2015

terça-feira, 23 de junho de 2015

SETE HAICAIS DE “EROS MÍNIMO”, DE CASIMIRO DE BRITO
















12

Deito-me a teu lado:
somos um só animal
nu, enamorado.


20

A concha obscura
não é um lugar vazio –
tantas estrelas!


24

Deixa que te beije
o umbigo – e assim começar
a volta ao mundo.


27

Beber uma só gota.
Dar-te a beber uma só.
O mundo na boca.


30

Nesse momento
já não sou homem, apenas
águas vivas, subindo.


37

Sei tanto dela
como ela de mim. Entramos,
cegos, um no outro.


53

Eis que regresso
ao lírio roxo, ao túmulo
do meu nascimento.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

SETE POEMAS DE FEDERICO GARCIA LORCA





  










VOLTA DE PASSEIO

Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão até a serpente
e as formas que buscam o cristal,
deixarei crescer meus cabelos.

Com a árvore de cotos que não canta
e o menino com o branco rosto de ovo.

Com os animaizinhos de cabeça rota
e a água esfarrapada dos pés secos.

Com tudo o que tem cansaço surdo-mudo
e borboleta afogada no tinteiro.

Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo céu!


1910

Intermédio

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
não viram enterrar os mortos
nem a feira de cinza de quem chora pela madrugada
nem o coração que treme encurralado como um cavalo-marinho.

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
viram a parede branca onde mijavam as meninas,
o focinho do touro, a seta venenosa
e uma lua incompreensível que iluminava pelos cantos
os pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas.

Aqueles meus olhos no pescoço da égua,
no seio trespassado de Santa Rosa adormecida,
nos telhados do amor com gemidos e frescas mãos,
em um jardim onde os gatos comiam as rãs.

Desvão onde a velha poeira congrega estátuas e musgos.
Caixas que guardam silêncios de caranguejos devorados.
No lugar onde o sonho tropeçava com sua realidade.
Ali meus pequenos olhos.

Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas
quando buscam seu curso encontram seu vazio.
Há uma dor de ocos pelo ar sem ninguém
e nos meus olhos criaturas vestidas. Sem nudez!

FÁBULA E RODA DOS TRÊS AMIGOS

Henrique,
Emílio,
Lorenzo.
Estavam os três gelados:
Henrique pelo mundo das camas;
Emilio pelo mundo dos olhos e das feridas das mãos,
Lorenzo pelo mundo das universidades sem telhados.

Lorenzo,
Emilio,
Henrique.
Estavam os três queimados:
Lorenzo pelo mundo das folhas e das bolas de bilhar;
Emílio pelo mundo do sangue e dos alfinetes brancos;
Henrique pelo mundo dos mortos e dos jornais abandonados.

Lorenzo,
Emílio,
Henrique.
Estavam os três enterrados:
Lorenzo em um seio de Flora;
Emílio na hirta genebra que se esquece no copo;
Henrique na formiga, no mar e nos olhos vazios dos pássaros.

Lorenzo,
Emílio,
Henrique,
foram os três em minhas mãos
três montanhas chinesas,
três sombras de cavalo,
três paisagens de neve e uma cabana de açucenas
pelos pombais onde a lua pousa plana sob o galo.

Um
e um
e um.
Estavam os três mumificados,
com as moscas do inverno,
com os tinteiros que o cão urina e o vilão despreza,
com a brisa que gela o coração de todas as mães,
pelas brancas quedas de Júpiter onde os bêbados merendam a morte.

Três
e dois
e um.
Eu os vi perdidos chorando e cantando
por um ovo de galinha,
pela noite que mostrava seu esqueleto de tabaco,
por minha dor cheia de rostos e pungentes lascas da lua,
por minha alegria de rodas dentadas e látegos,
por meu peito turvado pelas pombas,
por minha morte deserta com um só passeador equivocado.

Eu havia matado a quinta lua
e bebiam água pelas fontes os leques e os aplausos,
Leite morno encerrado das recém-paridas
agitava as rosas com uma larga dor branca.

Henrique,
Emílio,
Lorenzo.
Diana é dura
mas às vezes tem as tetas nubladas.
Pode a pedra branca pulsar com o sangue do cervo
e o cervo pode sonhar pelos olhos de um cavalo.

Quando se fundiram as formas puras
sob o cri-cri das margaridas,
compreendi que haviam me assassinado.
Percorreram os cafés e os cemitérios e as igrejas,
abriram os tonéis e os armários,
destroçaram três esqueletos para arrancar seus dentes de ouro.
Já não me encontraram.
Não me encontraram?
Não. Não me encontraram.
Porém se soube que a sexta lua fugiu torrente acima,
e que o mar recordou de imediato
os nomes de todos os seus afogados.
  
POEMA DUPLO DO LAGO EDEN

Nuestro ganado pace, el viento espira

Garcilaso

Era minha voz antiga
ignorante dos densos sumos amargos.
Eu a adivinho lambendo meus pés
sob as frágeis folhas molhadas.
Ai, voz antiga de meu amor,
ai, voz de minha verdade,
ai, voz de meu flanco aberto,
quando todas as rosas manavam de minha língua
e a céspede não conhecia a impassível dentadura do cavalo!
Está aqui bebendo meu sangue,
bebendo meu humor de menino pesado,
enquanto meus olhos se quebram no vento
com o alumínio e as vozes dos bêbados.
Deixai-me passar pela porta
onde Eva come formigas
e Adão fecunda peixes deslumbrados.
Deixai-me passar, homenzinhos de cornos,
ao bosque do espreguiçar
e dos alegríssimos saltos.
Eu sei o uso mais secreto
que tem um velho alfinete oxidado
e sei do horror de uns olhos despertos
sobre a superfície concreta do prato.
Porém não quero mundo nem sonho, voz divina,
quero minha liberdade, meu amor humano
no canto mais escuro da brisa que ninguém deseje.
Meu amor humano!
Esses cães marinhos se perseguem
e o vento espreita troncos descuidados.
Oh, voz antiga, queima com tua língua
esta voz de folha de Flandres e de talco!
Quero chorar porque tenho vontade
como choram os meninos do último banco,
porque eu não sou um homem, nem um poeta, nem uma folha,
mas um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado.
Quero chorar dizendo meu nome,
rosa, menino e abeto à margem deste lago,
para dizer minha verdade de homem de sangue
matando em mim a burla e a sugestão do vocábulo.
Não, não, eu não pergunto, eu desejo,
minha voz libertada que me lambe as mãos.
No labirinto de biombos é minha nudez quem recebe
a lua de castigo e o relógio coberto de cinzas.
Assim eu dizia.
Assim eu dizia quando Saturno deteve os trens
e a bruma e o Sonho e a Morte estavam me buscando.
Estavam me buscando
ali onde mugem as vacas que têm patinhas de pajem
e ali onde flutua meu corpo entre os equilíbrios contrários.


CÉU VIVO

Eu não poderei queixar-me
se não encontrei o que buscava.
Próximo das pedras sem sumo e dos insetos vazios
não verei o duelo do sol com as criaturas em carne viva.

Porém eu irei à primeira paisagem
de choques, líquidos e rumores
que tresanda a menino recém-nascido
e onde toda superfície é evitada,
para entender que o que busco terá seu alvo de alegria
quando eu voar mesclado com o amor e as areias.

Ali não chega a geada dos olhos apagados
nem o mugido da árvore assasinada pela lagarta.
Ali todas as formas guardam entrelaçadas
uma só expressão frenética de avanço.

Não podes avançar pelos enxames de corolas
porque o ar dissolve teus dentes de açúcar,
nem podes acariciar a fugaz folha do feto
sem sentir o assombro definitivo do marfim.

Ali sob as raízes e na medula do ar,
comprende-se a verdade das coisas equivocadas.
O nadador de níquel que espreita a onda mais fina
e o rebanho de vacas noturnas com patinhas vermelhas de mulher.

Eu não poderes queixar-me
se não encontrei o que buscava;
porém irei à primeira paisagem de umidades e pulsações
para entender que o que busco terá seu alvo de alegria
quando eu voar mesclado com o amor e as areias.

Vôo fresco de sempre sobre leitos vazios,
sobre grupos de brisas e barcos encalhados.
Tropeço vacilante pela dura eternidade fixa
e amor ao fim sim alvorecer. Amor, Amor visível!

Eden Mills, Vermont. 24 de agosto de 1929.

PAISAGEM COM DUAS TUMBAS E UM CÃO ASSÍRIO

Amigo,
levanta-te para que ouças uivar
o cão assírio
As três ninfas do câncer estiveram dançando,
meu filho.
Trouxeram umas montanhas de lacre vermelho
e uns lençóis duros onde o câncer estava dormindo.
O cavalo tinha um olho no pescoço
e a lua estava num céu tão frio
que teve de rasgar seu monte de Vênus
e afogar em sangue e cinza os cemitérios antigos.

Amigo,
desperta, que os montes ainda não respiram
e as ervas de meu coração encontram-se em outro lugar.
Não importa que estejas cheio de água do mar.
Eu amei por muito tempo um garoto
que tinha uma plúmula na língua
e vivemos cem anos dentro de uma navalha.
Desperta. Cala. Escuta. Ergue-te um pouco.
O uivo
é uma longa língua roxa que deixa
formigas de espanto e licor de lírios.
Já vêm até a rocha. Não alargues tuas raízes!
Aproxima-se. Geme. Não soluces em sonho, amigo.

Amigo!
Levanta-te para que ouças uivar
o cão assírio.


VALSA NOS RAMOS

Homenagem a Vicente Aleixandre por seu poema
O vale

Caiu uma folha
e duas
e três.
Um peixe nadava pela lua.
A água dorme uma hora
e o mar branco dorme cem.
A dama
estava morta no ramo.
A monja
cantava dentro da toronja.
A menina
ia do pinho à pinha.
E o pinho
buscava a pequena pluma do trinado.
Porém, o rouxinol
chorava suas feridas ao redor.
E eu também
porque caiu uma folha
e duas
e três.
E uma cabeça de cristal
e um violino de papel
e a neve apodrecia com o mundo
se a neve dormisse um mês,
e os ramos lutavam com o mundo
um a um
dos a dois
e três a três.
Oh duro marfim de carnes invisíveis!
Oh golfo sem formigas do amanhecer!
Com o muuu dos ramos,
com o ai das damas,
com o croo das rãs,
e o gloo amarelo do mel.
Chegará um torso de sombra
coroado de laurel.
Será o céu para o vento
duro como uma parede
e os ramos desgalhados
irão dançando com ele.
Um a um
ao redor da lua,
dois a dois
ao redor do sol,
e três a três
para que os marfins durmam bem.

Traduções: Claudio Daniel

(Poemas do livro Poeta en Nueva York)

sexta-feira, 12 de junho de 2015

ALGUNS HAIKUS

















sombra de árvore:
conto apenas a você
o que disse o vento


* * *

primeiro dia do ano:
corpos sem nome
nas águas do rio


* * *

pequenas misérias de maio:
onde eu estou
é qualquer parte


* * *

moça no metrô
borboleta de verão
tatuada nas tetas


* * *

jovem cega:
batom vermelho
no vagão do metrô


* * *

após a chuva de inverno
a menina rega
o ipê amarelo


* * *

morador de rua
usa o sol como abajur
viaduto de verão


* * *

árvore inclinada
diz bom dia ao sol,
ele finge que não vê


* * *

o tempo? viagem
do pó ao pó — os pés,
os paus e pedras

Claudio Daniel

terça-feira, 9 de junho de 2015

RETRATO DO ARTISTA



















UMA POÉTICA ENTRE O SILÊNCIO E O RUÍDO

Duda Machado realiza uma arquitetura poética concentrada, com economia sintática, densidade semântica, discurso fraturado, elíptico, espacialização de palavras e linhas. Sua pesquisa formal deriva da leitura intensa de João Cabral de Melo Neto e da Poesia Concreta, mas também da ressonância do Tropicalismo e da contracultura, elementos presentes em outros poetas de sua geração, como Antonio Risério e Waly Salomão. Como letrista de música popular, Duda Machado assina canções como Hotel das estrelas, musicada por Jards Macalé e gravada por Gal Costa no disco A todo vapor. Seu livro de estreia, Zil, publicado em 1977, reúne poemas visuais brutalistas, com clara influência do grafitti, como Paint back, composições breves, irônicas e bem-humoradas (“Inferno: os anjos ouvem / a décima sinfonia de Beethoven”), peças permutatórias, construídas pela repetição das mesmas palavras, em ordem e combinação diferentes (“habitar os abismos / manter a face / voltada para o sol // habitar / manter os abismos / voltados para o sol // os abismos / a face / o sol: / gozo louco”) e inventivos poemas em prosa, como Ária (“lambança, aboio, maracatu, papoamarelo, caroá, xerém, gado preto sobre o campo branco, esplendor de estandartes”).

O desenho minimalista terá continuidade em seu  segundo livro de poemas, Um outro, reunido, juntamente com Zil, no volume Crescente, publicado em 1990. A nova coletânea radicaliza o esforço de concisão, só comparável ao desenvolvido por Carlos Ávila, Ronald Polito e Júlio Castañon Guimarães, e o leque temático se amplia, dialogando de modo mais enfático com a vida e o mundo, como nestas linhas de Visão do avesso: “neon insone / esquinas frigorífico // na madrugada / drogada / céu e asfalto / se ombreiam / exaustos // a um canto / travesti e pivete / apressam um trato // : déja vu / restos / pano rápido”. Em Hora do rush, peça composta de apenas oito palavras, encontramos este pequeno retrato urbano, de um expressionismo ácido: “moinhos / de braços / inimigos / ao vento / s’entre / ferindo”. Em outra peça, Sortilégio, Duda Machado faz um delicado retrato do cotidiano, dialogando com a passante de Baudelaire: “moça / sob a chuva / anda / olha / como quem / abre cortinas // a chuva lhe cai em cima / ou se limita / a segui-la?”. O lirismo não está ausente, mas é redimensionado em estruturas poéticas calculadas que valorizam o som e o silêncio, a figura e o vazio: pensamento, sonoridade e visualidade formam uma unidade estética, na qual a voz lírica e o referente externo são elementos da ficção encenada que é o próprio poema.


Margem de uma onda, publicado em 1997, inaugura nova fase na escrita de Duda Machado: o poeta reconstrói a sintaxe, em versos mais longos, sem cair na mera discursividade. As figuras metonímicas, cortes bruscos, variações de ritmo e palavras inesperadas vivificam a fala, compondo quadros expressivos da cena urbana, como na peça Urubu-abaixo: “overdose de dezenas / de dúzias / desovam / desossam / desencarnam / subterrâneos jardins de infância / de quem mais carniça que criança / abocabraba / saliva rala / tudo que os exprime / reinventa o crime / etês / erês / num bafo de forra / vão mamando cola”. O realismo crítico, em outras peças, aproxima-se, pela paródia, da linguagem jornalística, como acontece em Fim de semana: “Já entraram no barraco fuzilando. / No balão de oito metros de largura / o nome dele estava escrito / com lanternas na rabeira. / Deixaram um corpo amarrado no poste / pra todo mundo ver. / A maior parte / é no fim de semana”. Adivinhação da leveza, livro mais recente do autor, publicado em 2014, mantém a discursividade linear, com temas reflexivos, intimistas e a reinvenção do cotidiano, como no minipoema Jornada: “Sarcasmos do sol, / a pausa e, depois, / o céu inflige / o seu recorde / de cicatrizes”. 

(Artigo publicado na edição de junho da revista CULT)

quinta-feira, 4 de junho de 2015

RETRATO DO ARTISTA




UM LANCE DE BÚZIOS: A POESIA DE ANTONIO RISÉRIO

Antonio Risério pertence a uma geração de poetas brasileiros que, na década de 1970, assimilou o rigor formal da Poesia Concreta, a releitura crítica da realidade brasileira pelo Tropicalismo, as linguagens da publicidade, das histórias em quadrinhos, da música popular, a inquietação da contracultura. Poetas como Risério, Duda Machado, Waly Salomão, Paulo Leminski, Alice Ruiz e Régis Bonvicino publicaram poemas em revistas de vanguarda editadas nesse período, como Código, Raposa, Muda, Qorpo Estranho, e editaram seus primeiros livros por conta própria, com pequenas tiragens. Ao contrário de seus companheiros de geração, Risério reuniu sua poesia em livro vinte anos depois, com Fetiche, publicado em 1996 pela Fundação Casa de Jorge Amado. Nesse volume, o poeta baiano incluiu poemas visuais elaborados com recursos do computador, como “o peixe é sempre o último a saber da água”, e outras composições visuais, mais antigas, criadas a partir da colagem e montagem de fotos, desenhos e textos em várias tipologias de letraset, como é o caso do poema “risos estalam sisos / rios mudam a plumagem / quando renasce das cinzas / o kamikaze da linguagem”. A influência da Poesia Concreta é evidente, mas não exclusiva: podemos reconhecer, no humor, ironia, escatologia e em certo brutalismo desses poemas visuais um parentesco com o dadaísmo, assim como acontece na poesia visual de Glauco Mattoso e Sebastião Nunes.

O ready made, técnica recorrente na poesia e nas artes visuais dadaístas, comparece em várias peças de Risério, como no poema que reproduz um retrato de Fernando Pessoa, recortado e ampliado numa sequência de páginas em que o rosto do poeta português desaparece progressivamente até permanecer apenas um detalhe do bigode, invertido, sugerindo o formato da vagina. Em Guerra nas estrelas, o poeta baiano cria outro ready made, estampando na página um desenho de Flash Gordon, trocando o texto original dos “balões” de diálogo dos personagens da história em quadrinhos por frases de sentido metalinguístico (“se tenho uma estrela para trocar por um estilo novo / tenho um estilo para queimar por um sentido novo”).  Os textos poéticos de Festim exploram com felicidade a musicalidade das palavras, mesclando aliterações, assonâncias, neologismos e termos de origem indígena, iorubá e japonesa, como na série de poemas breves Abayté ya (“alokorô alakorô / oh oxotokanxoxô”) e na Arte poética: “na serra da desordem / no piracambu tapiri / em cada igarapé do pindaré / em cada igarapé do gurupi / existe uma palavra / uma palavra nova para mim”. Em Brasibraseiro, livro escrito a quatro mãos com Frederico Barbosa e publicado em 2004, há uma estratégia de revisitação da cultura brasileira em sua multiplicidade étnica, linguística, religiosa, estética, tendo como perspectiva utópica um novo projeto civilizacional (“para que seja / exterminado / o jugo / para não haver ignorância / tendo porto aberto / a liberdade popular”).

O livro recupera episódios da história brasileira, como a escravidão e a catequese, inclusive parodiando o discurso quinhentista, e chega até a época contemporânea, como no belíssimo poema Strassenkinder, que retrata o cenário de exclusão dos meninos de rua (“crianças de poucos pentelhos / de rubras roupas rasgadas”). É preciso destacar também os pioneiros estudos de etnopoesia realizados por Risério em livros como Textos e tribos e Oriki orixá, este último acompanhado por criativas traduções de poemas rituais da tradição oral nagô-iorubá que celebram os orixás do candomblé, como este belo oriki, pleno de sutilezas sonoras: “Xangô oluaxô fera faiscante olho de orobô / Bochecha de obi. / Fogo pela boca, dono de Kossô”.

(Artigo publicado na edição de maio da revista CULT)