quinta-feira, 27 de novembro de 2014

CADERNOS BESTIAIS (II)




















SERPENTINATA

I

Já que não desprezo nenhuma palavra,
encanta-me pergaminho
onde estranhos cães
da fala.


Nuvens de parietais
dizem a lavoura
obsessiva dos cutelos:


excessiva porque necessária,
investe mamífero mamífero
ante o lacerado pelo púbico


— molusco esse desprezo
que se faz habitação.


A mobilidade das estruturas aquáticas
desorienta solidez de partículas,
(numeração da língua)
desentranhadas até o

ignorado.


Cresce nas axilas,
nos limbos, cremalherias,
nos estudos para voz:
é o seu inexorável destino.


Antiesquelética nebulosa
redefine o tempo e suas cavilações
no jogo permutatório
dos contrários.


(Estes são os meus instrumentos,
minhas paisagens estratégicas
para violar tuas orelhas,
tuas cavidades,


que se recusam à minuciosa
cabala de meu olhar.)


(Encanta-me tua letra, esqueleto de meu canto,
voz que acende estranhos cães.)


A revelação está na língua
que incita ao asbesto da orgia,
à mais temporária das peles,


quando vemos pégasos de outro sonho
e nossa incapacidade de laçá-los.
  

II
estranha mulher intercambiáveis
folhas de outono
ou lâminas de aço

sem corrosão

relaminadas fina a frio,
ou apenas murmúrio
sem jardins nem quintais

só o alinhamento do corte:

o pensar do coração – alto carbono
em conformidade
com a memória – 

(nua entre fósforos acesos)

um adeus e o carboneto de vanádio
em oposição ao cromo –
decapadas, expandidas, minimizadas

palavras entre tuas perplexas peles:

a resistência mecânica do substrato aço
– retalhos, chapas, tubos, barras
e sucatas de ferrosos, para fundição

2012


sábado, 15 de novembro de 2014

CADERNOS BESTIAIS














ANTIMÍDIA X

Quelle est ma langue?

Ionesco

GRUNHE repetindo-se repetindo-se rasura ou réplica de réptil fardos que são palavras farpas de um animal samsárico (repetindo-se repetindo-se) fanhos replicantes repousada em úmeros: caveira neanderthal cor de prata sobre fundo negro (ganchos guinchos repetindo-se) horror social belphagor iniquidade: todo um catálogo de demônios repetindo-se balam belial asmodeus astaroth bicos-de-papagaio encurvados lascas de madeira na boca repicadas repicantes sobre fundo negro letras rúnicas inscritas no crânio antiesfíngicas ruminando cólera astarté ruminando Deutschland über alles, / Über alles in der Welt barão neoliberal bebe urina com os ratos na hora da gárgula na hora vermelha da gárgula na hora do maçarico quando garotos racistas de São Paulo ateiam fogo na mendiga refugos de rastilhos de rebotalhos neste açougue onde repartem carne humana Tíbias são dejetos olhos são dejetos orelhas são dejetos nesta terra de ninguém que a terra há de comer Caso esfiapasse essa pele caso esfiapasse se não fosse hidra se não fosse ira se não fosse asco se não fossem imponderáveis urros no arame da pobre diaba arpejo de pupila em seu desnudamento de planta em seu desnudamento de carne estirada em ganchos balam belial asmodeus astaroth todo um catálogo de demônios repetindo-se em guaches em guantes Tudo queima ela disse Lucidez nenhuma que os dissuadisse nesta terra de ninguém que a terra há de comer

2014














ANTIMÍDIA IX


O Diretor da Grande Revista Semanal
coleciona armas de caça austríacas,
máscaras rituais balinesas,
tapeçarias do Azerbaidjão.
Em sua casa de praia em Búzios,
preserva manuscritos (autênticos)
do Mar Morto, tânagras sumérias,
miniaturas chinesas em terracota,
uma espineta húngara.
Sua verdadeira obsessão:
cachimbos italianos do século XVIII,
pela delicadeza dos entalhes,
composição cromática e a fálica ironia
dos formatos. É incontestável (diz ele,
entre colheres de sopa de ervilha,
aromatizada pelo funcho dos Açores):
— Há corrupção nos governos do PT,
o que não houve nunca, nunca, jamais
na história deste país. Tudo isso
é obra dos Vermelhos, para solapar
as instituições. Veja o Lesbianismo
(por exemplo), o consumo de canabis,
os casamentos interraciais. A estranha
proliferação de corvos na Croácia
é resultado dos governos petistas;
a escassez do lúpulo nas Ilhas Seychelles;
as decapitações de infiéis na Síria
pelos mercenários islâmicos – tudo é culpa
do PT.  Faltou azeitona na minha empada;
as rosas crescem no canteiro dos lírios;
o monte Fuji se declarou em estado de greve
— tudo isso acontece por orientação
da Senhora Presidenta Búlgara,
do Peão Nove Dedos e do Foro de São Paulo.
O que fazer — regurgita o ignívomo —
para deter a sanha insana dos bolivarianos?
(Haveria aqui lugar para a irremissível
conjuração conspiratória, não fosse a hora
ruminante dos aspargos, o precioso instante
para um cálice de Artemisia absinthium,
esses pequenos prazeres singelos
ainda não abolidos pelo petismo-bolchevismo).

2014

















ANTIMÍDIA VIII

A Colunista do Grande Jornal Diário
equilibra-se
nos indispensáveis
saltos Christian Louboutin
para analisar os fatos políticos
com distanciamento crítico
e objetividade jornalística.
Ela é jovem, moderna, sofisticada,
usa vestidos Patrícia Bonaldi
e bolsa cor de prata Hermès
(Mercúrio é a divindade que rege
as comunicações). Em seu twitter,
dispara o último grito
dos bastidores do Congresso,
com senso de humor peculiaríssimo
e a mais apurada reflexão.
Entre um e outro gole de cherry brandy,
folheia, na revista novaiorquina,
as últimas criações de Domenico Dolce
e Stefano Gabbana, inimagináveis
nessa selva selvagem de mortos de fome.
Vivemos no pior dos mundos possíveis,
diz ao seu personal trainer,
o último círculo do ínfero Hades,
onde desfilam hordas de africanos,
índios, pederastas, crianças ramelentas,
estudantes bolcheviques. Massa mal-cheirosa,
escura, ignara, que nunca leu Paulo Coelho,
Afonso Arinos, Fernando Henrique Cardoso.
É impossível viver com essa gente,
pondera com a sua manicure ucraniana,
é preciso dividir o Brasil em bantustões,
para que a raça branca tenha um futuro possível.
Ela acredita na Divina Providência,
no Destino, nas Forças Vivas da Nação.
E aplica suavemente gotas aromáticas
(Ralph Lauren) em sua nuca,
enquanto espera pela Vinda do seu Fuhrer.

2014
   

















ANTIMÍDIA VII


O Apresentador do Grande Telejornal
sofre de terríveis
dores estomacais.
Tosse.
É impotente.
E peida muito.
O Apresentador do Grande Telejornal
tem dispnéia paroxística noturna.
É cardíaco.
Asmático.
Psicótico.
O Apresentador do Grande Telejornal
foi acometido
de taquicardia supraventricular
ou taquicardia patológica
(há divergência
entre os especialistas).
É obeso.
Diabético.
Tem tremores nas mãos.
O Apresentador do Grande Telejornal
sofre de erisipela,
eritema ab igne,
pênfigo
e dermatite herpetiforme.
O Apresentador do Grande Telejornal
tem câncer no reto.

2014

ANTIMÍDIA VI

JORNAIS APOIARAM A DITADURA MILITAR.



















ANTIMÍDIA V

Contra a entranha —
multiplica o medo
no borrão desfigurado;

unhas enegrecidas,
maxilares arrancados,
miuçalha de carcaças.

Nenhuma língua enterrada
na fossa onde caranguejos
copulam com capulhos;

mistério ou talvez corrosão
de ácidos na decapagem
para a despossessão de tudo.

Retrátil, contra teu sangue,
a exaustão do que esfiapa
o símile do pensamento.

Esta pele, tua pele, nenhuma pele:
tudo é número e o número
é legião; meu nome é legião.

2014

















ANTIMÍDIA IV

desentranha.
voz que vem da carne;
adensamento da voz
que recusa ser centaura.
desmultiplicada,
limítrofe da afasia.
no antilabirinto:
fugitiva do Limbo.
que ninguém escuta:
hermafrodita, hermafrodita.
onde queimam fetais:
é absurda, quimérica.
fala para si, solipsista,
como jargão 
de ofícios militares; 
soa tantálica, prometeica, 
como se saísse
de uma boca costurada;
como ressurgido mugido 
de um mamute siberiano.
como se não fosse nenhum
som humano.

2014












ANTIMÍDIA III

Voici le temps des assassins
Rimbaud

Qual é a palavra mais terrível
para definir
essa fragilidade,
essa corrosão?
Em qual aterro
acumulam-se,
entre estrumes,
as multifaces de Rávana?
Ferros oxidados,
oleosidade, madeiras,
feldspato;
arame retorcido,
betume,
secas cabeças
de cogumelos.
Nenhuma hipótese
de lucidez
nessa máquina
para a produção do medo;
nenhuma hipótese
além do imponderável
e sua rude sequência
de mutilações.
Jogos obscenos
como incendiar abrigos
— esta é a estranha
anatomia do precário,
cor difusa que atravessa
todas as letras da epiderme.
Pensamento-ciclope
no comando da sanha
assassina: é assim
que a sociedade de classes
decuplica o abismo em abismos,
com sua raiva infecta,
raiva refugo, raiva corroída,
que mata às cegas.

2014
















ANTIMÍDIA II

Fundo escuro
esta rua de infernais
fungos-de-papiro
onde se espraiam
corpos deformados
— Anúbis enfurecido
ante o massacre.
Tempo caveira
desenterra
escaravelhos ao contrário
onde abismais
esqueletos do nunca
fornicam trevas.
Esta é a cidade esfíngica
onde passos trilhados
ao avesso da membrana.
Esta é a cidade esfíngica
onde a desrazão
navega a insanidade.
Porco burguês.
Porca burguesa.
Chafurdam na mídia pré-histórica,
colecionando cifras.
Onde, nesse caos aritmético,
há lugar para o infinito?
(Tudo é número
nessa configuração
de lamentos:
até os fios de teu cabelo
estão contados,
e assim os anos de tua
breve trajetória.)
Mumifica a pele retesada,
em sarcófagos de cólera:
recolhidas em vasos
(canopos), tuas vísceras,
sob um céu ferruginoso
e o estrondo mudo
de uma pistola de 9mm.
Onde, nesse caos aritmético,
há lugar para o infinito?
Tua face, deserto em miniatura.
Tua voz, imagem-terracota.
Tuas mãos, alfabeto do escarro.

2014














 ANTIMÍDIA I

Tunisiano de cabeça nervurada assenhora-se
da unha mínima
da história
enfurece letras que são bichos
de um minucioso horror
quando a morte engole manápulas
e adensa paisagens-vértebras
daqueles que não têm nome daqueles que
não têm nome nenhum nada além
de ninguém
tudo é um jogo desjogado de lacraus
letras que são bichos no escuro letras que
são lepras de lorpas no escuro
tateando entre os tufos da fome tateando
entre os húmus da usura tateando entre
assemelhar-se anfíbio
assemelhar-se reptante no asco
da rachadura no asco do desvão
em que se obliteram as anfetaminas
da desmemória
linhas incisivas num crescendo menos o focinho
menos a mandíbula menos as
tíbias esmagadas no
fosso monocromático do não –
há uma caixa torácica que canta
sozinha no deserto de Mojave
onde marines enrabam desvestidas traqueias
antes de matarem qualquer coisa viva – 
dentes-de-leão ressonam numa tarde esfumada de setembro
em que um poeta (tunisiano?) soletra a sub-reptícia
sombra da vivissecção.

2014

RETRATO DO ARTISTA


O CINEMA PARA CICLOPES DE ANDREIA CARVALHO

 Andreia Carvalho pesquisa tradições mitológicas ocidentais e orientais, incorporadas em sua poesia de maneira bastante criativa, ao lado de referências das artes visuais, da música e do cinema. A escrita poética da autora curitibana revela uma sensibilidade e um imaginário que nos fazem pensar em certa poesia simbolista de Santa Catarina e do Paraná, especialmente em autores ainda não devidamente incorporados ao cânone, como Ernani Rosas (1886-1955), Dario Vellozo (1869-1937) e Gilka Machado (1893-1980), mais afeitos à dicção demoníaca de um Rimbaud e à escrita cifrada de um Mallarmé do que à suavidade melódica de Verlaine. A ressonância do inquieto signo luciferino permeia a obra da autora, especialmente em seu livro de estreia, A cortesã do infinito transparente (2011), onde encontramos inusitadas sinestesias, como estas: “Mineralizar a lágrima / Fazer-se rútilo // Vibrar além da tua sangria / Pelas ervas, pelas especiarias / Com a estatura do musgo, / dos fermentos, / do sedimento”. Em outra composição, escrita na forma do poema em prosa (gênero inaugurado por Baudelaire), lemos uma quase profissão de fé, entre imagens da mais excêntrica teratologia: “Tenho visões com miríades de seres que pulsam do imaginário. Vegetais, minerais e animais caminham pelo sangue. Entram pela retina e saem pelas mãos: letras e imagens. Depois que sangram não se sabe onde está o mineral, o vegetal e o animal. Carregam no ventre a sagrada comunhão das ossaturas fantásticas, com plasma de ninfa e sílica e olhos andróginos”. A alquimia verbal da autora prossegue em seu segundo título publicado, Camafeu escarlate (2012), que apresenta um título deliberadamente arcaico, como se ela intentasse buscar um timbre que remetesse à segunda metade do século XIX, aos insólitos logradouros onde Baudelaire e Jeanne Duval degustavam ópio ou absinto. A voluntária imersão nesse universo cultural não significa que a poesia de Andréia Carvalho seja passadista ou paródica, no sentido do pós-moderno, muito ao contrário: ela não imita formas literárias clássicas, como o soneto, não escreve versos metrificados ou rimados nem utiliza um vocabulário anacrônico, elementos visíveis na poesia de outros autores que dialogam como o simbolismo, como o carioca Alexei Bueno. Andreia Carvalho pratica, nesse conjunto de poemas, uma escrita concisa, emprega quase sempre letras em caixa baixa e elimina os sinais de pontuação, recursos frequentes nos poetas jovens mais próximos da arquitetura minimalista. No poema de abertura de Camafeu escarlate, por exemplo, lemos estas linhas: “onde estavas / quando eu / afundava a terra / no lago de nadas //na ejaculação dos signos rútilos / nos fósseis auto-retratos // não espelhos, vidros / sentenças do convalescente átrio / não arco-íris, serpente / e vitrais de escamas / a água coagulada”. Notável, nesta peça, a descrição do ausente por uma sucessão de negações, que avançam até surgir “um rosto sobre o abismo / de trevas”. A lírica da negatividade, associada aos temas da solidão, da memória, da angústia, da infância e do sonho atravessa o livro, construindo as mais inusitadas imagens e metáforas, como lemos nestas linhas: “há a criança / vermelha / no sótão coágulo / da memória / (...) / onde não volto mais / escorpiões / vagueiam pelos dentes do leão”, que nos faz pensar na fúria semântica da melhor poesia portuguesa da atualidade, a vertente hermética de um Herberto Helder, outra referência marcante na lírica da autora. Grimório de Gavita (2014), seu livro mais recente, reúne poemas em prosa escritos antes das peças que integram seus dois primeiros livros publicados e apresenta, já no título, a presença do livro de magia (grimório), associado ao nome da esposa de Cruz e Sousa, vítima da miséria e da loucura. Em todas as composições dessa obra encantatória, o registro sinestésico e metafórico e o recurso da compressão semântica (“estrela-trator”, “sapatos-de-lótus”, “dama-oriax”) criam uma quase nova língua, regida por uma lógica visual e sonora. Andreia Carvalho realiza, nesse conjunto de invocações ao lúcifer-da-linguagem, uma das obras mais perturbadoras e belas da novíssima poesia brasileira.

(Artigo publicado na edição de novembro/2014 da revista CULT.)