quinta-feira, 4 de setembro de 2014

RETRATO DO ARTISTA


 TERRITÓRIOS MUTANTES: 
A POESIA DE MARCELO ARIEL

Marcelo Ariel é um estudioso de tradições filosóficas do Oriente, como o sufismo, o budismo, o taoísmo, e um leitor atento de autores considerados herméticos, como o romeno Paul Celan, o inglês William Blake e o português Herberto Helder, com quem compartilha o intenso lirismo amoroso e uma visão herética da espiritualidade, que celebra o corpo, a vida e o estar no mundo, com toda a sua beleza e crueldade. O autor, que vive em Cubatão, cidade industrial da Baixada Santista, pertence, cronologicamente, à chamada Geração 90, mas só começou a publicar os seus poemas em livro na década seguinte, sempre por pequenas editoras: Me enterrem com a minha AR15 saiu em 2007 pela Dulcineia Catadora, numa bem cuidada edição artesanal, e o Tratado dos anjos afogados saiu em 2008, pela Letra selvagem. Nessas obras, o poeta retrata um duro cotidiano de chacinas, favelas incendiadas e desastres como o conhecido episódio de Vila Socó, em 1984, provocado pelo vazamento numa das tubulações da Refinaria Artur Bernardes, que destruiu 500 moradias populares e causou centenas de mortes (o número permanece desconhecido até hoje). No poema Vila Socó libertada, por exemplo, o autor escreve: “(depois do fogo) / no outro dia / (sem poesia) / as crianças (sub-hordas) / procuram no meio do desterror / botijões de gás / para vender”. Em outra composição, intitulada O soco na névoa, Marcelo Ariel, utilizando técnicas de closes, cortes e montagens da linguagem narrativa do cinema, escreve: “No jardim esquizocênico, / Nas balas perdidas, / No perfume / das granadas / explodindo no bar / das Parcas: / Num Eclipse-invertido / seguido de uma chuva fina por dentro / do olhar / da criança recém-esquecida / nesse bar-iceberg para o ‘Bateau Ivre’ no sangue / dos amantes-kamikazes” (versos publicados no livro Tratado dos anjos afogados).

Insólitas sensações e paisagens

O desenho ácido da violência urbana, porém, é apenas uma das facetas da obra de Marcelo Ariel. O livro Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio (São Paulo: Patuá, 2014), cujo lançamento aconteceu em maio no espaço cultural Hussardos, reúne boa parte da produção do poeta e é uma excelente oportunidade mergulharmos nesse universo de insólitas sensações e paisagens, construídas por um hábil artesão que sabe explorar a dimensão sonora, visual, quase tátil, das palavras, em composições como esta: “só o silêncio / intocado o enobrece, / mas não / queda-silêncio-esquecimento / do lugar-esquife, / ou queda-silêncio-equívoco / apenas / queda-símbolo / para o alto-fundo-horizonte-escuro / de seu Letes” (Sobre a morte de Paul Celan). O uso dos travessões e dos cortes sintáticos, além da estranheza com que revestem o discurso, confere agilidade ao ritmo prosódico das linhas e cria ideias pela inusitada associação de termos (lugar-esquife, queda-silêncio-equívoco). O poeta não deseja apenas despertar uma planejada reação emocional ou sensorial no leitor, à maneira de Álvaro de Campos, mas também convidá-lo à reflexão, à cumplicidade intelectual capaz de reconstruir o poema, descortinando outras possibilidades de leitura e interpretação. As imagens poéticas de Marcelo Ariel são altamente sugestivas, aproximando-se tanto da tradição barroca quanto do simbolismo e do surrealismo – relidos pelo poeta de maneira livre, pessoal e instigante. Fazendo um paralelo entre a linguagem poética de Marcelo Ariel e a de Herberto Helder, Claudio Willer observa: “Em comum com o extraordinário poeta português, a fusão ou hibridação de objetos e seres vivos, a ruptura de limites das coisas e dos corpos, as imagens luminosas como ‘osso do oceano’”. O misticismo profano de Marcelo Ariel, que não reconhece fronteiras entre homem e mundo, natureza e artifício, vida e linguagem, alia-se a uma ética de solidariedade que desconsidera dimensões temporais, geográficas ou culturais, aproximando-se de uma estética do furor miscigenado. Pouquíssimos poetas são capazes de construir um discurso crítico da realidade com tamanha expressividade e terrível beleza.

(Artigo publicado na edição de agosto da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)

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