A VOZ INENFÁTICA DE RONALD POLITO
Ronald Polito é um poeta raro em
nossa literatura, capaz de traduzir um “sentimento de mundo” de náusea,
desconforto e aturdimento numa lírica de pequenos gestos, inenfática,
antirretórica, próxima a um voluntário silêncio. Solo (1996), seu primeiro livro publicado, revela a delicada ironia
do autor no próprio título do volume, que faz um trocadilho entre o espaço
geográfico e a solidão, entendida como a sensação de deslocamento num ambiente
onde impera “o sem sentido / apelo do não”, como lemos na epígrafe de Carlos
Drummond de Andrade. A negatividade é expressa em toda a sua dimensão de
absurdo e perplexidade em uma notável composição intitulada Suporte: “São as aparências / (nem todo
mundo vê) / (nem todo mundo fala) / (escuta) / (são as aparências) / (passa uma
incógnita) / (está no ar) // (nunca estivemos aqui)”. Em oito linhas, num
discurso fraturado, recortado, elíptico, o poeta comunica a sua incomunicabilidade,
o desencontro com um outro não nomeado, evitando qualquer delimitação espacial
ou temporal: o discurso é esvaziado ao mínimo possível de elementos, em reação
a uma era em que impera o excessivo. Em outra peça do volume, Ronald Polito
representa o desencanto cético numa fala truncada que recorda as frases
enigmáticas de uma pitonisa romana: “(um pouco porque sem saída) / passos
quando não são pistas / (talvez como o fôlego falte) / janela aberta para o
claustro / xadrez de pedras / poeira sobre a fruteira / (oh rosto roto) / uma
cadeira / onde se sente / (ruga ranhura) / a ausência final / presente / (a
parede em frente) / desapogeu.” Nesta composição, quase uma arte poética do
autor, encontramos alguns de seus principais temas e procedimentos formais,
entre eles o trocadilho irônico (“rosto roto”, “ruga ranhura”), o paradoxo (“a
ausência afinal / presente”), o uso exclusivo da caixa baixa, a eliminação da
pontuação e a mescla de elementos subjetivos e objetos prosaicos do cotidiano,
que se entrecruzam em vários planos, à maneira cubista.
Vaga (1997), seu segundo livro publicado, que apresenta na capa um
trabalho da artista plástica Fani Bracher, é ainda mais concentrado, como se o
poeta intentasse realizar, com palavras, algo próximo à música de silêncios de
Anton Webern ou a pintura sem pintura de Kazimir Maliévitch: “silêncio sem fim
/ um grito em um estojo / -- para não esquecer -- / entre
suspiros afora / rumores de golpes / -- ruídos” (Muda). Este poema é construído a partir
de oposições entre grito e silêncio, memória e esquecimento, ausência e
presença, com economia de metáforas e imagens; a referencialidade é sugerida,
de modo impreciso, por termos como rumores,
suspiros, ruídos. Numa composição de apenas seis linhas (sugerindo a justaposição
de dois haicais), o autor conseguiu criar uma atmosfera de tensão (sintetizada
na linha “um grito em um estojo”) sem usar a voz em primeira pessoa e sem
delimitar ações externas; é um poema altamente sugestivo, que faz pensar na
concisão da poesia japonesa e na pintura de traços mínimos do sumi-ê. Intervalos (1998), terceiro livro do poeta, resume as tentativas
anteriores de expressar as sensações de imobilidade (“é possível deter / o
mecanismo dos relógios”), cansaço (“viver seria um jeito de desistir”) e
solitude (“uma palavra e / dois silêncios”), mas há um elemento novo aqui: o
poema Vão, com sua rica imagética e
versos mais longos, quase descritivos (“Essa pele de luz que banha / as
plantas, a varanda, e se arremessa / em espirais de fluxos”), elementos que
serão desenvolvidos nos títulos mais recentes do autor, De passagem (2001) e Terminal
(2006), onde o discurso se impõe não como simples concessão à narratividade
ficcional e ao registro histórico, mas como experimento de dizer pelo avesso,
fazendo-se outro, em poemas da mais notável fatura. Assim, por exemplo, o poema
Bárbaro (do livro De passagem), que dialoga com o poeta
Armando Freitas Filho: “Um tipo de bicho, / de vírus, vampiro, um clone / mix de ventríloquo / e mímico, sim, anjo
/ sardõnico (demasiado / humano), caracol / com cauterização e gana”. Nesta
primeira estrofe, o autor constroi uma autêntica caricatura verbal, brutalista,
misturando elementos da novela de terror, da teologia, da história em
quadrinhos, do universo tecnológico, para compor um monstro híbrido. Na segunda
estrofe do poema, o autor escreve: “É a hora / do monstro (meu nome é /
multidão), do máximo / denominador comum. / Exaustivo mesmo / quando improvisa,
no atropelo / desse instante de sangue / correndo solto, sem futuro, / que ele
engole ou cospe / desavisado, unânime”. O tom retórico do poema recorda certas
composições de Carlos Drummond de Andrade, em especial o CDA de Rosa do Povo, em que o eu lírico une-se à voz social no protesto contra o
desconcerto do mundo; na composição de Ronald Polito, porém, o sujeito é um eu
cético, para quem a retórica é apenas mais um instrumento de desilusão ou
desconstrução da realidade, tão monstruosa quanto o Leviatã bíblico, cujo nome
é multidão.
Terminal
(2006), livro mais recente do poeta, traz poemas reflexivos sobre o tempo
presente, mais alegóricos do que lacunares, em tonalidades que oscilam entre a
sátira e a melancolia. Nas linhas breves e incisivas do poema Emblema, o autor nos diz: “Esse tempo
não é teu. / Nem nenhum. Capitula teu pacto unilateral. / A tua combustão
espontânea acelera. / Esta é a fronteira entre dois desertos.” O
pessimismo do autor, assim como o de Schopenhauer, pressupõe uma leitura
subjetiva de tempo e espaço, mas, ao contrário do autor da Metafísica do belo e do Mundo
como vontade e representação, não encontramos, na mitologia poética de
Ronald Polito, o diálogo místico com o budismo,o sufismo ou a tradição védica.
Sua lírica não acena nenhuma fácil esperança supranatural, apenas sinaliza, com
estupor, uma realidade árida, composta de “pedras inteiras e / aos pedaços, /
palha para aparar / as pontas dos ossos, / além da reconhecida / voz diminuta
do / caroço do crânio”. Estas linhas pertencem ao poema Um texugo autodidata, que integra a mais curiosa seção do volume,
intitulada Minizoo, um bestiário
alegórico onde encontramos um papagaio que medita em questões da metafísica, um
tigre branco para quem repetir-se é o “único elo / com a necessidade / da
eloquência” e um gorila cuja solenidade invejamos, entre outras surpreendentes
feras (que podemos comparar, pela ironia refinada e riqueza de imaginário, aos
bestiários do escritor paranaense Wilson Bueno, em particular o Manual de Zoofilia). A dimensão
irônica do poeta, evidente em todos os seus livros, alcança talvez maior
sutileza no álbum intitulado Objeto,
que reúne cartões de diferentes cores e formatos com poemas visuais elaborados
entre 1991 e 1997, com projeto gráfico do autor, em parceria com Vicente Abreu.
O diálogo com a Poesia Concreta, uma das referências essenciais em seu percurso
poético, soma-se aqui à ressonância da poesia visual e da poesia-objeto do
catalão Joan Brossa, que conciliou o construtivismo das vanguardas à
irreverência e humor dos primeiros dadaístas e surrealistas (como podemos
verificar nas curiosíssimas composições incluídas no volume Poesia vista, organizado e traduzido por
Vanderley Mendonça). Nos poemas visuais de Ronald Polito, destacam-se os temas
do desencontro, do desengano, do ruído e do equívoco, desde o plano das
relações interpessoais até a própria linguagem, que materializa e multiplica o
caos ruidoso que habitamos.
(Versão ampliada do artigo publicado na edição de setembro da revista CULT,
na coluna RETRATO DO ARTISTA)