CARTOGRAFIA DE IMAGENS PEREGRINAS
Josely Vianna Baptista pesquisa as relações entre palavra, visualidade e movimento, dialogando com as técnicas da fotografia, do cinema e da pintura, especialmente em seus dois primeiros livros publicados, Ar (1991) e Corpografia (1992), este último realizado com a colaboração do artista plástico Francisco Faria. As células verbais são fragmentadas e espalhadas na página como se fossem borrões de tinta em um quadro, com entrealinhamentos e espacejamentos que dissolvem as distinções tradicionais entre prosa e poesia e fazem da escritura uma intervenção ao mesmo tempo visual e sonora, quase tátil, solicitando do leitor uma nova forma de leitura, atenta não apenas à dimensão referencial das palavras, mas sobretudo à sua dimensão física, corporal. Como observa Francisco Faria, em Notas sobre um percurso compartilhado, “a intenção (na fragmentação das palavras) não era somente plástica, mas também funcional, a de quebrar o ritmo da leitura e forçar uma nova ‘respiração’ da fala que a acompanha, mesmo mentalmente” (in JOSELY, 2011: 140). Nesse sentido, podemos estabelecer um paralelo com as pesquisas da autora portuguesa Ana Hatherly, que reivindica a reinvenção da leitura. Barroquismo metafórico, da linhagem de D. Luís de Góngora, mescla-se ao orientalismo de descrições quase microscópicas da natureza e a um despojamento melódico, a uma leveza de canção, que atribui movimento e vitalidade às sentenças, escritas exclusivamente em caixa baixa: “na madrugada fria a paisagem se vê através da paisagem, a geada e a lasca de um jaspe que se parece ao jade, as gazes da geada que esfumam a paisagem, e a lasca de um jaspe que se parece ao jade e se repete jaspe na geada paisagem, na casca de um áspide, na valsa de uma vespa, no rasgo de um outdoor, na aura de um poema, na mineral fumaça da boca de quem fala, no ar em ar em ars que condensa uma imagem, geada, jade, jaspe na pele da paisagem, que o áspero da espera altera em miragem: formigas traçam trilhas na farinha”. O espelhismo entre palavras análogas não é mera busca do artifício, cultismo na era do videoclipe, mas uma relação orgânica entre som e sentido para fazer pulsarem as palavras da tribo: “ritmo por ritmo, prefiro um grito dentro, entre o pecado do original e o paradiso final. prefiro um ruído, um modo sem modos, abrupto, meio sem rumo. um rapto, um modo quase mudo”.
Labirintos neobarrocos
Sol sobre nuvens, publicado em 2007, com
apresentação de Augusto de Campos, reúne os dois primeiros livros de Josely
Vianna Baptista, com o acréscimo do inédito Os
poros floridos, poema longo dividido em seis partes, que dialogam com
fotografias de Francisco Faria. Este trabalho poético é o que se situa mais
próximo do chamado neobarroco, linha de pesquisa criativa desenvolvida a partir
da década de 1970 na América Latina, tendo como ilustres precursores o cubano
Lezama Lima e o brasileiro Haroldo de Campos. A escrita neobarroca é fortemente sugestiva,
sensorial, investe em imagens raras, palavras insólitas, labirintos sintáticos
e mesclas de diferentes repertórios culturais, do Ocidente e do Oriente. O
poeta neobarroco é fascinado pelas antigas religiões, por culturas indígenas,
orientais, africanas, e projeta esse encantamento na construção do poema,
pensado como um cubo mágico, enciclopédia do insólito ou cartografia mutante, ou
ainda como um campo magnético que atrai as limalhas de outras concepções de
arte, vida e mundo, diferentes das concepções colonialistas, com a sua lógica
linear e o seu culto monoteísta ao deus mercado. Em Os
poros floridos temos uma “épica sem enredo” (Donald Keene) ou sucessão
vertiginosa de imagens que celebram a beleza de “raras simetrias”, em
“planícies de ônix”, onde “tudo é igual e diferente de si mesmo”. Os elementos
da natureza são “chuvas de alfabetos secretos”, que se desdobram em “lascas de
pedra fraturada”, na “flor coral do cáctus” e “no invisível de olhos / que se
fecham em silêncio”. O poema movimenta-se numa sequência de closes cinematográficos, sem ações ou
personagens identificáveis, apenas cenários sobrepostos que constroem todo um
universo de sugestões plásticas: “Folha seca, leonina, / pétala rubra, folha
fulva, opaline, / pétala crespa: veludo vermelho-bispo / perdido entre a
educação dos cinco sentidos”. As linhas do poema são agrupadas em blocos de
texto distribuídos na página à maneira do ideograma, estampando a visualidade
da escrita e as mudanças de dicção, representadas pelo uso do itálico: temos
duas vozes aqui, dueto de amantes que se entregam ao jogo amoroso da linguagem,
no qual “as peles são silêncios, / poemas que se deixam, / e o lugar é aqui, e
lá, e ontem, / e as letras voam, revoam, / espreitam como cobras sob a areia /
(camaleões se escondendo em si mesmos), / espiam as peles que se espalham,
página / ou pálea, corpo que se desveste, desmente, / desvaira: tudo é
miragem”.
O idioma mestiço
Roça barroca, publicado em 2011, com
apresentação do escritor paraguaio Augusto Roa Bastos, reúne a produção mais
recente de Josely Vianna Baptista, incluindo poemas inéditos e traduções de
três cantos sagrados da etnia Mbyá-Guarani do Guairá. A peça que abre o volume
é um belíssimo relato cosmogônico, que recria em português o sentido e as
sutilezas do texto original, rico em aliterações, assonâncias, anáforas e rimas
internas: “Yvára jechaka mba’ekuaa, /
yvára rendupa, / yvára popyte, yuyra’i, / yvára popyte rakã poty, / oguerojera
Ñamanduí / pytû yma mbytére”, que a autora recria nessas linhas: “O lume de
seus olhos-de-céu, / os divinos ouvidos, / as palmas celestes arvorando o cetro,
/ as mãos celestes com os brotos floridos / abriu Ñamanduí, desabrochando / do
caos obscuro do começo”. O interesse de Josely Vianna Baptista pela arte e
cultura das tribos indígenas brasileiras e sul-americanas é antigo – vem desde
os Cadernos de Ameríndia, em que
reuniu traduções de poemas e relatos míticos de diferentes etnias – e pode ser incluído
no campo de pesquisa conhecido como etnopoesia, apresentado pelo autor
norte-americano Jerome Rothenberg. Em seu livro Etnopoesia do milênio, Rothenberg escreve que “certas formas de
poesia, assim como certas formas de arte, permeavam as sociedades tradicionais
& de que estas formas geralmente religiosas não apenas se assemelhavam, mas
há muito já haviam realizado o que os poetas experimentais e artistas estavam
tentando fazer” (ROTHENBERG, 2006: 6). A
partir dessa premissa teórica, o autor passou a traduzir textos poéticos –
muitos deles da tradição oral – de povos ameríndios, esquimós, orientais e
africanos buscando recuperar os jogos sonoros e semânticos fazendo amplo uso de
recursos das poéticas de vanguarda, como a espacialização das linhas e a
criação de neologismos, indo na contramão das traduções convencionais, que
buscam recuperar apenas o “conteúdo” do texto, como se fosse algo separado, e
mais importante, que o artesanato linguístico. A lição de Rothenberg inspirou
diversos trabalhos importantes de etnopoesia realizados no Brasil por Josely
Vianna Baptista e também por Antonio Risério (Oriki orixá), Douglas Diegues (Kosmofonia
mbya guarani) e Sérgio Medeiros (Popol
Vuh), além da saga ficcional de Wilson Bueno em Mar paraguiayo, novela
escrita na forma de poema em prosa, num idioma mestiço contaminado pelo
espanhol e pelo guarani. A contraparte dialética desse diálogo com as tradições
indígenas é a miscigenação da própria escrita poética de Josely, como
verificamos na segunda parte de Roça
barroca, intitulada Moradas nômades.
Assim, no poema intitulado Treno, lemos: “quem sabe sejam só / (garapuvu guaperubu) / flores dispersas,
flores / (guapivuçu guaperevu) /
rente ao limo do açude / ou um viés de sol/ réstia do alvorecer / a rebelar-se
/ (a sós) / guapuruvus / pétalas”. A autora não apenas incorpora vocábulos
guaranis em seu texto, mas deixa-se seduzir pela música Mbyá-Guarani, alinhando
células rítmicas que procuram recriar, no poema escrito em português, algum
aroma dessa singular pintura sonora. Em outras peças do livro, Josely recupera
episódios da história da colonização portuguesa no Brasil – das cartas de
Manuel da Nóbrega à saga do padre Antônio de Gouveia, clérigo em Pernambuco –,
descreve paisagens naturais, encontros inesperados e pequenas epifanias com uma
sutileza e maestria que são únicas na poesia brasileira, como neste breve poema
que quase resume a poética da autora: “soltas / do caule / as pétalas / do ipê
/ descolorem / a penugem / dos talos / (de repente / leves, / da corola /
livres), / em alvoroço / viçam / -- após lento / pouso -- / de sol / o capim”.
(Versão ampliada do artigo que publiquei
na edição de julho da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)
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