Claudio Daniel
Sionismo (
em hebraico ציונות) é a
ideologia desenvolvida na segunda metade do século XIX pelo jornalista e
pensador político austríaco Theodor Herzl (1860-1904), que defendia a criação
de um estado nacional para os judeus na Palestina, na época administrada pelo
Império Otomano. A doutrina de Herzl incorporou conceitos do pensamento
político europeu do período, em especial o nacionalismo, o darwinismo social
e o colonialismo. Em seu livro
Der
Judenstaat (O estado judeu),
publicado em 1896, o autor afirma: “Não considero a questão judaica nem
como uma questão social, nem como uma questão religiosa, qualquer que seja,
aliás, o aspecto particular sob o qual ela se apresenta, conforme os tempos e
lugares. É uma questão
nacional” (HERZL, 1956: 42). A afirmação dos
judeus como
povo ou
nação, porém, é
reconhecida pelo autor como problemática, uma vez que há muitos séculos os
judeus se espalharam por diferentes países, especialmente no Leste da Europa,
onde são conhecidos como
ashkenazis (
em
hebraico אַשְׁכֲּנָזִי ), na Espanha e no norte
da África, onde estão os
sefaraditas (
em
hebraico ספרדים), e
também nos Estados Unidos, na Ásia Central, África Negra e no Oriente Médio,
onde se encontram descendentes de povos convertidos ao judaísmo na antiguidade,
como os
falashas (em hebraico ביתא ישראל,) da Etiópia, os
chiang-min e os yutai da China e os menashe (em
hebraico בני מנשה;
) da Índia (o caráter proselitista do
judaísmo nos primeiros séculos da era cristã é referido pelo historiador
israelense Shlomo Sand no livro A
invenção do povo judeu, onde afirma que os próprios sefaradins e ashkenazis seriam descendentes de povos convertidos
à fé judaica. O pensamento judaico tradicional considera que a diversidade
étnica dos judeus deriva das treze tribos da Israel bíblica). Herzl estabelece o
princípio de que “nossa comunidade étnica é particular, única: a bem dizer, nós
não nos reconhecemos como pertencentes à mesma raça senão pela fé dos nossos
pais” (idem, 129), e ainda por “certos sinais exteriores relativos aos
vestuários, aos hábitos da vida, aos usos e a língua” (idem, 44), sendo esta
última não o antigo hebraico, que caíra no esquecimento, mas sobretudo o
iídiche, derivado do antigo
idioma alemão, falado nas comunidades judaicas espalhadas na Europa Central e
do Leste, enquanto na Península Ibérica e no Norte da África surgiu o dialeto
judeu-espanhol, ou
ladino. A ênfase na herança genética como
elemento constitutivo da nacionalidade está ausente no livro de Herzl e seria
elaborada por outros autores sionistas, entre eles Max Nordau (1849-1923),
Martin Buber (1878-1965) e Vladimir Jabotinsky (1880-1940), expoente do
sionismo revisionista, para quem “uma terra natural, uma língua, uma história
comuns, tudo isso não constitui a própria essência da nação, mas sua simples
descrição (...). A essência da nação (...) reside em seu atributo físico
específico, na fórmula de sua composição racial” (in SAND, 2011: 467-468). O
acréscimo de um pensamento biológico e de um messianismo religioso no
nacionalismo judeu laico seria essencial para a formatação da ideologia
sionista e da própria base jurídica do moderno Estado de Israel, como veremos
mais adiante.
Recusa da assimilação
A diáspora judaica pelo mundo, conforme o
pensamento de Herzl, em vez de levar a uma completa assimilação dos judeus nas
sociedades em que viviam, contribuiu para o surgimento do antissemitismo
:
“Ninguém negará a situação infeliz dos judeus. Em todos os países onde vivem,
por menos numerosos que sejam, a perseguição os atinge” (idem, 55). Com efeito,
a sucessão de
pogroms nos
anos 1880, especialmente na Rússia, Romênia e em outros países da Europa
Oriental, somada à repressão policial e às restrições legais impostas pelo
czarismo, levaram milhões de judeus ao exílio. Conforme escreve Shlomo Sand,
historiador israelense da Universidade de Tel Aviv, “entre 1880 e 1914, por
volta de 2 milhões e meio de judeus de língua iídiche refluíram para países
ocidentais, passando pela Alemanha, e parte deles chegou até as margens da terra
prometida do continente americano” (SAND, 2011: 453-454). O fluxo migratório,
porém, teve escassa relação com o projeto sionista: “menos de três por cento
dos judeus escolheram emigrar para a Palestina otomana, a qual, em sua maioria,
abandonaram em seguida” (idem). Por outro lado, a igualdade de direitos entre
judeus e gentios, embora fosse garantida na legislação de vários países
europeus, não garantia sua segurança ou reconhecimento como cidadãos plenos,
sendo que “os postos médios no exército, na administração, e os empregos
particulares lhes são inacessíveis” (HERZL, 1956: 55). Os judeus, prossegue
Herzl, seriam atacados “no seio dos parlamentos, das assembléias, na imprensa,
do alto do púlpito sagrado, na rua, em viagem”, concluindo o autor que “os povos
entre os quais habitam judeus são, sem exceção, aberta ou disimuladamente,
antissemitas” (idem, 57). A partir do sombrio diagnóstico da situação dos
judeus na Europa, Herzl afirma a inutilidade de qualquer tentativa de adaptação
das comunidades judaicas aos estados nacionais em que viviam há incontáveis
gerações — motivo pelo qual se opõe aos casamentos mistos
entre
judeus e não-judeus, como no caso da Hungria, onde, segundo ele, “a forma atual
da instituição do casamento aumentou ainda por diferentes modos as dissidências
que existem na Hungria entre os cristãos e os judeus e, por esse processo, tem
prejudicado mais do que servido à fusão das duas raças” (idem, 44). Recusando a
assimilação, que considera empresa fadada ao fracasso, Herzl propõe como
alternativa a criação de um estado nacional para os judeus, que seria
vantajosa, conforme o seu pensamento, para os próprios países europeus, que
assim ficariam “livres” dos judeus
.
Além disso, o estabelecimento de um estado nacional judeu na Palestina representaria
“um pedaço de fortaleza contra a Ásia, seríamos a sentinela avançada da
civilização contra a barbárie” (idem, 73). “Ficaríamos como estado neutro, em
relações constantes com toda a Europa, que deveria garantir a nossa existência”
(idem), conclui, antecipando a relação privilegiada que o futuro Estado de
Israel teria com os Estados Unidos, França e Inglaterra, exercendo um papel
estratégico no controle do Oriente Médio conforme os interesses dos países
imperialistas (e recordemos aqui o conflito de 1956, em que as Forças Armadas
israelenses tiveram um papel destacado na ocupação do Canal de Suez). A guarda
dos lugares sagrados da tradição judaico-cristã é também pensada por ele como
atribuição do estado judeu: “Formaríamos a guarda de honra em volta dos lugares
santos e garantiríamos com a nossa existência o cumprimento deste dever. Essa
guarda de honra seria para nós o grande símbolo da solução da questão judaica,
depois de dezoito séculos de cruéis sofrimentos” (idem). A guarda dos lugares
santos de Jerusalém, efetivamente, passou para o controle de Israel, a partir
da Guerra dos Seis Dias, em 1967, com a anexação ilegal de Jerusalém Oriental,
contrariando decisão da ONU. Nesta cidade reverenciada pelas três religiões do
deserto – judaísmo, cristianismo, islamismo – encontram-se o Muro das
Lamentações, que a tradição judaica considera como um vestígio do Segundo
Templo de Salomão, destruído pelos romanos em 70 d.C., e também a mesquita de
Al-Aqsa (
المسجد
الاقصى) e o Domo da Rocha, os lugares
mais sagrados na religião islâmica ao lado das cidades de Meca e Medina. O
controle da Esplanada das Mesquitas pelas forças de segurança israelenses tem
provocado constantes conflitos com os fieis muçulmanos, como ocorreu em
setembro de 2000, quando a visita de Ariel Sharon ao Monte do Templo, protegido
por um grande aparato policial, foi o estopim da Segunda Intifada.
Palestina ou Argentina?
Para a realização de seu projeto de fundação
de um estado nacional judaico, Herzl propõe a criação de duas entidades: a
Sociedade dos Judeus, responsável pela escolha do país onde seria estabelecida
a entidade sionista – o autor sugere a Palestina ou a Argentina – e a Companhia
dos Judeus, que iria se ocupar “da liquidação dos interesses materiais dos
judeus que se retiram” (idem, 64) para a nova pátria, bem como pela organização
das relações econômicas no estado judeu. Comparando os benefícios oferecidos
pela instalação da comunidade judaica na região do rio da Prata ou nas margens
do Jordão, Herzl escreve em seu opúsculo: “Devemos preferir a Palestina ou a
Argentina? A Sociedade aceitará o que lhe derem, tendo em consideração as
manifestações da opinião pública judia a esse respeito” (idem, 73), frase em
que está implícito o desejado apoio da comunidade europeia ao seu propósito
territorial. “A Argentina é um dos países naturalmente mais ricos da Terra”,
prossegue, “de uma superfície colossal, com uma fraca população e um clima
temperado” (idem), juízo que recorda o parecer do movimento sionista em relação
à Palestina, que seria uma “terra sem povo”. “A Argentina teria interesse em
ceder-nos um pedaço de território”, continua. “A atual infiltração judaica
produziu aí, é certo, mau humor. Seria preciso explicar à República Argentina a
diferença essencial de nova migração judia”, conclui, insinuando, novamente, a
suposta missão civilizacional do estado judeu. Em relação à Palestina, Herzl é
mais enfático: “A Palestina é a nossa inolvidável pátria histórica. Esse nome
por si só seria um toque de reunir poderosamente empolgante para o nosso povo.
Se S.M. o Sultão nos desse a Palestina, poderíamos tornar-nos capazes de
regular completamente as finanças da Turquia” (idem). Argentina e Palestina, no
entanto, não seriam as únicas opções discutidas no interior do movimento
sionista. Conforme escreve André Gattaz no livro A guerra da Palestina, “outros
locais foram considerados, como Chipre, Quênia, Congo e Península do Sinai –
alguns dos primeiros sionistas chegaram mesmo a propor que banqueiros judeus
comprassem parte do território do oeste dos Estados Unidos para destinar à
nação judaica” (GATTAZ, 2002: 22). A escolha final, porém, recaiu sobre a
Palestina, “devido a suas implicações religiosas, pois se caracterizava, no
discurso judaico, como a ‘Terra Prometida’” (idem). Convém recordar que até o
início do século XX havia cerca de 60 mil judeus na região, sendo que muitos
resolveram imigrar para a Terra Santa por sentimentos religiosos, enquanto a
população palestina árabe nativa era calculada em torno de 500 mil pessoas.
Herzl traça as linhas
gerais da criação do lar nacional judaico prevendo “um plano previamente
organizado”, que incluía a compra de “grandes extensões de terra” (HERZL, 1956:
73), a construção de “caminhos, pontes, estradas” (idem, 65), além do estabelecimento
de telégrafos, retificação de rios e edificação de moradias. Herzl recusa a
adoção do hebraico como língua nacional, posto que poucas pessoas compreendiam
esse idioma: “Cada um guarda a sua língua, que é a cara pátria do seu
pensamento. No que concerne à possibilidade do federalismo de línguas, a Suíça
nos oferece exemplo decisivo” (idem, 129), previsão que não se tornou realidade
no estado israelense, que reabilitou o hebraico como idioma nacional e
jurídico, embora outras línguas sejam faladas no trato cotidiano na
multinacional sociedade israelense. A jornada de trabalho seria de sete horas
diárias, com um regime hierárquico militarizado nas empresas, e as mulheres
estariam isentas da execução de trabalhos pesados. O novo estado, embora
étnico, não seria teocrático: conforme escreve Herzl: “O exército e o clero
devem ser tão altamente honrados quanto as suas belas funções o exigem e
merecem. No estado que os distingue, eles nada têm a dizer, porque de outra
forma provocariam dificuldades exteriores e interiores” (idem, 129), passagem
que hoje soa irônica, face ao caráter cada vez mais militarizado e teocrático
do Estado de Israel, onde a cidadania plena é concedida apenas a indivíduos que
tenham mãe judia, conforme critério biológico de raça e nacionalidade. O
serviço militar é obrigatório para homens e mulheres e o orçamento militar
israelense é um dos mais elevados do Oriente Médio. A ironia é ainda maior
nesta passagem: “Cada um é completamente livre na sua fé ou na sua
incredulidade como na sua nacionalidade. E se acontece que fieis de outra
confissão, membros de outra nacionalidade habitam também conosco,
conceder-lhes-emos proteção honrosa e a igualdade de direitos” (idem), o que
nunca foi realizado nos territórios tomados dos palestinos, onde se encontram
comunidades árabes religiosas cristãs e muçulmanas que em nenhum momento
tiveram igualdade de direitos em relação aos judeus. Em outra discrepância
entre profecia e realidade, Herzl afirma que “os judeus, sem dúvida, não terão
mais inimigos no seu próprio estado” (idem, 137), tese desmentida pelo
constante conflito não apenas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, mas também nas
cidades israelenses, onde vivem mais de um milhão de árabes, vítimas frequentes
de ataques racistas por parte de grupos sionistas radicais. Como exemplo
recente, podemos citar a punição coletiva ao povo palestino exercida por
militares e colonos sionistas armados em julho de 2014, em represália a um caso
não-esclarecido de sequestro e assassinato de três jovens israelenses. A verdadeira
operação de guerra levada a cabo por Israel vitimou um total de 47 civis
palestinos, incluindo crianças e adolescentes, nas duas primeiras semanas, além
de um número desconhecido de feridos pelos bombardeios da Força Aérea
israelense na Faixa de Gaza. Cerca de 700 civis palestinos foram detidos para
investigação no mesmo período, 800 casas foram revistadas por soldados e várias
em seguida demolidas, a partir da suspeita de vínculo de seus proprietários com
acusados de terrorismo, e pelo menos mil estabelecimentos comerciais foram
fechados na Cisjordânia sob a mesma alegação e com o propósito não-declarado de
prejudicar a economia palestina e o abastecimento da população civil. Um caso
especialmente chocante registrado nessa guerra não-declarada é o do jovem
palestino Mohammed Abu Judair, de 16 anos, sequestrado, torturado e queimado
vivo por colonos sionistas, sem que houvesse apuração policial e punição dos
assassinos.
O
sionismo é uma forma de racismo
O
meticuloso projeto de ocupação da Palestina para a criação do lar nacional
judaico seguiu desde o início uma lógica de tipo colonialista, que imagina o
imigrante europeu como o artífice da civilização e da cultura em terras onde
reina o “primitivismo” e a “barbárie” (a deformação deliberada da imagem do
mundo árabe e muçulmano para justificar sua exploração pelas potências
ocidentais é o tema do livro clássico de Edward Said, Orientalismo. O Oriente
como invenção do Ocidente). Em nenhum momento, Herzl se refere à população
nativa da Palestina, como se ela não existisse (um dos futuros slogans do
movimento sionista seria justamente esse: “uma terra sem povo para um povo sem
terra”. Na década de 1970,
a primeira-ministra
israelense Golda Meir atualizaria o axioma, declarando que “os palestinos não existiam”
e que eram um “povo inventado ”). A ocultação de que a Palestina já existia
como país e tinha uma população estabelecida na região há milhares de anos nada
teve involuntária ou ingênua: conforme escreve Norman Finklestein, autor do
polêmico livro A indústria do Holocausto, “a liderança sionista não tinha
nenhuma ilusão de que seu projeto não teria que ser imposto sobre a extensa
maioria árabe ou que sua implementação poderia ser cumprida sem a violação
egrégia das normas democráticas” (in GATTAZ, 2002: 27).
O
componente racista do sionismo, apenas implícito no opúsculo de Herzl, seria
desenvolvido por outros pensadores judeus na segunda metade do século XIX,
entre eles Heinrich Graetz (1817-1891), autor de Roma e Jerusalém (1862), e Max
Nordau (1849-1923), autor de Entartung (Degeneração). A ideia de uma nação
judaica como “entidade étnica”, segundo Shlomo Sand, “era comum, em vários
graus, a todas as ramificações do pensamento sionista, e a nova “ciência”
biológica conheceu então um grande sucesso” (SAND, 2011: 460-461). Um dos mais
destacados autores sionistas, Nathan Birnbaum (1864-1937), considerava a
biologia, e não a língua ou a cultura, como a base para a formação das nações.
Sem a herança genética, acreditava Birnbaum, não seria possível compreender a
existência de uma nação judaica, cujos integrantes provêm de diferentes países,
falam numerosas línguas e possuem pouca coisa em comum além da fé religiosa.
Aplicando sua interpretação peculiar da biologia à história das mentalidades,
Birnbaum escreve: “É por conta da oposição entre as raças que o alemão e o
eslavo pensam e sentem de forma diferente que o judeu. Assim se explica
igualmente o fato de o alemão ter criado a Canção dos niebelungos, enquanto o
judeu deu origem à Bíblia” (idem). Max Nordau, por sua vez, “introduziu na
concepção nacional judaica uma dimensão ideológica mais significativa”, escreve
Shlomo Sand. Conforme o teórico húngaro, autor de Degeneração, “os judeus
constituíam claramente um povo de origem biológica homogênea” (idem, 464), que
deveria educar-se no trabalho com a terra, a ginástica e a educação física ao
ar livre para o “progresso da raça” (idem). O pensamento de Nordau, que
mesclava conhecimentos superficiais de biologia e história com toda sorte de
preconceitos do conservadorismo europeu da época, faria inveja a Himmler e
Julius Streicher: o irrequieto sionista procurou prevenir o mundo contra os
supostos perigos da arte moderna, da homossexualidade e das doenças mentais,
todas elas, segundo o seu parecer, fatores de “deterioração física da raça”
(idem, 463). Martin Buber (1878-1965), por sua vez, considerava que “o sangue é
uma força que constitui nossas raízes e nos vivifica (...). As camadas mais
profundas de nosso ser são determinadas por ele, (...) nosso pensamento e nossa
vontade lhe devem seu mais íntimo colorido. (...) O sangue, o mais profundo e o
mais poderoso substrato da alma” (idem, 465-466). O ponto máximo discurso
racista desenvolvido pelo sionismo, no entanto, foi sem dúvida atingido pelo
ucraniano Vladimir (Ze’ev) Jabotinsky (1880-1940), para quem, segundo Shlomo
Sand, “a formação das nações tem como base grupos raciais (que hoje chamaríamos
‘etnias’), e a origem biológica constitui o psiquismo (a ‘mentalidade’ na
linguagem atual) dos povos” (idem, 467). Como os judeus não possuem história ou
língua comuns, “nem território onde teriam vivido juntos durante séculos e
sobre os quais uma cultura etnográfica unificada poderia ter se cristalizado”,
Jabotinsky conclui que “o sentimento da identidade reside no ‘sangue’ do homem,
em seu tipo físico e racial” (idem, 467). O “tipo físico do povo”, escreve
Jabotinsky, “reflete sua estrutura mental de maneira ainda mais total e
perfeita que o estado de espírito individual” (idem). A partir dessas
premissas, o autor ucraniano conclui: “É fisicamente impossível que um judeu,
nascido há várias gerações de pais de sangue judeu livre de qualquer
miscigenação, se adapte ao estado de espírito de um alemão ou de um francês,
assim como é impossível para um negro deixar de ser negro” (idem). Jabotinsky,
além do trabalho realizado como escritor, tradutor, jornalista e militante do
movimento sionista, foi o criador da Irgun (em hebraico ארגון,
"organização"), milícia paramilitar dissidente da Haganá (em hebraico
ההגנה,
"defesa") que
operou na Palestina na época do Mandato Britânico, entre as décadas de 1930 e
1940, realizando diversas atividades terroristas contra alvos britânicos e
palestinos, sendo a mais célebre o atentado ao King David Hotel, em 1946, que
matou 91 pessoas, de diversas nacionalidades. A ação terrorista foi coordenada
por um jovem militante sionista que se tornaria conhecido internacionalmente:
Menachen Begin (1913-1992), o futuro primeiro-ministro israelense que recebeu o
Prêmio Nobel da Paz em 1978, pela assinatura dos acordos de Camp David com
Egito. Quatro anos depois, Begin foi responsável pela invasão do Sul do Líbano,
que resultou na morte de milhares de civis em Beirute e imediações,
destacando-se o tristemente célebre massacre dos campos de refugiados de Sabra
e Chatila (em árabe (em árabe مذبحة صبرا وشاتيلا,).
A invenção do Estado de
Israel
O
sionismo, tal como apresentado por Theodor Herzl no livro O estado judeu, é uma
doutrina política similar a outras tendências de pensamento nacionalista em
vigor na Europa na segunda metade do século XIX. A partir do Congresso Sionista
realizado em 29 de agosto de 1897 na cidade de Basiléia, Suíça, o sionismo
revelou-se como um movimento político internacional, responsável por atividades
de organização, negociação e colonização , tendo como objetivo final o
estabelecimento do estado nacional judeu. Nos anos seguintes ao congresso,
Herzl realiza inúmeras viagens, buscando o apoio diplomático da Alemanha,
Rússia, Inglaterra e do Império Otomano ao seu projeto. Conforme escreve André
Gattaz, no livro A guerra da Palestina, Herzl encontrou-se na Rússia com dirigentes
antissemitas, como os ministros czaristas Plehve e Witte, que “o informaram da
disposição do czar de apoiar moral e materialmente o movimento sionista nas
medidas que provocassem a diminuição da população judaica na Rússia” (GATTAZ,
2002: 24). Embora tais conversações “não tenham levado a acordos concretos”,
prossegue o autor, “Herzl estabeleceu um precedente que foi seguido por
diversos líderes sionistas das futuras gerações, que não hesitaram em ter
relações com defensores do antissemitismo” (idem, 26). O pacto paradoxal entre
sionistas e antisssemitas foi apontado por intelectuais judeus como o professor
norte-americano Norman Finkelstein, para quem “o sionismo político não desejou
combater o antissemitismo, mas encontrar um modus vivendi com este” (idem, 28),
fenômeno que adquiriu feições mais sombrias na II Guerra Mundial, quando as
organizações sionistas colaboraram em diversas situações com os nazistas, o que
foi amplamente documentado e revelado por Hannah Arendt no livro Eichmann em
Jerusalém . Ao movimento sionista, era mais conveniente a segregação do que a
assimilação dos judeus nos países onde viviam, porque a privação de direitos e
ausência de cidadania plena poderiam ser elementos motivadores para a
imigração, ao passo que a assimilação configurava um empecilho a esse projeto.
André
Gattaz ressalta que o sionismo, ideologia nacionalista laica, encontrou
resistência na maior parte dos rabinos europeus, para quem essa doutrina
“contrariava a idéia de uma nação judaica baseada nos laços espirituais,
independente do local de residência, e trazia o judaísmo para o nível de uma
ideologia secular, afastando-o dos verdadeiros princípios religiosos” (GATTAZ,
2002: 28-29). Além disso, muitos consideravam o sionismo político como herético
e defendiam um “sionismo espiritual, que via a Palestina como o centro cultural
do judaísmo” (idem). Apesar das resistências dos rabinos tradicionalistas e dos
judeus assimilados, o movimento sionista obtém a simpatia dos governos
europeus, a partir do final da I Guerra Mundial, conflito no qual o Império
Otomano foi derrotado pelas forças aliadas – Inglaterra, França e Estados
Unidos. Chaim Weissmann, que sucede Theodor Herzl na liderança do movimento
sionista internacional, estabelece relações com líderes políticos ingleses,
como Lloyd George, Herbert Samuel, Mark Sykes e Arthur Balfour, obtendo o seu
apoio para a causa sionista, após “mostrar as vantagens estratégicas para a
Inglaterra de um Estado judeu na Palestina” (idem, 41). Em carta endereçada a
um de seus simpatizantes políticos, datada de 1914, Weissmann já afirmava que
“se a Palestina ficar sob a esfera de influência britânica, e se a Inglaterra
encorajar um assentamento judaico ali, como uma dependência britânica, nós
poderíamos ter em 20 ou 30 anos mais de um milhão de judeus (...), que
formariam uma guarda bem efetiva para o Canal de Suez” (idem). Com efeito, como
resultado do Acordo Sykes-Picot , firmado em 1916 entre Inglaterra, França,
Rússia e Itália, que dividiu o Império Otomano entre as forças aliadas, coube
aos ingleses o domínio sobre a Jordânia e Iraque, enquanto a França recebeu o
controle administrativo do sudoeste da Turquia, Síria, Líbano e norte do
Iraque. A Palestina, a princípio, ficaria sob jurisdição internacional, mas na
prática foi incorporada pelo Mandato Britânico. No início de 1917, Weissmann
realizou esforços junto ao governo inglês para conseguir um compromisso formal
do Império Britânico em favor da criação de um estado nacional judeu na
Palestina, e o resultado foi a conhecida Declaração de Balfour, um bilhete
escrito pelo secretário do exterior britânico, Lord Arthur James Balfour, ao
banqueiro sionista Lord Rotschild, no qual afirmava: “O governo de Sua
Majestade vê com aprovação o estabelecimento na Palestina de um lar nacional
para o povo judeu, e fará todos os esforços para facilitar a obtenção de tal
objetivo, ficando claramente expresso que nada será feito que possa prejudicar
os direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas na Palestina ou os
direitos e status político dos judeus em qualquer pais” (idem, 43). A
declaração, sem valor legal – na época em que foi redigido, a Palestina
encontrava-se sob administração do Império Otomano – contrariava as garantias
que o governo inglês apresentou anteriormente ao emir de Meca, em 1915,
relativas à independência da região, e recebeu críticas de diversas
personalidades judaicas, inclusive de Sehundo Edwin Montagu, secretário de
estado para a Índia e único membro judeu do gabinete britânico. Montagu
questionou a autoridade da Organização Mundial Sionista para falar em nome de
todos os judeus e profetizou, em 1917: “A Palestina irá se tornar o maior gueto
do mundo” (idem, 45).
Com
o final da I Guerra Mundial e o estabelecimento do Mandato Britânico na
Palestina, os ingleses favoreceram uma grande imigração judaica para a região
entre as décadas de 1920 e 1930, alterando o balanço demográfico da Palestina e
criando condições para a formação da entidade sionista, contrariando os
interesses da comunidade árabe-palestina autóctone. Conforme escreve André
Gattaz: “O Mandato sancionou, entre as potências aliadas vitoriosas, a
Declaração de Balfour, e transformou o sionismo em política de Estado
britânica, determinando o destino da Palestina” (idem, 54). Nos anos seguintes,
o Iraque declarou a sua indcependência em 1932; o Líbano, em 1943; a Síria, em
1944, e a Jordânia, em 1946. “Apenas no caso da Palestina o Mandato, com suas
contradições inerentes, não levou à independência reconhecida provisoriamente
na Carta das Nações, porém aos conflitos que permanecem até os dias de hoje”
(idem, 57).
A
administração britânica favoreceu não apenas a imigração massiva de judeus, mas
também a criação de um verdadeiro estado dentro do estado: os sionistas criaram
os seus próprios bancos, escolas, empresas agrícolas, industriais, comerciais e
universidade, tornando cada vez mais frequente a presença da bandeira com a
estrela de David nos estabelecimentos judaicos . O primeiro assentamento
sionista surgiu em 1909; cinco anos depois, já eram catorze, e os camponeses
palestinos eram sumariamente expulsos, porque nas empresas agrícolas formadas
pelos sionistas apenas trabalhadores judeus eram aceitos. Em 1914 é fundada a
cidade judaica de Tel Aviv, que três décadas mais tarde seria a capital da
entidade sionista. Nesse mesmo ano, conforme cita André Gattaz, 85 mil judeus
viviam na Palestina, ao lado de 580 mil árabes (85% muçulmanos, 15% cristãos).
“Após os anos da Primeira Guerra Mundial, a imigração retomou volumes
expressivos, e só nos cinco primeiros anos da década de 1920 chegaram à
Palestina mais de 89.000 judeus, que criaram as condições para os futuros
conflitos ao transformar a sociedade local em detrimento de seus antigos
habitantes” (idem, 60-61).
A
comunidade árabe-palestina, frustrada pelo não-cumprimento das promessas feitas
pelos ingleses de autogoverno e soberania nacional, reagiu realizando greves,
manifestações políticas e ataques a instalações da administração britânica,
violentamente reprimidas pelas forças de ocupação e também pelas milícias
paramilitares criadas pelos sionistas, a Irgun e a Haganá, que dispunham de
armas modernas e eram toleradas pelo governo britânico. “Os conflitos
tornaram-se mais intensos a partir de1933”,
escreve André Gattaz, “quando grandes quantidades de judeus refugiados da
Alemanha e Polônia chegaram à Palestina” (idem, 59). Apenas em 1935, vieram
imigrantes 60.000 judeus, e ao final da década de 1930
a comunidade
judaica somava 445.000 pessoas, numa população total de 1.500.000 indivíduos.
Os conflitos entre árabes e judeus tornaram-se mais intensos entre 1935 e 1939,
destacando-se o movimento liderado em 1935 pelo mufti Haj Amin, que conclamou
os palestinos a não pagarem taxas às autoridades britânicas e a boicotar as
lojas dos imigrantes sionistas. No ano seguinte, os palestinos realizaram uma
greve geral que durou sete meses, com violentos confrontos entre trabalhadores
e a polícia britânica. O movimento grevista evolui e assumiu um caráter
insurrecional que durou até meados de 1939. O episódio é assim relatado por
André Gattaz:
Durante
os primeiros meses da rebelião, enquanto ainda durava a greve geral, os árabes
atacaram tropas e postos policiais britânicos e assentamentos judeus, sabotando
rodovias, ferrovias e oleodutos construídos pelos sionistas e ingleses. A
administração britânica trouxe reforços da Inglaterra, Egito e Malta para
controlar a situação, impondo toques de recolher, prisões em massa, multas
coletivas, e destruição de casas, além de apelar aos demais líderes árabes para
que interviessem em favor do final da greve. Ao mesmo tempo, anunciava-se a
criação de uma comissão real para investigar a causa dos distúrbios – a Peel
Comission (idem, 67).
A
comissão real nomeada pelo governo britânico avaliou a situação e sugeriu a
partilha da Palestina entre árabes e judeus, proposta que desagradou tanto aos
nacionalistas palestinos quanto aos colonos sionistas, mas que seria retomada
em 1947, quando a Organização das Nações Unidas aprovou a criação de dois
estados na Palestina, um árabe, outro judeu. Conforme demonstra Edward Said no
livro A questão da Palestina, o Estado de Israel, desde o seu surgimento,
entrou em contradição com a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948), com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) e as
declarações da Comissão de Direitos Humanos da ONU, que estabelecem direitos
básicos e universais do ser humano, tais como:
a.
Todos têm o direito, sem distinção de qualquer espécie, tais como raça, cor,
sexo, língua, religião, convicção política ou outra, origem nacional ou social,
propriedade, nascimento, casamento, ou outro estado civil, de retornar a seu
país.
b.
Ninguém deve ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade ou forçado a
renunciar a ela como meio de privá-lo do direito de retornar a seu país.
c.
Ninguém deve ser arbitrariamente privado do direito de entrar em seu próprio
país.
d.
Ninguém pode ter negado o direito de retornar a seu próprio país sob pretexto
de não ter passaporte ou qualquer outro documento de viagem.
(in
SAID, 2011: 55)
O
que o Estado de Israel realizou, entre 1948 e 1949, durante o primeiro conflito
armado entre árabes e israelenses, foi exatamente o contrário do estipulado
pela ONU: privou os palestinos de seu país, tomando a parte que caberia a um
futuro estado árabe, tal como proposto inicialmente na partilha da Palestina,
destruiu mais de 400 aldeias palestinas, entre elas a de Deir Yassim, em que
250 homens, mulheres e crianças palestinas foram massacrados (num gesto de
macabra ironia, os sionistas criaram no local um museu dedicado às vítimas do
Holocausto), e levou cerca de 750 mil palestinos a um êxodo forçado, que se
tornou conhecido internacionalmente como Nakba (em árabe النكبة
,“catástrofe”). Os refugiados palestinos foram proibidos pelas autoridades israelenses de retornarem a suas terras e
casas, confiscadas pelo estado sionista – proibição estendida a seus filhos e
netos, que hoje somam mais de cinco milhões de palestinos, distribuídos em
comunidades que residem no Líbano, na Síria, na Jordânia, no Iraque e em outros
países do Oriente Médio. Milhares de palestinos buscaram refúgio na Faixa de
Gaza, que pertenceu ao Egito até 1967, quando foi tomada por Israel, na Guerra
dos Seis Dias, outros permaneceram na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e outras cidades que passaram à
administração sionista. Como o novo Estado de Israel afirmou-se, desde o
início, como um estado judaico, aplicando critério étnico e religioso para a
definição da nacionalidade, os chamados árabes israelenses (cristãos e
muçulmanos) converteram-se em cidadãos de segunda classe, sem o benefício de
direitos plenos de cidadania, reservados apenas aos cidadãos judeus. O hebraico
foi adotado como língua oficial do país, que adotou uma legislação que garante
amplos benefícios aos judeus estrangeiros que imigrem para a região, ao mesmo
tempo que limita o máximo possível os direitos da comunidade árabe. A
segregação racial aplicada pelos sionistas na Palestina só encontra paralelo
nas famigeradas Leis de Nuremberg, aprovadas na década de 1930 na Alemanha, e
no sistema do apartheid imposto pela minoria branca na África do Sul sobre a
maioria negra, que subsistiu até meados da década de 1990 (não por acaso,
Israel foi um dos maiores aliados do regime sul-africano, colaborando inclusive
em seu programa de desenvolvimento de armas nucleares). Israel tem um vasto
currículo de desrespeito aos direitos humanos, que inclui a demolição de casas
de palestinos suspeitos de terem relações com membros do Hamas (forma de
punição coletiva implementada desde os anos 1920 pelas autoridades britânicas),
destruição de oliveiras e abate de rebanhos pertencentes a palestinos, prisão e
tortura de mulheres e crianças, sem mandado judicial, acusação prévia ou
direito de defesa, para citarmos poucos exemplos. Segundo relatório divulgado
pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cerca de 700 crianças palestinas
são detidas todos os anos para interrogatórios ou confinamentos. As prisões em
geral são feitas de noite ou de madrugada, num clima de terrorismo que inclui
quebrar portas ou disparar balas para o alto, aterrorizando as crianças e suas
famílias. Há registros de ocorrências de tais atos de violência em Al-aroub Camp,
Bit-rima, aldeia perto de Ramallah City, Bit Ummar aldeia, Nabi Saleh, e em
outras comunidades palestinas. Cerca de 35% das crianças palestinas detidas são
submetidas a assédio sexual de vários tipos. A associação Alsajeen gravou
depoimentos de crianças vítimas de assédio sexual, inclusive ameaças de
estupro. Os maus-tratos incluem ainda espancamentos, humilhação verbal e várias
formas de violência que atingiram 80% das crianças detidas, segundo o B'Tselem,
Centro de Informação Israelense para os Direitos Humanos. Esta entidade aponta
ainda a prática de tortura física e psicológica nos menores, como a privação do
sono, golpes nas mãos, obrigar as crianças a ouvirem música em volume
altíssimo, mantê-las por várias horas sentadas em pequenas cadeiras,
confinamento em celas escuras, ameaça de demolição de suas casas e até o
aprisionamento de seus familiares. Israel utilizou diversas vezes armas
proibidas por leis internacionais, como bombas de fósforo branco (artefatos
incendiários que podem causar ferimentos terríveis ou morte por queimadura,
inalação ou ingestão), bombas de fragmentação (artefato explosivo que libera
projéteis ou fragmentos menores em alta velocidade e em todas as direções, com
o objetivo de causar um grande número de vítimas, sobretudo crianças) e bombas
de urânio empobrecido (consideradas pelos especialistas como um tipo de
armamento nuclear), que provocam horríveis deformações nas vítimas, além de
afetar outras gerações, por herança genética.) em seus repetidos ataques à
Faixa de Gaza. Israel, única potência nuclear do Oriente Médio, com um arsenal
declarado de cerca de 200 ogivas, é talvez o único país do mundo que não possui
uma Constituição, assim como não tem fronteiras delimitadas: após a anexação
das terras palestinas, entre 1947 e 1949, Israel ocupou territórios da Síria
(colinas de Golã), do Líbano (fazendas Cheeba), do Egito (deserto do Sinai,
restituído após os acordos de Camp David) e da Jordânia (Cisjordânia, hoje
território administrado pela Autoridade Nacional Palestina, com soberania
limitada pela ocupação sionista), nas guerras realizadas entre 1948 e 1982. O
povo palestino vive hoje em regime de segregação racial, privado de direitos
elementares e sofrendo constantes abusos e violências por parte do estado e dos
colonos sionistas, sem contar com o apoio de leis ou instituições
internacionais. Confinados em menos de 23% do território original da Palestina,
sofrem o severo bloqueio econômico imposto à Faixa de Gaza, onde o partido
político Hamas venceu eleições democráticas, com a participação de observadores
internacionais, e um regime de “liberdade vigiada” (cada vez menos livre, cada
vez mais vigiada) na Cisjordânia, administrada pela Autoridade Nacional
Palestina, onde cresce o número de assentamentos judaicos, com o objetivo de
inviabilizar a possibilidade geográfica, econômica e social de estruturação de
um estado palestino autônomo. O sonho colonialista de Theodor Herzl, tornado
realidade meio século após o Congresso Sionista da Basileia, converteu-se, para
os palestinos, no mais cruel de todos os pesadelos.
1 O título deste artigo faz referência à
Resolução 3379 da Assembléia Geral das Nações Unidas, aprovada em 10 de
novembro de 1975, que considerou o sionismo uma forma de racismo.
2 O darwinismo social é um pensamento derivado teoria da seleção natural
de Charles Darwin, que explica a evolução das espécies pela capacidade de
sobrevivência dos mais aptos. De acordo com o darwinismo social, existiriam
características biológicas e sociais que determinariam a “superioridade” ou
“inferioridade” de determinados grupos sociais, compreendidos como raças. O
darwinismo social influenciou o pensamento político, a historiografia e a
prática colonialista de diversos países europeus entre o final do século XIX e
as primeiras décadas do século XX e um de seus autores mais conhecidos é o
teórico racista inglês Houston Stewart Chamberlain (1855-1927), autor do livro
Os fundamentos do século XX (1899).
3 A esse respeito, Herzl escreve: “O antissemitismo de hoje não deve ser
confundido com o ódio religioso que votavam aos judeus outrora, se bem que, em
certos países, tenham ainda atualmente uma cor confessional. O caráter do
grande movimento antijudaico da hora presente é outro. Nos principais países do
antissemitismo, este é a conseqüência da emancipação dos judeus”. (...) “A
causa remota” (do antissemitismo) “é a perda da nossa assimilabilidade,
sobrevinda na Idade Média; a causa próxima, a nossa superprodução de
inteligências médias”, responsável, nas camadas proletárias, pelo surgimento de
lideranças nos “partidos subversivos”, e nas altas esferas, por sua “temida
potência financeira.” (...) “Depois de curtos períodos de tolerância, a
hostilidade contra nós se desperta sempre e sem cessar. A nossa prosperidade
parece conter em si qualquer coisa de irritante, porque o mundo estava
habituado de há muitos séculos a ver em nós os mais desprezíveis dos pobres.
(...) A opressão só fez reviver em nós a consciência da nossa origem. E o ódio
dos que nos cercam novamente faz de nós estrangeiros.” (HERZL, 1956: 60-63)
4 O casamento civil misto entre judeus e gentios é hoje interditado em Israel. A esse respeito,
escreve o historiador israelense Shlomo Sand em seu livro A invenção do povo
judeu: “Desde 1947, foi decidido na prática que os judeus não poderiam ali
desposar não-judeus: o pretexto cívico dessa segregação, em uma comunidade na
qual a maioria era então perfeitamente laica, era aparentemente o desejo de não
criar um fosso entre laico e religioso. (...) Em 1953, a promessa política
de não instituir o casamento civil em Israel foi posta em bases legais. A lei
que definiu o estatuto legal dos tribunais rabínicos determinou que estes
teriam jurisdição exclusiva sobre casamentos e divórcios em Israel.” (SAND,
2011: 504-505)
5 “Imagino que os governos, voluntariamente ou sob a pressão dos
antissemitas, prestarão alguma atenção a este escrito, e talvez mesmo, num ou
noutro lugar, acolherão, desde o começo, o projeto com simpatia e darão provas
disso á Society of jews. Porque, pela imigração dos judeus, que tenho em vista,
não há a temer nenhuma coisa econômica. Semelhantes crises que deveriam
fatalmente produzir-se em seguida às perseguições contra os judeus seriam, ao
contrário, impedidas pela realização deste projeto. Um grande período de
prosperidade começaria nos países atualmente antissemitas. Assim como já o
disse muitas vezes, a imigração interior dos cidadãos cristãos dar-se-á para as
posições dos judeus, lentamente e metodicamente abandonadas. Se não somente nos
deixarem fazer, mas se ainda nos ajudarem, o movimento será por toda parte
fecundo em bons resultados.” (idem, 133)
6 Edward Said, no livro A questão da Palestina, responde a essa
falsificação da história com as seguintes palavras: “A Palestina tornou-se um
país predominantemente árabe e islâmico no fim do século VII. Pouco depois,
suas fronteiras e suas características – inclusive seu nome em árabe, Filastin
(Filisteia) – ficaram conhecidas em todo o mundo islâmico tanto por sua
fertilidade e beleza quanto por sua importância religiosa. No fim do século X,
por exemplo, encontramos este trecho em árabe: ‘A Filisteia é a província mais
à oeste da Síria. Em seu maior comprimento, de Rafh à fronteira de Al Lajjun
(Legio), um viajante levaria dois dias de jornada , e o mesmo tempo para cruzar
a província em sua largura, de Yaha (Jafa) a Riha (Jericó). (...) A Filisteia
recebe água das chuvas e do orvalho. Suas árvores e sua terras aradas aradas
não necessitam de irrigação artificial; e é somente em Nablus que se encontram
águas correntes para esse propósito. A Filisteia é a mais fértil das províncias
sírias. Sua capital é maior cidade é Ar Ramlah, mas a Cidade Santa (Jerusalém)
aproxima-se dela em
tamanho. Na província da Filisteia, apesar de sua pequena
extensão, existem cerca de vinte mesquitas, com púlpitos para da orações de
sexta-feira’” (SAID, 2011: 12-13).
7 A Irgun e a Haganá foram formalmente dissolvidas e incorporadas às
Forças Armadas de Israel a partir de 1947.
8 Begin também foi o responsável pelo massacre de 250 homens, mulheres e
crianças palestinas na aldeia de Deir Yassin, em abril de 1948, como relata
Edward Said no livro A questão da Palestina.
9 O massacre nos campos de refugiados de Sabra e Chatila aconteceu entre
16 e 18 de setembro de 1982, perpetrado por forças direitistas libanesas, com a
cumplicidade e apoio logístico das forças militares israelenses, lideradas pelo
general Ariel Sharon (1928-2014), futuro primeiro-ministro de Israel. Cerca de
três mil homens, mulheres e crianças palestinas morreram no massacre.
10 “Durante o Congresso da Basiléia, a liderança sionista definiu um
programa prático baseado em três pontos: organização, negociação e colonização.
Sob o primeiro aspecto, deveria dar-se prioridade suprema aos esforços de
organização, com a implantação de um aparato quase-Estado para a função
organizativa – a Organização Sionista Mundial. Quanto ao aspecto da negociação,
iniciaram-se esforços diplomáticos junto à Inglaterra, Alemanha, Rússia e
Império Otomano para produzir as condições políticas que permitiriam,
facilitariam e protegeriam a colonização sionista em larga escala. Sob o
aspecto da colonização, definiram-se os instrumentos de colonização imediata
(as sociedades, agências e comissões), responsáveis pelo planejamento,
financiamento e supervisão do processo de colonização – a colonização judaica
já existente para a Terra Santa, de caráter incidental e desorganizada, seria
suplantada por um programa nacionalista, com claros objetivos políticos.”
(GATTAZ, 2002: 23)
11 “Durante seus primeiros anos, a ascensão de Hitler ao poder pareceu aos
sionistas uma ‘decisiva derrota do assimilacionismo’. Por isso os sionistas
puderam, ao menos durante algum tempo, se permitir certa medida de cooperação
não criminosa com as autoridades nazistas; os sionistas também acreditavam que
a ‘desassimilação’, combinada à emigração de jovens judeus e, esperavam eles,
de capitalistas judeus para a Palestina, poderia ser uma ‘solução mutuamente
justa’; na época, muitos funcionários alemães tinham essa opinião, e esse tipo
de conversa parece ter sido bastante comum até o fim. Um judeu alemão
sobrevivente de Theresienstadt relata em uma carta que todas as principais
posições do Reichsvereinigung (Conselho de Anciãos Judeus) apontadas pelos
nazistas eram ocupadas por sionistas (enquanto o Reichsvereinigung
autenticamente judeu era composto tanto de sionistas como de não-sionistas),
porque os sionistas, segundo os nazistas, ‘eram os judeus decentes’, porque
eles também pensavam em termos ‘nacionais’. (...) Nesses primeiros anos, havia
um acordo mútuo altamente satisfatório entre as autoridades nazistas e a
Agência Judaica para a Palestina – um Ha’avarah, ou Acordo de Transferência,
que permitia que um emigrante para a Palestina pudesse transferir seu dinheiro
para lá em bens alemães e trocá-lo por libras ao chegar. Isso se tornou a única
forma legal de um judeu levar consigo seu dinheiro (a única alternativa era a
abertura de uma conta bloqueada, que só podia ser liquidada no exterior com uma
perda de 50% a 95%). O resultado foi que nos anos 30, enquanto o judaísmo
norte-americano fazia um grande esforço para boicotar mercadorias alemãs, a
Palestina vivia inundada de todo tipo de bens made in Germany.” (ARENDT, 2013:
73-74) A cooperação inicial entre nazistas e sionistas, que Hannah Arendt chama
de “não-criminosa”, estava relacionada ao projeto do estabelecimento de um
Estado Judeu na Palestina, “mutuamente benéfico” às partes envolvidas (nessa
época, não havia ainda o projeto da Solução Final e os nazistas discutiam
diferentes saídas para a “Questão Judaica”, como a emigração forçada, a
deportação de milhões de judeus europeus para o Leste ou a criação de um estado
judeu na Palestina, Uganda ou em Madagascar, esta última uma ilha de possessão francesa
com 4.370.000 habitantes e uma área de 365 mil quilômetros quadrados. “O
‘Estado Judeu’ deveria ter um governador policial sob a jurisdição de Himmler”,
escreve Arendt. (O plano não deu certo pela dificuldade óbvia de se transportar
11 milhões de judeus pela via marítima durante a guerra.) Em 21 de setembro de
1939, o chefe do serviço de inteligência (SD) da SS, Heydrich, convocou uma
reunião de “chefes de departamento” do RSHA (2) e dos Einsatzgruppen (grupos de
extermínio que já operavam na Polônia) na qual anuncia que todos os judeus nos
territórios ocupados seriam concentrados em guetos, administrados por Conselhos
de Anciãos Judeus escolhidos pelos nazistas. Começa uma nova etapa na solução
da “Questão Judaica” e na colaboração entre sionistas e nazistas para a Solução
Final. Conforme escreve Hannah Arendt, “Eichmann e seus homens informavam aos
Conselhos de Anciãos Judeus quantos judeus eram necessários para encher cada
trem, e eles elaboravam a lista de deportados. Os judeus se registravam, preenchiam
inúmeros formulários, respondiam páginas e páginas de questionários referentes
a suas propriedades, de forma que pudessem ser tomadas mais facilmente; depois
se reuniam nos pontos de coleta e embarcavam nos trens. Os poucos que tentavam
se esconder ou escapar eram recapturados por uma força policial judaica
especial. No entender de Eichmann, ninguém protestou, ninguém se recusou a
cooperar” (Idem, 131). Mais adiante, a autora diz: “Em Amsterdam, assim como em
Varsóvia, em Berlim como em Budapeste, os funcionários judeus mereciam toda
confiança ao compilar as listas de pessoas e de suas propriedades, ao reter o
dinheiro dos deportados, para abater as despesas de sua deportação e
extermínio, ao controlar os apartamentos vazios, ao suprir forças policiais
para ajudar a prender os judeus e conduzi-los aos trens, e até, num último
gesto, ao entregar os bens da comunidade judaica em ordem para o confisco
final. Eles distribuíam os emblemas da Estrela Amarela e, às vezes, como em
Varsóvia, “a venda de braçadeiras tornou-se um negócio normal; havia as faixas
comuns de pano e as faixas especiais de plástico que eram laváveis”. Nos
manifestos que publicavam, inspirados pelos nazistas, mas não ditados pelos
nazistas, ainda se pode perceber o quanto gostavam de seus novos poderes – “O
Conselho Judeu Central foi brindado com o direito de dispor absolutamente de
toda riqueza espiritual e material dos judeus e de toda força de trabalho
judaica”, como dizia o primeiro anúncio do Conselho de Budapeste. Sabemos o que
sentiam os funcionários judeus quando se transformaram em instrumentos de
assassinatos: como capitães “cujos navios estavam a ponto de afundar e que
conseguiam levá-lo em segurança até o porto atirando ao mar parte de sua
preciosa carga” (...) A verdade era ainda mais terrível. O dr. Kastner, da
Hungria, por exemplo, salvou exatamente 1684 pessoas entre cerca de 476 mil
vítimas. A fim de não deixar a seleção a cargo do “destino cego”, eram
necessários “princípios realmente sagrados como força guia para a fraca mão
humana que registra no papel o nome de uma pessoa desconhecida e com isso
decide sua vida ou sua morte”. E quem esses “princípios sagrados” selecionavam
para a salvação? Aqueles “que haviam trabalhado toda a vida pela zibur
(comunidade) – isto é, os funcionários – e os ‘judeus mais importantes’”, como
diz Kastner em seu relato (ARENDT, 2013: 73-74).
12 O Acordo Sykes-Picot recebeu esse nome porque foi assinado pelos
secretários de estado Mark Sykes (Inglaterra) e Georges-Picot (França), que
conduziram negociações entre o final de 1915 e o início de 1916.
13 Diz o historiador Muhammed Muslih: “Estes novos imigrantes, que se
estabeleceram em assentamentos no campo, eram europeus ignorantes e insensíveis
aos costumes árabes na Palestina. Por exemplo, após estabelecer suas colônias,
bloqueavam os direitos costumeiros de pastagem às vilas adjacentes, tomavam os
carneiros que ultrapassavam as fronteiras e multavam os árabes que eram seus
donos. Tais condutas levaram a violentos conflitos entre árabes e judeus. Os
árabes sentiram-se alienados das terras que cultivaram por séculos.” (in
GATTAZ, 2002: 61)
14 Edward Said escreve a esse respeito: “Israel tem negado a possibilidade
de retorno dos palestinos, em primeiro lugar, por uma série de leis que declaram
as terras de árabes na Palestina propriedade abandonada e, portanto, passíveis
de desapropriação pelo Fundo Nacional Judeu (que é o proprietário legal da
terra em Israel ‘para todo o povo judeu’, uma fórmula sem analogia em qualquer
outro estado ou pseudo-estado); e, em segundo lugar, pela Lei do Retorno,
segundo a qual qualquer judeu nascido em qualquer lugar do mundo tem o direito
de reclamar cidadania e residência israelense imediatas (mas não um árabe,
mesmo que possa comprovar sua residência e a de sua família por várias gerações
na Palestina)” (SAID, 2011: 56).
Referências
bibliográficas
ARENDT,
Hannah. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
FINKELSTEIN,
Norman. A indústria do Holocausto. Rio de Janeiro: Record, 2001. Na internet
(em PDF): http://resistir.info/livros/filkenstein_pt.pdf
GATTAZ,
André. A guerra da Palestina. São Paulo: usina do livro, 2002.
HERZL,
Theodor. O estado judeu. Ensaio de uma solução da questão judia. São Paulo:
Tipografia-editora Monte Scopus, 1956.
LANGE,
Nicholas. Povo judeu. São Paulo: Edições Folio, 2008.
SAID,
Edward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
____
. A questão da Palestina. São Paulo: Editora da UNESP, 2011.
SAND,
Shlomo. A invenção do povo judeu. São Paulo: Benvirá, 2011.
____
. A invenção da terra de Israel. São Paulo: Benvirá, 2014.
Reportagens
na forma de histórias em quadrinhos:
SACCO,
Joe. Notas sobre Gaza. São Paulo: Schwarcz Editora, 2010.
_____.
Palestina. São Paulo: Conrad, 2011.
Documentários
disponíveis em vídeo na internet:
The
zionist story (legendas em português),
https://www.youtube.com/watch?v=3jNYlUj2gMU
Ocupation
101 – A voz da maioria silenciada (legendas em português),
https://www.youtube.com/watch?v=H8CUdOZayu4
Al-Nakba
(legendas em português), https://www.youtube.com/watch?v=-M9Hm49sS7Y
Depoimento
de Norman Finkelsten, https://www.youtube.com/watch?