quinta-feira, 22 de maio de 2014

TERRITÓRIOS MUTANTES: A POESIA DE MARCELO ARIEL


Marcelo Ariel é um estudioso de tradições filosóficas do Oriente, como o sufismo, o budismo, o taoísmo, e um leitor atento de autores considerados herméticos, como o romeno Paul Celan, o inglês William Blake e o português Herberto Helder, com quem compartilha o intenso lirismo amoroso e uma visão herética da espiritualidade, que celebra o corpo, a vida e o estar no mundo, com toda a sua beleza e crueldade. O autor, que vive em Cubatão, cidade industrial da Baixada Santista, pertence, cronologicamente, à chamada Geração 90, mas só começou a publicar os seus poemas em livro na década seguinte, sempre por pequenas editoras: Me enterrem com a minha AR15 saiu em 2007 pela Dulcineia Catadora, numa bem cuidada edição artesanal, e o Tratado dos anjos afogados saiu em 2008, pela Letra selvagem. Nessas obras, o poeta retrata um duro cotidiano de chacinas, favelas incendiadas e desastres como o conhecido episódio de Vila Socó, em 1984, provocado pelo vazamento numa das tubulações da Refinaria Artur Bernardes, que destruiu 500 moradias populares e causou centenas de mortes (o número permanece desconhecido até hoje). No poema Vila Socó libertada, por exemplo, o autor escreve: “(depois do fogo) / no outro dia / (sem poesia) / as crianças (sub-hordas) / procuram no meio do desterror / botijões de gás / para vender”. Em outra composição, intitulada O soco na névoa, Marcelo Ariel, utilizando técnicas de closes, cortes e montagens da linguagem narrativa do cinema, escreve: “No jardim esquizocênico, / Nas balas perdidas, / No perfume / das granadas / explodindo no bar / das Parcas: / Num Eclipse-invertido / seguido de uma chuva fina por dentro / do olhar / da criança recém-esquecida / nesse bar-iceberg para o ‘Bateau Ivre’ no sangue / dos amantes-kamikazes” (versos publicados no livro Tratado dos anjos afogados).

Insólitas sensações e paisagens

O desenho ácido da violência urbana, porém, é apenas uma das facetas da obra de Marcelo Ariel. O livro Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio (São Paulo: Patuá, 2014), cujo lançamento aconteceu em maio no espaço cultural Hussardos, reúne boa parte da produção do poeta e é uma excelente oportunidade mergulharmos nesse universo de insólitas sensações e paisagens, construídas por um hábil artesão que sabe explorar a dimensão sonora, visual, quase tátil, das palavras, em composições como esta: “só o silêncio / intocado o enobrece, / mas não / queda-silêncio-esquecimento / do lugar-esquife, / ou queda-silêncio-equívoco / apenas / queda-símbolo / para o alto-fundo-horizonte-escuro / de seu Letes” (Sobre a morte de Paul Celan). O uso dos travessões e dos cortes sintáticos, além da estranheza com que revestem o discurso, confere agilidade ao ritmo prosódico das linhas e cria ideias pela inusitada associação de termos (lugar-esquife, queda-silêncio-equívoco). O poeta não deseja apenas despertar uma planejada reação emocional ou sensorial no leitor, à maneira de Álvaro de Campos, mas também convidá-lo à reflexão, à cumplicidade intelectual capaz de reconstruir o poema, descortinando outras possibilidades de leitura e interpretação.

As imagens poéticas de Marcelo Ariel são altamente sugestivas, aproximando-se tanto da tradição barroca quanto do simbolismo e do surrealismo – relidos pelo poeta de maneira livre, pessoal e instigante. Na composição intitulada No ultrassonho, por exemplo, o autor diz: “Estamos dentro de um açougue chamado corpo / de um aquário chamado mesa ou cérebro tocando o ar nas árvores / através de um copo até tocar esse osso do oceano em nosso olhar”. Fazendo um paralelo entre a linguagem poética de Marcelo Ariel e a de Herberto Helder, Claudio Willer observa: “Em comum com o extraordinário poeta português, a fusão ou hibridação de objetos e seres vivos, a ruptura de limites das coisas e dos corpos, as imagens luminosas como ‘osso do oceano’”. A experimentação de Marcelo Ariel, porém, não se limita a um único campo de pesquisa: sempre em busca de outras possibilidades para a comunicação poética, o autor investe em peças de alta concentração semântica (“Mãos de ninguém / Professam uma delicadeza / Suprema, / não existir / é para / o intocado / como lágrimas / que jorram em sonhos / sem existir / podem sorrir”), em longos poemas narrativos (Cosmogramas – Autobiografia impessoal) e inventos de prosa poética que dissolvem as fronteiras entre os gêneros (“, agora sou tudo, tudo o que explode, tudo o que racha, tudo o que fende e sinto um tipo novo de sede, sim, existe toda uma constelação de diferentes sedes dentro do corpo”, lemos na composição Salve infinito ou A morte de Clarice Lispector).

O misticismo profano de Marcelo Ariel não reconhece fronteiras entre homem e mundo, natureza e artifício, vida e linguagem: a síntese das dicotomias está presente em diversas composições do livro, entre elas um curiosíssimo poema em prosa intitulado No ex-Brasil (Xingu interior destroçado):

Sim, até as próprias fontes e o arvoredo te chamavam através da ‘Voz de Ninguém’ em Rútilo Perigeu vagavam Mônadas em pó que escapavam dos ossos do evento invisível Brazyl flutuando em volta como um Ex-Algo em Tempos filtrados jamais reencontrados, espaços fantasmas onde outrora um fio ecoava sua aura se expandindo no olhar sem limite, no Sol aberto como um zero infinito como o da Mesopotâmia, gravada pelo fio-Hubble lendo a árvore.

O engenho inventivo do poeta alia-se a uma ética de solidariedade que desconsidera dimensões temporais, geográficas ou culturais, aproximando-se de uma erótica miscigenada, proclive às fantasias neobarrosas de Nestor Perlongher. O parque do Xingu torna-se ao mesmo tempo metáfora e metonímia, índice de uma comunidade massacrada e de um território subjetivo, não menos doloroso; o próprio Brazyl, deformado pela grafia, sinaliza uma ideia deformada de nação, responsável por tantas tragédias, iniciadas com o genocídio indígena e que permanece, nos dias de hoje, nas matanças que acontecem nas periferias dos grandes centros urbanos, atingindo especialmente os afrodescendentes. Pouquíssimos poetas são capazes de construir um discurso crítico da realidade com tamanha expressividade e terrível beleza.

Claudio Daniel é poeta, professor de Literatura Portuguesa na UNIP, colunista da CULT e editor da revista Zunái.



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