Uma jornada em busca do inusitado. Ao longo do
percurso, a paisagem é retalhada, recriada, formas dispersas e caóticas são
combinadas em estranha tessitura. Distante de qualquer princípio de
linearidade, o discurso é emaranhado como um novelo, em espirais de som e
sentido. Sim: estou falando de Périplos, livro de estreia de Simone
Homem de Mello, publicado em 2005, que traz pequenas narrativas recortadas por
deslocamentos e aproximações de registros de viagens, citações e notas pessoais
que habitam o imaginário da autora, paulistana que viveu por quase duas décadas
em Berlim, onde trabalhou como tradutora e libretista de ópera. Sua voz é
elíptica, estilhaçada, tem ritmo imprevisto, beirando a prosa – o que atribui
certa vivacidade metálica aos monólogos e recitativos. A trama fabulatória, se
está distante das crônicas do cotidiano, em sua previsível banalidade,
aproxima-se do andamento e montagem de certos filmes: podemos pensar, talvez,
em algumas sequências expressionistas alemãs da década de 1920, como as
películas de Pabst, estreladas por Louise Brooks. O tecido fônico revela um
meticuloso artesanato de aliterações, assonâncias, rimas imprevistas, numa
sintaxe (fraturada) que não é abolida, mas reinventada, numa crítica do próprio
discurso. A mescla de abstração e figurativismo, de melodia e ruído, em
sucessivas camadas semânticas, indica bem a inquietação formal da autora, que
não se contenta com a rotina do dizer poético. Seus poemas longos surpreendem
pelo acabamento de estrutura, pelo encaixe pertinente de todos os elementos,
como num cubo mágico ou jogo de quebra-cabeças. Assim, por exemplo, na
composição De um postal do paraíso de Creuzfelder, extraviado nas águas do Piegnitz, um dos mais belos poemas do
livro: “À guisa da serpente, / ela seduz, sibilina, / ou simula traduzir / ao
invento (Adão atenta) / o intento do artífice. (...) / Em mímica ambígua, / diz
e dissimula, / inocula, precisa, / a dúvida, finca / a presa, desnuda / a
falácia da língua / dita adamítica”. A aparente leveza do poema, construída
pela fluência melódica e ambígua sensualidade, não oculta as referências
intertextuais, como a referência a Walter Benjamin, que no conhecido ensaio A tarefa do tradutor apresenta a hipótese de uma
suposta língua primordial ou “adamítica”. Em outra composição, mais áspera (Pas de deux), Simone Homem de Mello revela sua vocação barroquista,
filtrada pelo atonalismo: “só um corpo / dilacerado / entre objetos díspares, /
escafandros corais candelabros clásticos / máscaras de esgrima ímãs facas
vidraças / enviesado, / em híbrido jardim / de inverno, / primavera plena de
gritos óticos”. Nesta enumeração caótica, os elementos são transformados
(“jardim híbrido”, “gritos óticos”), adquirindo contornos cada vez mais
sombrios, culminando na “dor afilada a bisturi / na tatuagem forjada / sobre a
minha pele. / cicatriz / de um abismo / a dois”.
A
opacidade da linguagem
“A
trajetória poética de Simone Homem de Mello entre dois idiomas – português e
alemão – influenciou sua opção pelo ruído e pela opacidade da linguagem como
condição do fazer poético”, lemos na quarta-capa de Périplos. Esta opinião talvez
já não se sustente, ao menos em relação a seu segundo livro, Extravio marinho, publicado em
2010. O artesanato rigoroso da linguagem permanece nesta leitora de Paul Celan,
João Cabral de Melo Neto e da Poesia Concreta, mas ela já se permite a
delicadeza e o intimismo de composições como acrônico,
in loco: “o antes os traiu / tardaram nudez / vespertina / como se fosse
hoje / e ofegaram distâncias / vítreas / em seu pertencer-se siamês”. Em outra peça, de acentuada
dicção minimalista, lemos: “róseo se esquece cego / (tudo entre um cristal) /
ferido por olhos, eros / abisma-se íris, cílios / e no susto só pulso” (eros
e psiquê). A intertextualidade permanece, mas a poeta aproxima-se,
inclusive, de certo humor: “Após sete noites / (ou seria melhor contar em
luas?) / Apollinaire continua não tendo razão. / E do Sena, resta ainda rio a
correr?” (Le Pont Mirabeau,
missiva). Com sutileza e refinado controle da técnica, Simone Homem de
Mello constroi um poema de intenso lirismo, um dos mais belos do livro: “algo
-- / foi sangria, foi granizo contra o vidro, / foi grito, foi -- / o que fez
esquecer o tinteiro aberto, fez / ausente no mata-borrão / o verso / da
escrita, seu duplo / que raro: eu / rastreara / alheio aposento / em meu
próprio” (seu duplo, meu próprio). O tema do “duplo” ou doppelganger, diga-se de
passagem, é tradicional na literatura alemã e despertou a atenção de autores
tão diferentes como Gerard de Nerval, Chamisso e Jorge Luis Borges. A peça mais
ambiciosa do livro, e que se situa exatamente no final do volume, é terrenos dísticos (para poucas
vozes), em que a autora cria um barroco sutil, concentrado, em linhas
concisas e elípticas, que aglutinam lirismo e paisagem em construções insólitas
como estas linhas: “ora azul de labareda, língua / de fogo, outra cor sem corpo
/ (um azul esfumaçado, pois o esfumaçado / confere às coisas contornos mais
tênues) / (...) / prescrevera um azul de fundo / e a textura, de que adiantaria
/ o tecido índigo se intangível / como essas mãos ao alcance / de lábios e
longe leva o tormes / o que não se traduz em corpo”. Simone Homem de Mello é,
sem sombra de dúvida, uma das autoras mais talentosas da poesia brasileira
contemporânea, que venceu o desafio de superar a diluição do Modernismo para
alçar voo em direção a outros territórios poéticos.
(Artigo publicado na edição de maio da revista CULT)
Nenhum comentário:
Postar um comentário