domingo, 18 de maio de 2014

GRAFIA DE ASSOMBROS: A POESIA DE SIMONE HOMEM DE MELLO


Uma jornada em busca do inusitado. Ao longo do percurso, a paisagem é retalhada, recriada, formas dispersas e caóticas são combinadas em estranha tessitura. Distante de qualquer princípio de linearidade, o discurso é emaranhado como um novelo, em espirais de som e sentido. Sim: estou falando de Périplos, livro de estreia de Simone Homem de Mello, publicado em 2005, que traz pequenas narrativas recortadas por deslocamentos e aproximações de registros de viagens, citações e notas pessoais que habitam o imaginário da autora, paulistana que viveu por quase duas décadas em Berlim, onde trabalhou como tradutora e libretista de ópera. Sua voz é elíptica, estilhaçada, tem ritmo imprevisto, beirando a prosa – o que atribui certa vivacidade metálica aos monólogos e recitativos. A trama fabulatória, se está distante das crônicas do cotidiano, em sua previsível banalidade, aproxima-se do andamento e montagem de certos filmes: podemos pensar, talvez, em algumas sequências expressionistas alemãs da década de 1920, como as películas de Pabst, estreladas por Louise Brooks. O tecido fônico revela um meticuloso artesanato de aliterações, assonâncias, rimas imprevistas, numa sintaxe (fraturada) que não é abolida, mas reinventada, numa crítica do próprio discurso. A mescla de abstração e figurativismo, de melodia e ruído, em sucessivas camadas semânticas, indica bem a inquietação formal da autora, que não se contenta com a rotina do dizer poético. Seus poemas longos surpreendem pelo acabamento de estrutura, pelo encaixe pertinente de todos os elementos, como num cubo mágico ou jogo de quebra-cabeças. Assim, por exemplo, na composição De um postal do paraíso de Creuzfelder, extraviado nas águas do Piegnitz, um dos mais belos poemas do livro: “À guisa da serpente, / ela seduz, sibilina, / ou simula traduzir / ao invento (Adão atenta) / o intento do artífice. (...) / Em mímica ambígua, / diz e dissimula, / inocula, precisa, / a dúvida, finca / a presa, desnuda / a falácia da língua / dita adamítica”. A aparente leveza do poema, construída pela fluência melódica e ambígua sensualidade, não oculta as referências intertextuais, como a referência a Walter Benjamin, que no conhecido ensaio A tarefa do tradutor apresenta a hipótese de uma suposta língua primordial ou “adamítica”. Em outra composição, mais áspera (Pas de deux), Simone Homem de Mello revela sua vocação barroquista, filtrada pelo atonalismo: “só um corpo / dilacerado / entre objetos díspares, / escafandros corais candelabros clásticos / máscaras de esgrima ímãs facas vidraças / enviesado, / em híbrido jardim / de inverno, / primavera plena de gritos óticos”. Nesta enumeração caótica, os elementos são transformados (“jardim híbrido”, “gritos óticos”), adquirindo contornos cada vez mais sombrios, culminando na “dor afilada a bisturi / na tatuagem forjada / sobre a minha pele. / cicatriz / de um abismo / a dois”.

A opacidade da linguagem

“A trajetória poética de Simone Homem de Mello entre dois idiomas – português e alemão – influenciou sua opção pelo ruído e pela opacidade da linguagem como condição do fazer poético”, lemos na quarta-capa de Périplos. Esta opinião talvez já não se sustente, ao menos em relação a seu segundo livro, Extravio marinho, publicado em 2010. O artesanato rigoroso da linguagem permanece nesta leitora de Paul Celan, João Cabral de Melo Neto e da Poesia Concreta, mas ela já se permite a delicadeza e o intimismo de composições como acrônico, in loco: “o antes os traiu / tardaram nudez / vespertina / como se fosse hoje / e ofegaram distâncias / vítreas / em seu pertencer-se siamês”.  Em outra peça, de acentuada dicção minimalista, lemos: “róseo se esquece cego / (tudo entre um cristal) / ferido por olhos, eros / abisma-se íris, cílios / e no susto só pulso” (eros e psiquê). A intertextualidade permanece, mas a poeta aproxima-se, inclusive, de certo humor: “Após sete noites / (ou seria melhor contar em luas?) / Apollinaire continua não tendo razão. / E do Sena, resta ainda rio a correr?” (Le Pont Mirabeau, missiva). Com sutileza e refinado controle da técnica, Simone Homem de Mello constroi um poema de intenso lirismo, um dos mais belos do livro: “algo -- / foi sangria, foi granizo contra o vidro, / foi grito, foi -- / o que fez esquecer o tinteiro aberto, fez / ausente no mata-borrão / o verso / da escrita, seu duplo / que raro: eu / rastreara / alheio aposento / em meu próprio” (seu duplo, meu próprio). O tema do “duplo” ou doppelganger, diga-se de passagem, é tradicional na literatura alemã e despertou a atenção de autores tão diferentes como Gerard de Nerval, Chamisso e Jorge Luis Borges. A peça mais ambiciosa do livro, e que se situa exatamente no final do volume, é terrenos dísticos (para poucas vozes), em que a autora cria um barroco sutil, concentrado, em linhas concisas e elípticas, que aglutinam lirismo e paisagem em construções insólitas como estas linhas: “ora azul de labareda, língua / de fogo, outra cor sem corpo / (um azul esfumaçado, pois o esfumaçado / confere às coisas contornos mais tênues) / (...) / prescrevera um azul de fundo / e a textura, de que adiantaria / o tecido índigo se intangível / como essas mãos ao alcance / de lábios e longe leva o tormes / o que não se traduz em corpo”. Simone Homem de Mello é, sem sombra de dúvida, uma das autoras mais talentosas da poesia brasileira contemporânea, que venceu o desafio de superar a diluição do Modernismo para alçar voo em direção a outros territórios poéticos.

(Artigo publicado na edição de maio da revista CULT)

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