O cinema é a
construção de uma realidade imaginada, como o sonho, que não é menos real (ou
ilusório) do que a existência cotidiana, como na parábola de Chuang Tzu. O
cinema é menos um espelho, um eco do real do que uma metáfora ou conceito do
mundo. Olhar uma cena ou paisagem, de certo modo, é inventá-la; é dar nome às
coisas, como Adão. O sujeito cria o mundo e é criado por ele. Viver é navegar
entre paradoxos, e saber quem olha, quem é visto não é o menor de todos. Estas
são as impressões que me ocorrem ao reler o livro Cinemaginário, de Ricardo Corona, publicado inicialmente em 1998 pela Iluminuras e relançado neste
ano pela Patuá. O autor é um poeta do olhar, fotógrafo de imagens raras. Assim,
por exemplo, em Ventos e uma alucinação,
talvez o melhor poema do livro: “sol tórrido no/ aljazar/ (lascas de zinco
refletindo)/ sol batendo/ no sal”. Em outra seção desta peça, mais uma jóia:
“atrás das pálpebras/ o olho dá forma ao sol/ : bola vermelha/ (um vento mantra
passa)/ a íris fosforesce/ aureolando as pupilas em brasa”. Aqui, revela-se a
influência da fanopeia de Pound e dos flashes inusitados do haicai, como em
Bashô (“a água/ escorre do teto/ pelo ninho de vespas”, na tradução de Paulo
Leminski, outra referência destacada em seu processo formativo). Ricardo Corona
não é um voyeur de paisagens
tranqüilas, mas um cultor da imagem tensa, cortante, cicatriz à flor da pele.
Em seu cinema do
imaginário, usa técnicas de cortes, closes,
montagens, como em Narayama: “põe/ a
meia-lua dos pés na mudez das pedras/ corpo e alma no chakra da encosta/ a fronte na fonte fresca/ lava a saúva das
costas”, poema inspirado no filme A
balada de Narayama, de Shohei Imamura. Vale a pena ressaltar, aqui, a presença
do cinema em outros autores que começaram a publicar na década de 1990, como
Ricardo Aleixo (Cineolho), Ademir
Assunção (Cinemitologias) e Rodrigo
Garcia Lopes (Nômada). No caso de
Ricardo Corona, a influência da linguagem fílmica mescla-se a uma miscelânea de
outras referências, tão heterogêneas como o barroco, a melopéia grega, a lírica
beat e a cultura pop. Em Ondas na lua cheia, por exemplo, a
presença do mar homérico: “A lua que tudo assiste/ agora incide/ O mar/ — sob
efeito — ergue-se/ crispado de ondas espumantes/ Sua língua de sal/ lambe e
provoca/ as escrituras da areia firme/ Ondas deslizantes/ redesenham/ onde
outras ondas ainda/ desredesenharão/ fluindo/ no fluxo/ da influência/ Sob
efeito lunar,/ o mar muda/ e a lua,/ antes toda,/ agora, mínima/ e quem com ela
muda?”. Há outros aspectos na poesia de Ricardo Corona que merecem também ser
levados em consideração: a musicalidade, de leveza própria da balada, da canção
popular, como no poema Nascem flores com
o tempo ("sentir, eu sei, tem seu preço"); as referências
mitológicas, da Grécia a Iemanjá; o uso do humor, por vezes próximo ao non sense ("meses ímpares/ de um
ano par/ que passou"); e a diversidade léxica, que inclui o uso da gíria,
do coloquial, ao lado de termos eruditos e de nomes da parafernália
tecnológica. Por vezes, Ricardo subverte mesmo o sentido usual de substantivos
e adjetivos, criando híbridos como “galáxia canibal” e “céu anfíbio”. Na
variedade de recursos e técnicas usadas neste volume, afins ao cinema e à
pintura, a colagem está presente em peças de destaque, como A lua finge mas já reflete sóis:
"lascas de zinco refletindo/ um sopro quente passa/ do solo sobe um hálito
quente/ um vento mantra passa/ o rubro horizonte nubla de repente/ um peixe
roça a pele da pedra/ a lua finge mas já reflete sóis", poema construído a
partir de versos recortados, "roubados", de outras peças do livro,
numa espécie de mini-antologia, resumo de si mesmo.
A poesia conversa com o som e a imagem
O diálogo com as artes visuais acontece de forma mais
intensa em Tortografia (2003),
trabalho realizado em parceria com a artista plástica Eliana Borges composto de
poemas visuais e caligráficos que exploram diferentes texturas, grafias e
relações entre imagem e palavra, situadas num campo experimental diverso
daquele praticado pela Poesia Concreta: há um grau maior de indeterminação,
acaso e ruído nesses trabalhos, que escapam à funcionalidade construtivista. Deusconhecido, por exemplo, é um poema
cinético composto de uma única palavra, que aparece modificada em várias
páginas, até se converter em borrão, numa voluntária abolição de som e sentido.
A radicalidade inventiva de Ricardo Corona está presente também em seu trabalho
com a dimensão sonora da palavra, registrado nos CDs Ladrão de fogo (2001) e Sonorizador
(2007), em que o poeta subverte a forma da canção, em busca de outras
possibilidades criativas, incorporando recursos da música eletrônica e das
técnicas narrativas das histórias em quadrinhos. A pesquisa de formas vivas de
comunicação poética realizada por Ricardo Corona recupera a tradição oral
xamânica, especialmente das tribos indígenas brasileiras, como verificamos na
leitura do livro Corpo sutil (2005) e
sobretudo de Curare (2011),
que faz um interessante diálogo entre o imaginário da etnia xetá e a herança
das poéticas experimentais, investindo na espacialização do texto para realçar
a oralidade, as variações rítmicas e as mudanças de dicção. Curare desconsidera as fronteiras entre
prosa e poesia e sintetiza canto, narração e intervenção pictórica, utilizando
os sinais de pontuação como se fossem inscrições rupestres. A variação
tipológica e gráfica dá movimento às sentenças no livro, pensadas como frases
sonoras de uma partitura; neste sentido, o autor potencializa o suporte livro,
explorando suas possibilidades comunicativas. Curare é – entre
outras coisas – uma reflexão sobre o livro, numa época em que as tecnologias
eletrônicas colocam esse tema na ordem do dia. Claro: não se trata de
reivindicar a morte do livro, mas sim de repensarmos o conceito e a estrutura
do objeto, levando em consideração as mudanças na sensibilidade do leitor
contemporâneo, operadas pela navegação no ciberespaço.
(Artigo publicado na edição de abril da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA.)
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