RELENDO AL BERTO (V)

CROMO

andamos pelo mundo
experimentando a morte
dos brancos cabelos das palavras
atravessamos a vida com o nome do medo
e o consolo dalgum vinho que nos sustém
a urgência de escrever
não se sabe para quem

o fogo a seiva das plantas eivada de astros
a vida policopiada e distribuída assim
através da língua... gratuitamente
o amargo sabor deste país contaminado
as manchas de tinta na boca ferida dos tigres de papel

enquanto durmo à velocidade dos pipelines
esboço cromos para uma colecção de sonhos lunares
e ao acordar... a incoerente cidade odeia
quem deveria amar

o tempo escoa-se na música silente deste mar
ah meu amigo... como invejo essa tarde de fogo
em que apetecia morrer e voltar

(Do livro Salsugem, 1984)

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

GALERIA: YAMAMOTO SHIHAN (II)













Yamamoto Shihan, um dos últimos mestres japoneses de Aikidô que foram discípulos diretos de Morihei Ueshiba, também é expert na arte da caligrafia, ou shodo.

RELENDO AL BERTO (IV)

A SEGUIR O DESERTO
(fragmento)

lua gelada osso branco sinalização nocturna da cidade
desolação de todos os quartos
ainda entesado olho-me no espelho da noite
envolve as enxárcias húmidas deste navio-cama
odores mornos de urina
o jornal onde acabo de ler uma infindável e confusa aventura de gatos assassinos
levanto-me pela janela apercebo o mar
amanhece
como sempre acontece assim que pressinto o mar
tenho a cara manchada de sal
um gemido sobe cola-se ao espelho à pele do rosto
grito
penso que foi um grito a escorregar atrás doa andaimes
havia lama duma ponta à outra da cidade
Lulu la Balle contorcia-se num espasmo de néon metalizado
lama
havia lama quando o lisérgico astro se atreveu a descer à boca
cores de pêssegos vermelhos troncos de árvores azuis queimados sobre o relvado
um centauro de fogo cobre os telhados com guinchos num derradeiroa pelo à chuva
eu sei
naquele instante ainda sem memória poderia iniciar a fuga
mas elaboro circuitos movo-me por entreportas
atravesso o escuro sono de aves petrificadas
o sonho dos dedos estende-se luminescente
e a noite enfurece-se onde escavo a pele imensa das cassiopeias
imemoriais subterrâneos do pesadelo paralelos corpos
ruídos de insectos marcando as horas
a casa expele vibrações de água cheira a metal enferrujado
desço pelo interior rugoso das paredes
a viagem devora-me
cega-me o brilho dos alicerces ainda sólidos da casa
ultrapasso-os por fim atinjo o lodo
as ardósias onde o cuspo dos deuses inscreveu a memória daquele que foge
pressente-se já a pequenez do país submerso
quando atei a minha idade ao coração da terra era porque a morte se aproximara
suicidei-me há muito se era isso que desejavam saber
enrolei-me nos fios eléctricos
comi as estrias dos discos para possuir em mim a música possível
depois mordi a mesa a caneta e os lápis
os objectos que me cercavam
conheço bem as suas consistências texturas e dimensões
irradio luz
naquela fotografia ainda podem ver o enigmático sorriso
o visco cor de sépia do rosto meigo em cima do musgo ensanguentado
e o lugar secreto onde ressoa a respiração dum outro corpo
toco com a ponta da língua as primeiras camadas de barro
ouço uma voz: lost in a labyrinth of future mystery
entro em estado de hibernação
a eternidade

(Do livro A seguir o deserto, 1983/84, incluído na edição das obras completas do autor português, intitulada O medo.)

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS

Retrato Completo de um Domingo. Pratiquei espada de Tai Chi no Parque do Ibirapuera, de manhã; depois, li algumas páginas da História do Cerco de Lisboa, de Saramago, e almocei no Chico Hambúrguer. À tarde, assisti seriados policiais na TV a cabo, com Regina e o meu gato siamês. Revisei algumas aulas que darei a meus alunos de criação literária, separei os textos críticos sobre Fernando Pessoa que preciso ler na próxima semana, respondi a mensagens atrasadas de e-mail e por fim lerei alguns poemas de Al Berto, bebendo um bom vinho francês (afinal de contas, eu mereço isso), para depois assistir a algum clássico do cinema japonês do anos 1950, dormir e quem sabe sonhar que sou um gângster da quadrilha de Al Capone, um contrabandista inglês do século XVII ou um samurai do período Tokugawa.

UM POEMA DE MURILO MENDES

GRAFITO A VLADIMIR MAIAKOVSKI

Um cosmonauta cantando dá volta ao cosmo
enquanto eu desfaço a barba.

Constrói-se a décima musa
economia dirigida Unatotal
que deverá mover o homem novo

Planifica-se nos laboratórios
a futura direção dos ventos
extraí-se energia das algas
opera-se o sol

Eletrifica-se a eternidade
reversível

Entretanto

O PLANETA NÃO ESTÁ MADURO
PARA A ALEGRIA.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A POÉTICA DIONISÍACA DE AL BERTO

Rodrigo da Costa Araújo

A impressão digital estampada, em close, na capa do livro O Medo, de Al Berto, nome literário de Alberto Raposo Pidwell Tavares (1948-1997) e as epígrafes postas acima, emblematizam a escritura al bertiana picada pela paixão do múltiplo, do fragmento e pela perda do toque da identidade. O corpo em cena, ora revelando-se, velando-se, lido como receptáculo nessa apresentação, sensível e carregado de disfarces, entrega-se ao olhar hipnótico e sedutor do leitor, que o induz a visualizar e descrever o delírio.

Esse corpo de mistérios, ele mesmo jogo entre l’obvie et l’obtus, entre o visível e o invisível que, a luz da interpretação ou pelo olhar atento do leitor/espectador, torna-se, agora, a enunciação ou território, numa estrutura opaca, sombria e enigmática. Quem lê os poemas de Al Berto percebe, além desses recursos estilísticos das capas de seus livros, - corpo-imagem, corpo-texto -, as relações de sua produção com as outras artes, outras linguagens, entende-se o sentimento narcísico e desesperador por um desejo de se converter em poema. Sua gestualidade, à feição de um texto a ser decifrado, de um corpo que trama as suas vias e desvios, compõem-se igualmente de nomes falsos, troca de identidades, operação de truques e espelhamentos de mundos, reduplicando metaforicamente a produção artística. Suas poesias instauram o complô: o escritor, ao agir como criminoso, no roubo das citações de textos alheios, forja, ainda identidades, e se esconde atrás de máscaras; o leitor-crítico, por sua vez, ao destrinchar essas pistas, dirige seu olhar para tudo que inspira suspeita e conspiração.

Esgarçando os limites entre Alberto e Al Berto sua poesia é fruto de um narcisismo - como também fez Oscar Wilde, em O Retrato de Dorian Gray - de uma elaboração dramática perceptível em seus versos. Al Berto, nesse sentido, e ao gosto do Decadentismo, assume-se como imagem para ser contemplada, como esteta e função pública, como pose esgarçada ao limite. Suas fotografias, tomadas como parâmetro, paratextos e recompiladas nas capas de sua obra representam visualmente o texto como recurso e encenação de sua produção artística, escondem ou revelam o corpo integrando-o como temática.


(Leiam o texto integral deste ensaio na Zunái, na página http://www.revistazunai.com/ensaios/rodrigo_da_costa_araujo_poetica_dionisiaca.htm)

RELENDO AL BERTO (III)

OFÍCIO DO JADE

por vezes corre-me pelas mãos uma morte
um olhar indefinido
separado do seu rosto mais nítido, um lago de nácar embutido na indelével paisagem
sou capaz de me desprender desse rosto, desse olhar
dessas mãos que adquiriram a sageza fria das fontes e a nobreza do dragão

na verdade, os ritos do suicídio sempre me perturbam o sono, perdem-se
na milenar memória doutro corpo-meu

transparentes paisagens tecem-se em mim
balbucio um desejo
o tempo ensinou-me como deve ser procedido de recolhimento e preces
o mágico ofício do barro

a obra, é em seguida submetida à vida fértil do fogo
onde irrompe a escrita e se aperfeiçoa o jade

OFÍCIO DE VIAJANTE

procurei dentro de ti o repercutido som do mar
a voz exacta das plantas e um naufrágio
o deslizar das aves, o amor obsessivo pelos espelhos
o rumor latejante dos sonhos, as cores dum astro explodindo
o cume nevado de cada montanha
difíceis rios, os dias

vivi em Roma
no tempo em que ali chegavam os trigos da Sicília e os vinhos raros das ilhas
a fama remota dos ladrões de Nuoro

todo o meu corpo estremeceu ao mudar de voz
cresci com o rapaz, embora nunca tivéssemos sido irmãos
e quando ficamos adultos para sempre
alguém lhe ofereceu o ofício de viajante

eu morri perto de Veneza
e quando atirava pedras aos pássaros sempre me ia lembrando de ti

(Poemas de Trabalhos do Olhar. 1976/82.)

RELENDO AL BERTO (II)

eu vi
a sereia de plástico esfacelar-se no rubro sal das marés portuguesas
seios tolhidos no sange de um lápis de cor
na boca a fúria das viagens: europas américas arábias
mares estreitos onde é possível morrer
novos países novas profundidades delirantes visões
por entre o coral de teu corpo nómada
vestido de neblina e de rios
breves lâminas sulcam a memória de pequenos espectáculos
e tua mão abre-se para nos oferecer um ovo
ou seria o mundo pintado de branco e amarelo?
eu vi
a sereia do sonho cansado levantar-se luminescente
caminhar incerta pela noite adiante
olhos vibráteis captando a fragrância preciosa dos distantes marinheiros em cio
os dedos por cima doutros sexos lisos como os limos que escorregam para dentro
dos sonhos
inocência calcária dos dias
medusas mortas
o corpo enchendo-se com os despojos de um mar
eu vi
a sereia em plástico português
crescer das pérolas insones de uma ostra
e vergar o corpo sobre a folha de papel
fascinada
abria os lábios húmidos para sugar o sexo do marinheiro desenhado
escondia-se depois numa fresta penumbrosa do cais
prolongava a vigília do corpo na observação dos astros
enquanto tu continuaste a desenhar
eu vi
sua transparência de saliva pura atravessar corpos e estrelas
sem que teu corpo sofresse
ou sua transparência diminuísse
até que a noite sequiosa abria caminha às facas adivinhadas
e ao sexo em prazer vigoroso
onde peixes luminosos traçam na água as linhas da palma da mão
eu vi
a sereia de plástico construir um país
e um veleiro para se evadir na direcção doutras ilhas
levando por bagagem os detritos dados-à-costa: garrafas brancas de gin nocturno
sapatos inchados panos preservativos usados cacos de louça embalagens
carcomidas cartões de caixas ao vento velas da imensa jangada vestígios de
comida rápida pentes vidros filmes madeiras fotografias que o tempo recusou
morder
e navegou
navegou demoradamente conheceu a sede e a fome
o frio a neve de flutuantes ilhas a alucinação
eu via
sereia embriagada abrir garrafas de cerveja com os dentes
e oferecer flores envenenadas aos amantes
dobrada sobre as flores da velhice deixava-as cair
na vertigem fortíssima da aguardente
roía as unhas e a ferrugem dos brinquedos
desenterrava da memória colheres delirantes
restos de rostos carbonizados
areias cobertas de ouro e de peçonha
eu vi
a sereia fender seu próprio coração a golpes de sílex
e tatuar perto do antigo coração um rosto um cereal doente
nas veias rasgadas por monstros marinhos e pelo medo
o imenso medo do fim da adolescência
eu vi
a sereia em plástico português abrir um sulco de solidão
o precipício
e renegar o falso mel da terra debruçada sobre o esquecimento
rectângulo da monotomia donde soçobra o vómito
tudo enlouquece na ponta do lancinante lápis
as lágrimas o grito
eu vi
a sereia soltar das suas mãos a última paisagem viva
a papuola opiácea da morte envolvendo os corpos
antes de mergulhar para sempre na escuridão contínua do mar
eu vi
avermelhadas planícies
onde minúsculos animais fluorescentes semeiam olhos muito abertos
rasgando o confuso orvalho com suas caudas peludas
enroscando-se no doloroso pulso
transformam-se em pulseiras de sangue
a serpente mineral estrangulando o dedo
e no ombro do mar o adolescente nu reclina o corpo de água
dentro do emaranhado de libélulas enfurecdas voando
voando voando
eu vi

(Do livro O Mito da Sereia em Plástico Português, 1979)

RELENDO AL BERTO (I)

no sábio jardim d’agosto floresce cor de malva o adocicado dos musgos opiáceos. ventos de fumo azulíneo tingem o melancólico corpo. a manhã costura um lírio de lume, ao inevitável vômito. a pele fica molhada no fresco orvalho da terra, um pássaro move-se no interior marulhar das vozes. os cabelos fibrosos agitam-se em tuas mãos, dentro de mim. acariciam o precário destino do sangue. o ar estrangula-nos com doçura. corto um dedo. corto-o porque está a mais numa das mãos anjauladas na alba. há caminhos que nos conduzem para além da paisagem de papel. estátuas de areia molhada deitadas na relva sequiosa de sono. felpudos antirrinos em murmúrios de saliva. despertam com lentidão pelos nervos repletos de lume. nos lagos da memória reflete-se o silencioso rosto do homem-vegetal. subitamente expande-se no sexo o espesso líquido da alucinação. a droga purifica. a memória projeta-se para lugares inacessíveis. turva-se de pássaros cortantes pontes dilaceradas corpos que pernoitam no estremecer laminar dos neons. acocorados olhamos para a noite em quatro dimensões. do corpo insone irradia o crime. um ninho de vespas enlouquecidas contamina o sangue. luz negra quase solar. o coração atingido.

(Do livro À procura do vento num jardim d’agosto, 1975, incluído no volume O Medo, que reúne a poesia completa do autor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.)

domingo, 22 de agosto de 2010

DOIS POEMAS DE PHILIP LARKIN


QUE ASSIM SEJA O VERSO

Eles te fodem, teus dignos pais.
Podem dizer que não, mas remanescem.
Te legam seus defeitos pessoais
E alguns extras, só para ti, acrescem.

Mas a seu tempo foram fodidos nos zeros
Por idiotas de velhos chapéus e churras,
Que metade do tempo eram austeros
E outra metade viviam às turras.

O homem a desgraça passa ao homem.
E ela aprofunda-se como uma gamboa.
Anda, sai logo dessa, vê se some,
E não pensa que ter filhos é uma boa.


DINHEIRO

Quinzenalmente, será, o dinheiro me reprova:
'Por que me deixar mofando aqui na cova?
Sou tudo que você não teve de sexo e pileques
E ainda pode tê-los preenchendo uns cheques'.

O que outros fazem dele, é questão curiosa:
Já têm uma segunda casa, carro e esposa.
Decerto, não o mantêm no sótão, feito jazida:
Líquido, dinheiro tem algo a ver com vida.

Ambos têm muito em comum quando se pesquisa:
Mas se você banca a sovinice, acumula divisas,
E, de jovem, desanda a poupá-lo até se aposentar,
Não te paga no fim muito além de um barbear.

Ouço o canto do dinheiro. É mirar do piso superior
Por amplas janelas, numa cidadezinha do interior,
Os casebres, o canal, os brocados da igreja em riste,
Doidos, ao entardecer. É intensamente triste.

Tradução: Ruy Vasconcelos

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

SONETO DO BURACO DO CU

por Arthur Rimbaud e Paul Verlaine

Paul Verlaine fecit

Franzido e escuro como um cravo violeta,
Ele suspira humilde, oculto sob a espuma
Ainda úmida do amor que escorre numa
Esfera glútea até que ao fundo se intrometa.

Alguns filetes, feito lágrimas de leite,
Choraram sob o irado austro que os arrasta
Pelos calhaus de marga vermelhosa e gasta,
Para sumirem na voragem do deleite.

Arthur Rimbaud invenit

Amiúde acoplo a minha boca na ventosa
Minha alma, da corpórea cópula invejosa,
Fez ninho de soluços no bueiro rubro

É o tubo de onde desce a ambrósia do delubro
É flauta carinhosa, é intumescida oliva
É fêmeo Canaã que eclode na saliva.

Tradução: André Vallias


Nota do tradutor: poema em forma de paródia a um livro de Albert Mérat, intitulado O Ídolo, onde se detalham todas as belezas de uma dama: soneto da face, soneto dos olhos, soneto das nádegas, soneto do... último soneto.

DESASSOMBRO

Severo Snape lê a poesia completa de Bruno Tolentino em aramaico

entre um gole de suco de abóbora

e um gesto teatral com sua capa preta.

Lord Voldemort bebe sangue de unicórnio,

escreve 65 sonetos neoclassicistas

e faz anotações em seu blog sobre a crise da poesia

na pós-modernidade.

Bombas de fósforo branco caem sobre Gaza, Bagdá, Beirute,

minas terrestres explodem em Luanda e Maputo,

indiferentes a discussões estéticas sobre Manuel Bandeira

ou o último desfile da São Paulo Fashion Week.

Poetas brasileiros imitam limitações de Drummond,

falam de lirismo e subjetividade,

e vão empilhando diminutivos e palavras singelas

no jazigo de CDA, como ex-votos.

Lucius Malfoy tem uma coleção de bonecas lésbicas estranguladas

em sua casa mal-assombrada;

aqui, poetas brincam de boneca, em total desassombro.

Die Narbe der Zeit

tut sich auf

und sezt das Land unter Blut -

Die Doggen der Wortnacht, die Doggen

shlagen nun an

mitten in dir.

("a cicatriz do tempo

abre-se

e afoga a terra em sangue -

Os dogues da noite das palavras, os dogues

atacam agora

bem dentro de ti").

Paul Celan acordou do pesadelo da história nas águas do rio Sena

sem nenhum desassombro.

Poesia é algo que faz as palavras cantarem

- não como alaúdes (ataúdes)

mas como nervos expostos da linguagem.

(Editorial do n. 10 da Zunái, publicado em agosto de 2006.)

JULES LAFORGUE, 150 ANOS









Caros, confiram a nova edição da revista eletrônica Errática, editada por André Vallias, com traduções de Júlio Laforgue, em edição comemorativa dos 150 anos do poeta uruguaio de língua francesa. A revista pode ser acessada no endereço http://www.erratica.com.br/

ÚLTIMAS NOTÍCIAS


Caros, li a seguinte notícia no jornal Folha de S. Paulo (14 de agosto, caderno Folha Ilustrada):

“As diretorias dos sindicatos dos jornalistas e dos radialistas de SP lançaram na quinta à noite, em reunião de que participaram cem pessoas, o movimento ‘Salve a Rádio e a TV Cultura’. É a primeira tentativa de reação às mudanças que João Sayad, presidente da Fundação Padre Anchieta (mantenedora da TV Cultura), pretende implantar. Sayad já anunciou o término do programa ‘Manos e minas’ e do ‘Login’, focados em jovens. Para a diretora do sindicato dos jornalistas, Rose Nogueira, o movimento ‘não visa apenas defender o emprego dos funcionários da emissora, ameaçados de demissão em massa, mas também defender um patrimônio cultural do povo paulista’. Sayad assegurou anteontem a representantes dos radialistas e dos jornalistas que não tem a intenção de demitir 1.400 funcionários, como chegou a ser veiculado. Segundo o presidente da Fundação Padre Anchieta, as dispensas devem atingir no máximo 450 trabalhadores responsáveis pela realização de programas que a Cultura prepara para veiculação na TV Justiça e TV Assembléia, entre outros (...). Aos sindicalistas, Sayad disse que essas demissões devem acontecer até dezembro deste ano”. Ou seja, as demissões vão ocorrer após as eleições estaduais. Mera coincidência, não é? Continuando a matéria, diz José Augusto de Oliveira Camargo, presidente do sindicato dos jornalistas: “Temos que discutir o que deve ser uma TV pública. O Sayad já disse que quer fechar várias unidades de produção de programas e passar a comprar conteúdos de produtoras independentes. Para isso não precisa uma TV Cultura. Basta uma antena”.

UM POEMA DE JORGE LÚCIO DE CAMPOS

A AULA DE GUITARRA

a Balthus

1
Não me lanço
à vida
por acaso:
não existo, resplandeço. Não celebro
o pranto que me oprime
e esgota meus recursos
Por acaso
um dinossauro, uma baleia
– uma impressão de poucos dígitos
Num rappel à l'ordre faço a luz
e o espaço
constitui minha colagem
– me acolhe num espelho
incoerente

2
Paraliso minhas
folhas de papel
e o poema perde o cálculo, o metal, a
urgência que o acordoa
e meu corpo se desfaz
– velado extrato
a raptar o mundo
O que me resta
rumoreja
me leva pra fora
despe
agride
sodomiza

3
Excluo apegos
e de vez
me torno em
torno de mim
Se me falam
não respondo
Se me tocam
me desvaio, devoro
a língua –
sujo a tábua rasa
de minha alma
– pinto um pôr-do-sol
e então fujo –
finjo que
não ouço
minha aula
de guitarra

UM POEMA DE CLAUDIO NUNES DE MORAIS

ALGUNS GUITARRISTAS

Ouvi Manolo Sanlúcar
e Isidro, o mano fiel:
de suas cañas, o açúcar

por entre os caules de fel.
Ouvi também, no Brasil,
Cañizares (Juan Manuel):

ciência, vasta e não fácil,
mas espontânea, apresenta.
Ouvi depois esse anil

das mãos de Amigo (Vicente),
que apresenta em outro tom
Córdoba: explosivamente.

E antes Solera (Antonio)
- ouvi (ou vi) bem de perto
(e revi)–, em Carmen: dom,

Bodas de Sangre em concerto.
Mas ouvi Francisco Sánchez
Gómez, Paco (o mais deserto

da história: numa avalanche
de toques que invade e muda
o toque, como revanche:

a guitarra mais aguda,
mais musical, a fronteira
também do grave, sisudo):

“o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra”,
o que calcula as maneiras

de cada corda que vibra
e acorda em toda a magia
do “fluido aceiro da vida”

a frágua, a gitanería,
sim, ouvi Francisco Sánchez
Gómez, Paco de Lucía:

cultivando uma avalanche
de toques, mas com mão certa,
não deixa que se desmanche

o toque que se completa
com o elenco dos tablaos
e das peñas mais secretas,

pois tal guitarra, ou granada
que explode à frente do elenco,
sempre renasce – extremada –

dos pés, da voz do flamenco.

UM POEMA DE RAINER MARIA RILKE

DANÇARINA ESPANHOLA

Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.

E logo ela é só flama, inteiramente.

Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com a arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.

Então, como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.

Tradução: Augusto de Campos

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Caros, recebi a notícia abaixo do poeta e amigo Abreu Paxe. Para quem não sabe, Ruy Duarte de Carvalho foi um dos autores mais representativos da poesia africana de língua portuguesa do século XX. Agora, ele está em outra dimensão, ouvindo a música das esferas.

Morreu o escritor e membro da UEA Ruy Duarte de Carvalho

A União dos Escritores Angolanos soube nesta quinta-feira (12 de agosto) e leva ao conhecimento do público o falecimento do escritor e membro desta instituição Ruy Duarte Carvalho. Segundo fonte familiar, depois de alguns dias sem dar notícias, o mesmo foi encontrado sem vida na sua casa em Swakopmund, na Nabímibia, para onde foi viver depois da reforma.

Ainda não se conhece a causa de morte do escritor de 69 anos, que também se dedicava ao cinema, artes plásticas e era doutorado em Antropologia, pela École de Hautes Études en Sciences de Paris, exerceu a actividade docente de professor na Universidade Agostinho Neto e foi professor convidado na universidade de Coimbra e na Universidade de São Paulo (Brasil), além de ter sido professor convidado da Universidade de Berkeley, na Califórnia, e realizou dois filmes Nelisita: narrativas nyaneka (1982) e Moia: o recado das ilhas (1989).

Nascido em Portugal, naturalizou-se angolano em 1983 por motivos que, como explica no catálogo do ciclo que o Centro Cultural de Belém lhe dedicou em 2008, se prendem com o sentimento, de que teve consciência aos 12 anos, depois de a sua família ter emigrado para Moçâmedes (Angola), de que tinha ali a sua "matriz geográfica"

No mesmo texto, reproduzido na página da sua editora de sempre, Livros Cotovia, explica: "Lembro-me de ter nascido, ou então de ter mudado inteiramente tanto de alma como de pele, pelo menos uma meia dúzia de vezes ao longo da vida e nenhuma delas foi lá onde terei, pela primeira vez, dado conta da luz do mundo. De que havia uma matriz geográfica que essa é que me dizia de facto muito intimamente respeito pela via quem sabe de uma qualquer memória genética, dei conta aos doze anos - lembro-me sempre de cada vez que ainda por lá passo e se calhar é para isso que ando sempre a ver se passo por lá – a comer pão e com um ataque de soluços no meio do deserto de Moçâmedes, por alturas do Pico do Azevedo. E de que havia uma razão de Angola que colidia com a razão de Portugal, disso dei definitivamente conta já a trabalhar nas matas do Uíje quando, em março de 1961, eclodiu a sublevação nacionalista no norte de Angola.”

No mesmo texto, o escritor e ensaísta explica a sua experiência da independência de Angola: "Acabei por voltar a Angola em 1974 e por passar a noite de 10 para 11 de Novembro de 1975 no município do Prenda, em Luanda, a filmar às zero horas, que foi uma hora zero, a bandeira portuguesa a ser arreada e a de Angola a subir no mastro".

Em 1989 recebeu o Prémio Nacional de Literatura e o seu Desmedida Luanda, São Paulo, São Francisco e Volta, Crónicas do Brasil (Livros Cotovia), recebeu o Prémio Literário Casino da Póvoa, atribuído no âmbito do encontro Correntes d'Escritas na Póvoa de Varzim, em 2008

A sua formação passou pela Escola de Regentes Agrícolas de Santarém, pelo curso de realização de cinema e televisão em Londres (realizou filmes para a TV angolana e para o Instituto do Cinema de Angola) e pelo doutoramento pela École de Hautes Études en Sciences Sociales de Paris com uma tese dedicada aos pescadores da costa de Luanda, com o título Ana a Manda (1989).

É autor de Vou lá visitar pastores (1999), da poesia de Chão de Oferta (1972) ou A Decisão da Idade (1976) - a sua poesia está reunida em Lavra (2005). Assinou ainda os diferentes estilos de A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita... Fitas, Textos e Palestras (2008), Actas da Maianga (2003), Os Papéis do Inglês, As Paisagens Propícias (2005) e descrevia a sua obra como "meia-ficção-erudito-poéticoviajeira".

Em 2008, Rui Guilherme Lopes adaptou a obra Vou lá visitar pastores (1988), sobre os Kuvale, uma sociedade pastoril do sudoeste de Angola, encenada e interpretada por Manuel Wiborg e que esteve em cena noTeatro A Barraca, na Culturgest, no FITEI (Porto), no Festival de Almada e no Festival de Agosto em Maputo, Moçambique.

De acordo com a sua editora de sempre em Portugal, a Cotovia, a sua obra Vou lá visitar pastores está editada no Brasil pela Gryphus, As actas da Maianga foi editado em Angola pela Chá de Caxinde, que também editou Os Papéis do Inglês, obra que chegou ao Brasil pela Companhia das Letras de São Paulo e a Itália pela La Nuova Frontiera.

DIÁRIO DE UM VIAJANTE

Caros, no dia 11 de agosto, quarta-feira, às 20h, estarei em Itajaí (Santa Catarina) participando do evento Folias da Fala, promovido pelo Sesc. Vou debater o tema "Poesia e Novos Suportes" com a Clarah Averbuck e o Alckmar dos Santos. O evento acontecerá no Celio's Restaurante. Outra coisa: saiu a segunda edição de meu livro A Sombra do Leopardo, pelo selo Orpheu, da editora Multifoco. O livro, que recebeu em 2001 o prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, oferecido pela revista CULT, pode ser solicitado junto à editora, no site http://www.editoramultifoco.com.br/literatura-selos-detalhes.php?idMidia=29&idSelo=17

UM CONTO INÉDITO DE WILSON BUENO

SOMBRUS

Perde-se na noite dos tempos a memória do primeiro navegador que desembarcou na ilha de Sombrus. Não se sabe quando isso se deu nem a nossa humanidade foi capaz de buscar mesmo a data aproximada da arriscada façanha.

É que em Sombrus vivem e latem, noite e dia, os cães selvagens do Arquipélago, que ali fizeram morada não se sabe igualmente como e muito menos por meio de quem. Aliás, pouco se sabe da história primeira de Sombrus, suja, sem dúvida, de lendas sinistras e ainda mais sinistros eventos de sangue e mar, sal e insistência.

Não convém, de nenhum modo, entretanto, ficar aqui lembrando a história pregressa de uma ilha que emergiu das águas do Pacífico feito uma flor monstruosa e triste. O que vale anotar é o presente. Este se dá, em Sombrus, de forma sumamente enigmática – as horas passam não em direção ao futuro, mas num lentíssimo escoar-se passado e saudade afora. Herança, odores, perfumes – esvaídos nas dobras dos dias, puro reverso, notícias longínquas, ecos de tardes soterradas pelo Tempo.

Em Sombrus, primeiro vêm as noites e depois delas o entardecer e, na sequência, a própria tarde, a manhã, o alvorecer, a madrugada inteira, para só então sobrevir de novo a noite antes da meia-noite, a lua e as estrelas.

É sempre assim. Conosco também retornam as faces que a mó dos anos puiu e gastou, e, tudo o que era sulcos e rugas reverte, o que é ainda mais inquietante, até uma temida infância que ameaça as gentes com o retorno ao útero e do útero ao aéreo nada de que fomos feitos um dia. A morte de não haver?

Contudo, os cães de Sombrus são os únicos seres que alcançam vencer a marcha à ré do Tempo. Nascem, crescem, procriam e morrem – os alvos ossos nas praias desertas; cada vez mais desertas.

Ninguém até hoje conseguiu explicar porque de toda ilha são os únicos seres vivos capazes do que chamamos, em Sombrus, ou fora dela, escassamente, de futuro.

Então é que se dá de Sombrus o inenarrável encanto – os cães, diz a lenda, são os testemunhos fiéis de que, mesmo ao contrário, os anos andam e andam, consumindo seres e coisas, vegetais e pedras.

Por isso, aturdidos, os cães latem, tarde da noite, e vão aos bandos pelas praias da ilha, como se sentissem a dor do Tempo atravessada na garganta.

Isso um dia vimos e ouvimos, nós, os navegadores de Hérida, há muitos e muitos séculos. Desconhecemos apenas se, pelos indizíveis meses que passamos ao mar, e o nenhum calendário, eles, os séculos, se encontravam ou não ao revés.
(Do livro de contos Ilhas, ainda inédito, que o pintor das tardes da floresta enviou para mim, semanas antes de virar constelação. Saudades, mano velho!)

ME ROUBARAM UNS DIAS CONTADOS

Só estou vivo neste livro. No mundo real, sou um zumbi. Um vampiro. Uma criatura estranha. O profeta Gentileza é que estava certo: “Gentileza gera gentileza”. A ordem das gentilezas. A ordem das sutilezas. Do caos. Das idéias. Dos pensamentos. A Ordem dos pensamentos. A Ordem do Carmo. Rodrigo é beato. Acredita em deuses. Cristo. Iemanjá. Apolo. Afrodite. Ateneia. Exu. Afrodite. Mickey Mouse. Chaves. Eu acredito que tudo pode ser Deus. Tudo que vem do humano é Deus. Uma geladeira. Uma máquina de lavar. Conheci deuses na infância. Garotos que morreram. Solidões inóspitas que só se davam comigo. Café com leite. A utopia é importante. Escrever uma página hoje já é uma utopia. O futuro manda lembranças. As lambanças que fiz, que farei. Eu sofro. Sofro de um sopro de vida.

(Do livro Me roubaram uns dias contados, de Rodrigo de Souza Leão. Rio de Janeiro: Record, 2010.)

UM POEMA DE ANDRÉ BRETON

A UNIÃO LIVRE

Minha mulher com o cabelo de fogo de lenha
Com pensamentos de relâmpagos de calor
De talhe de ampulheta
Minha mulher com a talhe de lontra entre os dentes de tigre
Minha mulher com a boca de roseta e de buquê de estrelas de última grandeza
Com dentes de rastro de camundongo sobre a terra branca
Com língua de âmbar e de vidro em atritos
Minha mulher com língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de inacreditável pedra
Minha mulher com cílios de lápis de cor das crianças
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E de vapor nos vidros
Minha mulher com espáduas de champanhe
E de fonte com cabeças de delfins sob o gelo
Minha mulher com pulsos de fósforos
Minha mulher com dedos de acaso e de ás de copas
De dedos de feno ceifado
Minha mulher com axilas de marta e de faia
De noite de São João
De ligustro e de ninho de carás
Com braços de espuma de mar e de eclusa
E de mistura do trigo e do moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e de desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de chaveiros com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com a garganta de Vale d’Ouro
De encontro no leito mesmo da torrente
Com seios de noite
Minha mulher com seios de toupeira marinha
Minha mulher com seios de crisol de rubis
Com seios de espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com ventre de desdobra de leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolada e de giz molhado
E de queda de um copo do qual se acaba de beber
Minha mulher com ancas de chalupa
Com ancas de lustre e de penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e de amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de gladíolo
Minha mulher com sexo de mina de ouro e de ornitorrinco
Minha mulher com sexo de algas e de bombons antigos
Minha mulher com sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e de agulha magnetizada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de madeira sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.

Tradução: Priscila Manhães e Carlos Eduardo Ortolan

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Caros, a reunião do Ministério da Cultura com os escritores para discutir as propostas de reforma da Lei de Direito Autoral está sendo transferida. O local e horário ainda não foram definidos.

TRÊS POEMAS DE KHLÉBNIKOV


TREVAS

Quando não aguento mais o tédio,
Saio para o sol em disparada,
Asa esvoaçando pelo éter,
A virtude e o vício misturados.
Morro, eu morro, o sangue escorre a cântaros
Na couraça do meu corpo.
Caio em mim – e então, de novo,
Só enxergo a guerra em teu olhar.

1907 - 1914

CANÇÃO DE UM CONFUSO

Eu, na pintura de pedra,
Vejo agulhas de pinheiro.
Desossada me parece aquela mão,
Quando bate violenta em minha entranha.
Mas tão cedo assim? Estranho o hóspede
Que adentrou a casa ao pôr-do-sol:
Esqueleto erguendo lento os longos braços,
Para encher de estrelas a sala de estar.

1913

* * *
A noite, coalhada de constelações.
Que destinos, considerações,
Brilhas, livro, na amplidão do escuro
Fundo? Liberdade ou jugo?
Qual a parte que me cabe deste
Latifúndio-céu de estrelas?

1912


Tradução: André Vallias

DOIS POEMAS DE HENRI MICHAUX

Labirinto, a vida, labirinto, a morte
Labirinto sem fim, diz o Mestre de Ho.

Tudo afunda, nada libera
O suicida renasce para um novo sofrimento.

A prisão termina em uma prisão
O corredor termina em outro corredor:

Aquele que crê desenrolar o rolo de sua vida
Não desenrola nada em absoluto.

Nada desemboca em nenhuma parte
Os séculos vivem também sob a terra, diz o Mestre de Ho.

* * *

Sem que eles falem, lapidado por seus pensamentos

Mais um dia de menor nível. Gestos sem sombras
A qual século é preciso se inclinar para perceber?
Samambaias, samambaias, diríamos suspiros, por toda parte, suspiros
O vento espalha as folhas soltas

Força das macas, há cento e oitenta mil anos já se nascia
para apodrecer, para perecer, para sofrer
Este dia, quando éramos semelhantesquantidade de semelhantes
dia em que o vento se tragadia de pensamentos insustentáveis

Vejo os homens imóveis
deitados nas canoas

Partir.
De qualquer maneira, partir.

A longa lâmina do fluxo d´água deterá a palavra.

Tradução: Daniela Osvald Ramos

UM POEMA DE GAO GE

PAISAGEM DE MACAU

Uma fera agachada na sombra de um castelo
são os seus olhos faróis a sondar todas as direcções
Um moinho de vento invertido faz lembrar a cruz brilhante
O século XIX atirou para o Oriente as lanças
cujos gumes cruzados reflectem os raios da santa cidade

A ponte da longa vida foi reduzida entre tintas de uma pintura chinesa
e a noite torna-se mais palpável no colo de uma mulher lasciva
A graça do vento marítimo é a ilusão do diamante na ágata negra
e as sombras que se movimentam nos raios giratórios
mantêm entre si a menor distância para que disparem um contra o outro

Passo a passo, a história tem vindo a entrar numa estação mais excitante
A redonda cama eléctrica tenta desgastar os limites da sua tipologia
O Deus que protege a Praça do Cavalo de Cobre saiu do memorial
ainda numa postura de dom Quixote
e os alcoviteiros adaptaram histórias eróticas com as lendas do herói

São histórias que se repetem todas as noites
porque nas gaiolas de luxo vive-se um ambiente sensual
em que os homens sobrevivem com uma sensação amorosa
Mas a questão é como manter a eterna erecção
e como fortalecer o regime representativo com o bálsamo mágico da Índia

"O jogo moderado dá prazer" é justificação do público para se divertir
Os "Come-moedas" funcionam ruidosamente para criar efeitos publicitários
Dominó, grande ou pequeno, roleta e bah ka lo deslumbram os olhos
Desde os assaltos dos piratas até aos desafios contra o rei do cassino
tudo é uma combinação da civilização ocidental e da sabedoria oriental

A fome e o sexo são dois eixos da natureza
Hoje são os novos confucionistas que lideram a moda
Há quem se retire da rede de camarões
Há quem finja o porco para devorar o tigre
Há quem apanhe a galinha de patas amarelas
Há quem se torne no caranguejo de Dai Zah
Aqui se pode provar um vasto leque de especialidades
desde os bolinhos a vapor de Shangai
até as pamonhas com carne salgada do Território
O gosto tailandês e a delícia filipina fazem crescer água na boca

Não importa quem seja o cliente
compatriota da Formosa ou visitante do Japão
O que preocupa as dançarinas é o câmbio das moedas estrangeiras

e a nostalgia da terra é medida com a diferença
entre o dólar de Hong Kong e o da América
As meretrizes do norte já não sabem cantar "Quando o senhor regressa?"
e as beldades vestidas de cabaia ignoram o que é o "Tratado de Mong Há"

Para saciar o sexo é preciso explorar a imaginação histórica
No sonho de reencarnação a vida é fantástica e colorida
Reúnem-se os fantasmas de quatrocentos
junto dos Montes da Guia e da Penha
Por fim, o castelo reduziu-se a um recorte dentado
defendendo o Monte Carlo do Oriente indefeso.

Tradução: Yao Jingming

UM POEMA DE DAVID HUERTA

LOUCURA, UM CORPO: ESTE PAPEL

AGORA salta a fantasia como lasca de ferro, espumas velozes,
tantas luas na garganta sob a linha do frio,
uma mulher azul na água das mãos e uma longitude frágil na
procissão do verão sobre o olho.

Unhas cravadas na luz, roupa de cego. A loucura passeia, navega.
As pernas estão afiadas como navalhas: filtros do talho,
calcanhares desnudos sobre o pó das maneiras sociais.

Filtros da punhalada, saliva luminosa no peito desejado.
Baixam os dedos pela laguna de um peito, no ar se ocultam
palavras negras,
desfiadas profecias, entalhes, documentos, esquinas repletas,
rincões borrados pela ânsia.

O verão passeia, passa entre as pernas.
Toca o corpo: é uma aurora entre os cabelos.
Amêndoas salgadas para o que foge de sua mãe: o Desejoso.
Vapores, tóxicos do século para o que grita, voraz, para o que vocifera nas ruas vazias.
O doce louco geme, gagueja, suplica: sua saliva brilha para nós
nos cantos da boca.

Temos beijado o mundo com lábios mecânicos, no ardor,
afastados de ti,
apartados de toda ciência e de todo saber para chegar a ti,
mais nus que livres, mais estranhos que a fantasia que dói
em teus rostos de bocas abertas,
em teu pijama de hospital, em tua mãe e seus gestos à defensiva,
mas gestos de tigre
que babeja o leite da piedade, a comiseração, a dor, etcétera.

Sentes o ar ou a brisa, seus fantasmas brilhantes.
Quem te fala ouve também, desesperado, só e mais só que tu,
encerrado, quem fala e te ouve
está mais encerrado que tu, tem suas próprias frestas, escuras dores como tu, como tu.

Abres a boca e recebes o verão. Falsa salvação, outra mentira à
conta das maneiras sociais, da beleza, da contemplação, etcétera.
Abres as mãos: nada. Nem um peito nem umas pernas afiladas contra os pedernais.

Quem te fala, caralho, tem verão próprio, saliva escura e uns
lábios inconsoláveis.
As túnicas do medo, da culpa, da batalha surda para ti.
Nenhum peito primaveril entre a seca morte do verão, entre os
barreiros despedaçados,
entre as letras lidas com uma enorme dificuldade, entre as páginas
submersas numa luz mais estranha que teus lábios.

Cresceu a tua barba e dizes que todavia estás confundido.
Fala com quem te ouve, saca o desejo de tua maquinaria sentimental
como vulto de areia para o próximo embarque,
fala de poesia, ignora tudo e abre os olhos outra vez, caralho.

O verão te engana, eu te engano ao escrever isto.
Pensa com as pernas juntas e com as pernas separadas, ouve a água da chuva e passa as mãos pela janela,
pelos olhos, pelo peito sangrando de tua terceira ou quarta tentativa de
suicidar-se vivendo morto, vivo, fictício, etcétera.

Eu não sei nada. Eu te vejo entre 95 paredes e uma frágil fresta
como um planeta à deriva. Nessa fresta porás as mãos
quando eu te vou visitar, Desejoso.

O verão é outra ficção, estas palavras também.
De onde te vejo, te ouço, toco tuas mãos frágeis em meio a uma
tormenta de antipsicóticos,
tua espádua no abraço como uma praia submersa em espessos detritos.

Céu de verão, loucura, pureza. Estas palavas para ti.
As maneiras sociais ardem comprazidas. Nenhuma rebelião, só
amêndoas salgadas como ratos para tua boca surda.
Onde te queimas, te dói, te cala. Dás com a cabeça contra uma das
95 paredes que te cercam.
Este sal implacável entrando por tua boca é minha comodidade,
o fervor médico, os engarrafamentos de trânsito, as eleições de
um domingo plácido,
a roupa negra do coveiro, as grilhetas do verão civil.

O desejo úmido é uma cova salpicada de maravilhas, no reino de
outra realidade.
Pássaros vêm pelas pontas desta luz metálica, o verão se fecha
como uma caixa
e te deixa com um corpo extravagante de mimo, de obscurantista.

Cada filete de tuas palavras entra nessa caixa,
o céu médico te unge e te amordaça, estende seus alvéolos de cura em teus membros lastimados, lastrados.
Porém o desejo e seus colares de mesmidade. Caralho. Uma cascata se fecha sobre ti,
sobre os reinos de tua cabeça, sobre tuas mãos adelgaçadas.

Luz curva de verão, linhas fraturadas. Linguagem fraturada.

Tradução: Claudio Daniel

DOIS POEMAS DE GEORGE TRAKL

O SONO
Amaldiçoados, veneno escuro,
Sono branco!
Este jardim estranhíssimo
De árvores entardecentes
Fartas de serpentes, falenas,
Aranhas, morcegos.
Forasteiro!
Tua sombra perdida
No crepúsculo,
Um obscuro corsário
No mar salgado da tribulação.
Esvoaçam pássaros brancos na aba da noite
Sobre cadentes cidades
De aço.

CLAMOR
Sono e morte, as águias da sombra
Esvoaçam noite adentro nesta fronte:
O dourado retrato dos homens
Teriam-no tragado as ondas gélidas
Da eternidade.
Em recife horrível
Esfacela-se a carne púrpura
E a voz escura clama
Sobre o mar.
Irmã de irada angústia, mira:
Uma frágil jangada naufraga
Sob estrelas, face
A face da noite que se cala.

Traduções: André Vallias

UM POEMA DE MARIA-MERCÈ MARÇAL

1

Disseste-me: este
é o meu corpo,
o meu sangue.
Toma, come e bebe
- vida e mortalha.

Depois, o pão
fatiado, ferido
pela faca
e o vinho vermelho
vertido, manchando
as toalhas.

Sob o olhar
obsceno de um deus
que te usurpava
as palavras.

2

Sagrada obscenidade
do corpo
tocado pela promessa
da morte:
como um pária
ou como a marca
de um deus ausente.

Sejas sacrílega
e devolve-lhe
a qualidade humilde
dos corpos vivos.

3

Como se me viesse de ti
a carne, o sangue
das palavras.

Tradução: Ronald Polito