UM POEMA DE LJUDEVIR HLAVNIKOV


eufrates tigris ganges yang-tsé

espadas como ríos delinean nuestro horror bajo este acantilado otro encaje fucilar destituye al sol en pos de un reino pequeño y rabioso que horade el cauce del agua

veinticuatro horas solares silban contra el turno de una muerte natural

ciertamente no hallarás nada personal en cristo cuando laves tu cruz entre las cenizas

alba de enroscado párvulo en el martirologio del símil quieto en el cadáver calciforme y ejemplar

un sextante demediado se opone al signo ya desierto de un fermentado limo

pirámides que no ceden arena que cautive la fábula del incesto exquisito que encienda pétalos de nieve oh rosa circuncisa

dijes y mucosas unciales despojos de cielos no correspondidos datos encallados en la estadística decimal que precede a la primavera

repítase escena en dos lados del electrón en que mandala y urbe se funden así la incertidumbre y el asombro

ouroboros de huesos uñas y alas en el azufre del fósforo reposa un reloj huracanado

este es mi rostro

dulce solaz ahíto entre las bestias y los arenales de ocho puntas tal como rasgó su señal el cordero en los cuatro puntos cardinales de un enjambre

y prefiere devenir lejos de su escolio la perdiz mas tálamo a tálamo tiende su quebrada en la noria

un nigromante y su ruiseñor acaudalado viajan a la última caricia del ciego qué explicación dará lo pulsado pulsándose cual emblema

rollos de semilla crispada en los idus salva del agua muerta el paroxismo de mis llagas y mi desolación suspendida

a partir del fuego vivo la rama se devela entre los muertos ofreciendo honor y gloria en su relicario

coro nupcial habrá tras la fracturación de la mies y las ninfas velarán con las larvas la fija hora del polen el destierro será meditado al unísono

inmóvil y pálido un púber bebe la estela del crepúsculo y desdobla los prodigios

doble llama ocaso y amanecer de las ascuas donde inflama el mundo la eucarística transfiguración del cisne

tripartito el nombre y dual su heráldica la criatura gira sobre un tiempo aural

dispersos los asteroides en cromáticos signos vertebrados la música acompaña al huésped hasta sus orgones

un confín de holocaustos y sacrificios ante la fiebre y el acto de bondad propone su cicatriz

visiones de estupor y piedad se adhieren al recién venido denodando la sed para su extrema transitividad

oh sinfonía de quieta dulzura custodia a mi hermano en la orilla

acá vendrá un día a recibirme de este viaje y llevará un muerto como el mío al lado de los vivos

para que en el mar pueda extraviarse mi cuerpo en su resplandor

de los escombros sea la virtud que aplique al dorso de la lengua


Brandemburgo, s.XV

Leiam mais poemas de Ljudevir na edição de dezembro da Zunái.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

POETA EM CENA: ADEMIR ASSUNÇÃO






O ciclo Poeta em Cena, organizado pela Casa das Rosas, apresentará neste fim de semana o espetáculo Zona Branca, uma encenação de poemas de Ademir Assunção, onde encontramos referências culturais que vão da filosofia oriental ao rock, do cinema ao imaginário indígena, do erotismo aos temas psicodélicos. Aqui, a porosidade do “eu” põe em xeque a percepção do real, colocando-se no limiar entre sonho e realidade.


Sábado, 28 de novembro, 20 e 21h:
Apresentações teatrais.

Domingo, 29 de novembro, 20 e 21h:
Apresentação teatral e apresentação seguida de conversa com o poeta.

Entrada franca.

Retirada do ingresso com uma hora de antecedência, na recepção da Casa das Rosas.

25 lugares por apresentação.

Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura

Avenida Paulista, 37 Próximo à Estação Brigadeiro do Metrô

Tel.: (11) 3285.6986

QUATRO POEMAS DE SUSANNA BUSATO

I

A aguda serpente finca e dobra o corpo dormente nas tramas da pele fina e branca, linho de algodão, leve no vento e no roçar da fria camada serpentina da agulha que se finca a cada hiato da pele, dócil trama que plasma o leve e a aspereza do toque e se entrega à aguda e violenta investida do seu roteiro de estradas e trilhos a céu aberto.

II

A mouca agonia das frestas abertas no corpo cala o traço no desejo do grafite negro sobre a pele alva. O silêncio costura a linearidade do instante no corpo. O tempo cala. O tempo resvala na calada do corpo. O corpo agoniza. O grafite pontua esse instante. As frestas grafitadas e os vértices falicamente atravessados pelo desejo da pele alva. A letra perfura a ortogonalidade e costura o tempo. Não resta mais nada além da agonia desse ponto letra falo desejo. O silêncio vaza no vértice vazio.


III

Exercito o grafite.
Caras cabeças cortadas sorriem sobre o balcão. Acenam com dentes parcos e pardos o destino das gentes emolduradas nos vagões cinéticos.


IV

O grave estupor exala dos poros a memória cindida no tempo pêndulo grave gravado no peito das horas porosas da carne que espera lenta e certa o toque final.
(Leiam mais poemas da Suzanna na edição de dezembro da Zunái)

TRÊS POEMAS DE ROBERT DESNOS

NO DISFARCE DA NOITE

Deslizar em tua sombra no disfarce da noite.
Seguir teus passos, tua sombra na janela.
A sombra na janela é a tua, não outra, a tua.
Não abre essa janela atrás da qual te movimentas.
Fecha os olhos.
Queria poder fechá-los com meus lábios.
Mas a janela se abre e o vento, o vento
que, estranhamente, agita chama
e bandeira, encobre com seu manto minha fuga.
A janela se abre: não és tu.

Eu bem sabia.


AU MOCASSIM O VERBO

Me suicidas, tão docilmente.
Te morrerei, contudo, um dia.
Eu conheceremos a mulher ideal
e, lentamente, nevarei em sua boca.
E choverei, sem dúvida, mesmo que tarde,
mesmo que eu faça bom tempo.
Nós ameis tão pouco os olhos
e verterei uma lágrima sem
razão, é claro, e sem tristeza.
Sem.


O QUADRADO PONTUDO

O quadrado tem quatro lados
Mas é quatro vezes pontudo
Como o Mundo.
Diz-se, contudo, que a terra é redonda
Como a minha cabeça
Redonda e mundo e mapa-múndi:
Um anticiclone indo ao noroeste...
O mundo é redondo, a terra é redonda
Mas ela é, mas ele é
Quatro vezes pontudo
Leste Norte Sul Oeste
O mundo é pontudo
A terra é pontuda
O espaço é quadrado.
et monde et mappem

Tradução: Jorge Lúcio de Campos

TRÊS POEMAS DE AIMÉ CÉSAIRE


SOL SERPENTE

Sol serpente olho fascinando o meu olho
e o mar miserável de ilhas crepitando nos dedos das rosas
lança-chamas e o meu corpo intacto de fulminado
a água exalta as carcaças de luz perdidas no corredor sem pompa
dos turbilhões de gelo em pedaços aureolam o coração fumegante dos corvos
nossos corações
é a voz dos raios cativados girando sobre seus gonzos de camaleoa
transmissão de anolis à paisagem de vidros quebrados são
as flores vampiras na troca das orquídeas
elixir do fogo central
fogo justo fogo mangueira de noite coberta de abelhas meu
desejo um acaso de tigres surpresos nos enxofres mas o despertar
estanhoso dá jazidas infantis
e o meu corpo de seixo comendo peixe comendo
pombas e sonos
o açúcar da palavra Brasil no fundo do pântano.

MITOLOGIA

em amplos golpes de espada de sisal dos teus braços selvagens
em grandes golpes selvagens dos teus braços livres de amassar o amor a teu grado batéké
dos teus braços de receptação e de dom que batem com clarividência os espaços cegos banhados por pássaros
profiro ao vão linhoso da vaga infantil dos teus seios o jorro do grande mapu
nascido do teu sexo onde pende o fruto frágil da liberdade

TOTEM

De longe ao perto de perto ao longe o sistro dos circuncisos e um sol sem modos
bebe na glória do meu peito um grande gole de vinho tinto e de moscas
como de piso em piso de destreza em herança o totem
não saltaria ao topo dos buildings sua tepidez de chaminé e de traição?
como a distração salgada de tua língua destruidora
como o vinho de teu veneno
como teu riso de costas de marsuíno na prata do naufrágio
como a ratazana verde que nasce da bela água cativa de tuas pálpebras
como a corrida das gazelas de sal fino da neve sobre a cabeça selvagem das mulheres e do abismo
como os grandes estames de teus lábios no filete azul do continente
como o resplendor de fogo do minuto na trama serrada do tempo
como a cabeleira de giesta que se obstina a brotar em fim de outono de teus olhos de marina
cavalos da quadriga pisem a savana de minha palavra vasta aberta

do branco ao fulvo
há os soluços o silêncio o mar vermelho e a noite

Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho

domingo, 22 de novembro de 2009

UM POEMA INÉDITO DE ANDRÉ DICK

1.

o esqueleto de um camaleão
(pelo qual a tartaruga atravessa
na retomada de uma cor da estação anterior)
um lagarto e os cupins nos livros
talvez como a lentidão do pátio,
um ouriço, a asa de bem-te-vi
ou na escuridão o som dos grilos,
das cigarras, as asas – únicas –
um lagarto pela passagem
do seu espaço e o tamanho das violetas
sem o último rastro, salamandras,
estrelas sobre a grama noturna

2.

tartarugas lentas, cães, caracóis
são agora listras de abelha, cavalos no jardim
de casa, flores crescem fora da primavera
manadas de elefantes e grupos de zebras
muradas de flores, lesmas, penhascos para águias
para pesca corredeiras, gansos e sicômoros
ante os jazidos de vidro, pedras do vazio,
galhos pendurados em abismos
pombos florescem mais vermelhos nos hortos,
com galos, pela manhã, pernalonga e seus homônimos

QUATRO POEMAS DE JOÃO MAIMONA

IDADE DAS PALAVRAS

inventei alegorias, palavras cobrindo
sublavras: eram metáforas quando meus
dados canataram o rosto de meu retrato
e concebi o lúmen atravessado por silêncios.


A OUTRA HISTÓRIA

há palavras diante do império dia após dia.
sob a veia da língua há lâminas:
são histórias repartidas.


HORAS DE SOL

sol até ao mergulhar da cidade desmedida
que assassina a alegria em cada voo
onde todos os pássaros estrangulam as asas.


OUTRA HISTÓRIA PERFEITA

crescem mãos secretas enquanto morrem ilhas
por cantar com o cio dos séculos: agora
as ilhas são mesas onde os lobos vão comer.

(Poemas do livro Idade das Palavras. Luanda: Coleção A Letra, 1997)

UMA CONVERSA COM ARMANDO ROA VIAL

Zunái - Como aconteceu o seu primeiro contato com a poesia? O que o motivou a escrever poemas, e quais autores marcaram a sua formação literária?

Armando Roa Vial - Minha primeira aproximação com a poesia aconteceu aos dezesseis anos, com a leitura de John Keats e Rainer Maria Rilke. O encontro com eles foi totalmente casual: nessa época, eu me interessava muito mais pela narrativa. Porém, a partir de Keats e Rilke, eu me transformei num leitor voraz de poesia, aproveitando a magnífica biblioteca de meu pai. A quantidade de leituras nesse tempo foi enorme e variada: ingleses, alemães, italianos, franceses, espanhóis e, também, chilenos. Creio, no entanto, que de todos os autores lidos nesse tempo houve dois decisivos para a minha formação poética: Ezra Pound e T. S. Eliot. Para mim, leitura e escritura são indissociáveis: minha escritura, desde sempre, tem sido uma extensão de minhas leituras. E se leio e escrevo é, simplesmente, pelo assombro que sempre senti frente à linguagem por sua capacidade de configurar e transfigurar a realidade, seja articulando-a ou desarticulando-a.

Zunái - O Chile viveu uma difícil passagem do regime autoritário para a democracia. Quais os reflexos dessa transição na vida literária de teu país, e em tua obra, em especial?

ARV - A ditadura militar aniquilou não apenas a vida intelectual do Chile anterior a 1973, mas também firmou as bases ideológicas do modelo neoliberal que vigora até os nossos dias e cujas premissas são o pragmatismo, o culto ao instrumental e ao descartável, a avidez por dinheiro e poder. O pensamento criador, a sensibilidade artística ou a fineza de espírito não têm lugar nesse sistema. Por isso o Chile, apesar de seus êxitos econômicos, é um país cada vez mais analfabeto e empobrecido. Creio que toda a poesia chilena - e aqui também me incluo - das últimas três décadas, direta ou indiretamente, tem se colocado numa posição crítica em relação ao sistema, seja pela via da ironia, do humor ou do desespero.

Zunái - Como era o ambiente intelectual chileno na época em que você publicou seu livro de estréia, Carta a la juventud, em 1993? Como a obra foi recebida pela crítica?

ARV - O ambiente literário nessa época estava dominado pelo culto ao que se chamou La Nueva Narrativa, uma literatura comercial manejada por consórcios editoriais transnacionais. A poesia, pouco a pouco, começava a rearmar-se depois dos anos de ditadura, com a volta de escritores do exílio e o ressurgimento de algumas vozes silenciadas, particularmente Lihn e Teillier. Cartas a la Juventud era uma antologia de cartas dirigidas a jovens de diferentes épocas por grandes figuras do pensamento e da arte: ali estavam Rilke, Kropotkin, Abelardo, Santo Agostinho, Van Gogh, entre muitos outros. Sua recepção, para minha surpresa, foi positiva.

Zunái - Em Zarabanda de la Muerte Oscura, você reúne poemas que compõem um mosaico sobre o tema da Dama da Foice com citações em latim, referências do imaginário medieval e da música erudita, entre outros elementos. Comente o processo de criação desse livro. Você planeja o tema e os recursos estilísticos antes de escrever, ou o livro surge como resultado do trabalho poético?

ARV - Como eu já te dizia, minha escritura tem sido sempre a bitácula de minhas leituras. Contrariamente à "angústia da influência" postulada por Bloom, eu creio em uma literatura dialógica, feita de ecos, alusões, citações. Minha Zarabanda é um enorme mosaico cifrado de citações que alegorizam a morte do autor e a impessoalidade da poesia. A morte, aliás, numa época de maquiagens como a nossa, é disfarçada ou ocultada. Trabalhei na Zarabanda embutindo as partituras de um quarteto de George Crumb aos textos. Foi um trabalho muito árduo já que tentei transladar as estruturas harmônicas e os timbres da música de Crumb à linguagem poética. Foi muito útil para mim, também, a experiência de trabalho, como advogado, em medicina legal e criminalística, quando tive um contato diário com os aspectos mais sombrios e ocultos da morte: a decomposição do corpo, a fragilidade de nossa anatomia, a instabilidade fronteiriça do ser humano entre a vida e a morte.

Zunái - Em Estancias en homenaje a Gregorio Samsa, o personagem criado por Kafka aparece como uma "amarga metáfora de si mesmo", e também dos sentimentos de asco, medo, perplexidade, próprios de uma época confusa e conflituosa como esta em que vivemos. Não por acaso, você incluiu na coletânea um díptico em que Samsa dialoga com o pintor inglês Francis Bacon. Em sua opinião, qual é o sentido de escrever poesia numa época regida pelo terror e pela banalidade?

ARV - Kafka e Bacon são para mim símbolos da suspeita e do mal-estar, da consciência de crise e da angústia frente ao conformismo enganoso e a complacência da sociedade contemporânea. Ali onde se estende um véu ou se disfarça, Kafka e Bacon desnudam, desmascaram. Quando se maquia a realidade apresentando-a como uma superfície limpa e pura em nome de um bem-estar e uma felicidade falaz, puramente anestesiante, Bacon, Kafka e tantos outros nos falam a partir do dilaceramento, da erosão, que é muito mais humana e humanizante. E digo isto porque o homem, no meu entender, por definição, é um ser precário, não firmado na natureza, com sua existência abrindo-se como uma enorme interrogação.

(Trechos da entrevista que realizei com o poeta chileno Armando Roa Vial e publicada no n. 11 da Zunái, em dezembro de 2006.)

UMA CONVERSA COM HAROLDO DE CAMPOS

Zunái: Sabe-se que a literatura latino-americana sempre teve como um de seus traços constitutivos a habilidade de incorporar criativamente elementos de outras culturas, movida pelo que você mesmo chamou de "razão antropofágica". Seria essa vocação para a multiplicidade e para a "otredad" um traço diferencial de nossa literatura em relação às literaturas canônicas do Ocidente?

Haroldo de Campos: Eu acho que o latino-americano foi e tem sido, até um determinado momento, o terceiro-excluído, ou seja, sua literatura foi entendida como uma literatura menor ou receptora (o próprio Antonio Candido define a literatura brasileira como um galho menor de uma árvore menor que seria a literatura portuguesa). Tenho uma idéia diferente, pois não considero que existam literaturas maiores ou menores. Acho que existem diferentes contribuições à literatura universal, à grande literatura. Assim, o fato de Gregório de Matos ser considerado um genial discípulo de Gôngora não tirará jamais a especificidade da contribuição dele: haverá lugar na grande literatura para Gôngora e para Quevedo e haverá para Gregório de Matos, que tem coisas que só se encontram em Gregório de Matos. Este é o mesmo caso de Sor Juana Inés de la Cruz, que embora discípula direta de Gôngora, na interpretação, por exemplo, de Octavio Paz, faz coisas que prenunciam Mallarmé, prenunciam Huidobro e que não estavam sequer no horizonte da poesia gongorina. Minha idéia é esta: não existem literaturas menores, mas contribuições distintas no concerto da literatura universal. Sob essa perspectiva, os latino-americanos, nessa literatura, inscrevem constantemente suas diferenças, desde a chamada fase colonial. Aliás, no caso brasileiro há um fato curioso, observado, com muita razão, por um estudioso do barroco baiano, que é o João Gomes Teixeira Leite, autor do Boca de Brasa. Em um artigo, ele mostra o seguinte: que nem sequer é correto dizer que a literatura brasileira era um ramo menor de uma árvore menor porque a literatura brasileira produzida na época do barroco era um ramo não da literatura portuguesa, mas da literatura espanhola, pois Portugal estava sob a égide da Espanha e os poetas do barroco (para nem falar do Padre Anchieta, que era canário) escreviam tanto em português quanto em espanhol. Gregório de Matos tem poemas bilingües, tem alguns em espanhol, e sobretudo enxerta castelhanismos na língua portuguesa. Manoel Botelho de Oliveira, cuja Musa do parnaso, no prólogo, refere-se a Portugal como uma província da Espanha, tem uma seção em português, outras em espanhol, em italiano e em latim. Além disso, a literatura espanhola da época não era uma árvore menor, era uma literatura do Siglo de Oro, era uma das mais importantes do mundo. Assim, a tese de que nossa literatura é um ramo menor da literatura portuguesa acaba sendo uma construção um pouco idealizada, ideológica. Uso aqui a palavra ideologia no sentido específico, ou seja, transformar um interesse particular em um interesse geral, transformar, por exemplo, a ótica do romantismo, que é a tônica da emancipação nacional, em ótica da literatura em geral. Como se o barroco tivesse que ser excluído de uma formação, por não responder à ótica da literatura nacional e àquele sistema literário nela articulado. Então, na opinião desse ou daquele, a literatura brasileira poderia ser considerada uma literatura menor, mas essa não é definitivamente a minha posição. Mesmo do ponto de vista histórico-contextual, como já apontei, a nossa literatura não era um galho da portuguesa, mas um galho da literatura espanhola do Siglo de Oro, da qual a portuguesa também era tributária. Os poetas portugueses da época eram todos eles gongorinos, vide o trabalho de Ayres Montes sobre Gôngora e a poesia portuguesa. Durante muitos anos, depois da restauração de 1640, vários críticos da literatura portuguesa, como João Gaspar Simões, não podiam ouvir falar de barroco, pois barroco significava Espanha.

Nossas literaturas, chamadas literaturas terceiro-mundistas, marginais ou periféricas, designações que, a meu ver, não descrevem a realidade, contrariamente a outras, que têm vocação mais monolingüe e imperialista (como é o caso específico, por exemplo, de certa parte da literatura francesa e de certa parte da literatura norte-americana), têm uma vocação universal, universalista. Entre os exemplos marcantes disso, podemos citar Borges, um latino-americano que acabou virando símbolo da literatura universal, em várias dimensões. Ele teve muito interesse pelo Oriente, pela literatura hebraica, islandesa, escandinava etc.

Zunái: Borges reivindicava, inclusive, o direito de o latino-americano usufruir do repertório literário universal, que também nos pertence tanto quanto aos que se acham donos dele. Nesse sentido, Hamlet ou Dom Quixote são tão nossos quanto dos ingleses ou dos espanhóis...

Haroldo: Exatamente. E Borges foi um exemplo vivo disso. Teve uma formação na Suíça, suas leituras iniciais foram mais em inglês, por força do ambiente em que ele nasceu, leu Don Quijote pela primeira vez em um versão para o inglês, era contemporâneo do grupo expressionista alemão, participou da vanguarda, do ultraísmo espanhol.

Zunái: E é notável como a esse chamado repertório universal também inserimos outras culturas não-ocidentais, não é mesmo? Como você abordaria o grande interesse de nossos escritores pelo Oriente?

Haroldo: No que se refere ao interesse dos latino-americanos pelo Oriente, posso dizer que isso aconteceu no âmbito das Américas, e não apenas da América Latina. Nas Américas houve realmente uma extraordinária preocupação no alto modernismo norte-americano. Nesse momento, o intelectual norte-americano também era um exilado, queria morar na Europa, também tinha esse problema de se sentir um pouco marginal. Tanto que migrava para o centro. Se o latino-americano sente-se desterrado desde sempre, o desterro do norte-americano se faz ver nos anos 20, visto que os protagonistas do alto modernismo de língua inglesa foram todos eles auto-exilados. É o caso de Pound e é o caso de Eliot, que adotou inclusive a cidadania inglesa. E ambos, exatamente por essa condição de se sentirem acuados dentro do marco americano e quererem expandir seus horizontes ao ponto de migrarem para a Europa, abriram-se também para as mais diferentes culturas. Eliot, por exemplo, em The Waste Land, incorpora inclusive citações da literatura sânscrita, enquanto Pound, desde logo, se interessou pela China e pelo Japão, o que o levou a traduzir poesia clássica chinesa e teatro Nô japonês, com base nos manuscritos de Fenollosa, já que nessa época ainda não sabia nada de chinês e nada de japonês. Aliás, japonês ele nunca estudou. O chinês ele estudou, sobretudo depois da primeira fase, quando fez as primeiras traduções, que foram as fundamentais , aquelas em que, segundo Eliot, Pound inventou a poesia chinesa em língua inglesa. Depois disso ele realmente fez estudos de chinês, como autodidata, e a um certo momento já tinha um conhecimento bem razoável do idioma.

(Trechos da entrevista com Haroldo de Campos realizada por Maria Esther Maciel e publicada no n. 5 da Zunái, em dezembro de 2004.)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

UMA CONVERSA COM ABREU PAXE

Zunái: Ao contrário da dicção mais discursiva, retórica, de conteúdo político direto, que esteve em evidência nos anos 60 e 70, tua poesia parece mover-se em outro sentido, buscando uma reinvenção da sintaxe e a força mântrica das palavras. A linguagem poética, a seu ver, é uma leitura crítica da realidade ou a criação de uma outra realidade?

Paxe: Penso que a poesia, como ato de criação, para mim não deve de forma objetiva nomear as coisas tal qual como elas acontecem no cosmos, tal como se movem, tal como o cosmos as regula, vistas, à vista desarmada ou macroscopicamente. A poesia deve constituir-se no mundo alternativo, este funcionando como mundo não codificado ou convencionado numa visão globalizante, senão como codificação singular do criador e do leitor. Ao serviço da arte, a poesia deve-se construir com certa erudição, ou seja, a partir do que já existe, do que já foi proposto nos matizes artísticos. A poesia deve convidar-nos a mergulhar no escuro, como dizia Gastão Cruz, não para o iluminar, mas para aprender a conhecê-lo, evocando todos os sentidos. Como se pode ver, para mim a linguagem poética é a criação de uma outra realidade, fundada numa realidade, ou seja, a recriação da realidade observável.

Zunái: O seu olhar está voltado para as mínimas coisas do cotidiano, que não é retratado de modo ingênuo, fotográfico, mas antes é fragmentado em cenas rápidas, como num videoclipe. Esta reconstrução das imagens pela palavra poética tem uma influência das mídias eletrônicas?

Paxe: De certo modo, sim. Persigo, neste exercício, a capacidade de recomposição e síntese, transformando meu olhar em unidades de análise, uma qualidade que impregna todas as criações resultantes de um processo interativo entre o homem e os meios eletrônicos em que a metamorfose e o virtual se projetam na mente humana como agentes da própria instabilidade e plasticidade, como agentes da invenção e da percepção, levando a poesia para além dos limites, numa viagem expansiva para o lugar inabitado, originando imagens simultâneas e diversas capazes de modificar os sentidos (ordenados) num elevado grau de fragmentação. Estes fragmentos, estes paradoxos, que vez ou outra nomeio, buscam anular a linearidade, a luminosidade, o detalhe. Mesmo quando experimento as vestimentas narrativas, sinto que só participo alegremente de uma festa que legitima os estímulos que nos cercam, nas atualizações materiais onde é preciso abrir os olhos e a mente de um modo diferente.

(Trechos da entrevista que realizei com o poeta angolano Abreu Paxe e publicada na edição n. 12 da Zunái, em maio de 2007.)

UMA CONVERSA COM MARIA ESTHER MACIEL

Zunái: Como aconteceu o nascimento da poesia em sua vida?

Maria Esther: Aconteceu quando eu era ainda uma menina de dez, onze anos. Descobri a poesia através de Cecília Meireles. Pouco tempo depois a redescobri em Drummond. Com ele aprendi que ser poeta é, sobretudo, chegar àquilo que Antonin Artaud chamou de “núcleo irrequieto” das coisas, que as formas muitas vezes não tocam. Desde então, quis ser também poeta.

Zunái: Se Octavio Paz disse que poesia é “linguagem em estado de pureza selvagem”, para Maria Esther Maciel o que é poesia?

Maria Esther: A poesia é, antes de tudo, um exercício de perplexidade. É o resultado de nossos assombros, incertezas, erros e errâncias. E que, para existir enquanto tal, demanda uma linguagem (ou uma forma) capaz de provocar atos internos no leitor.

Zunái: Como foi trabalhar com Augusto dos Anjos na dissertação de mestrado e depois Octavio Paz no doutorado? Pensar é “enfrentar paradoxos”?

Maria Esther: Augusto dos Anjos é um poeta das sombras, que atravessa a esfera do terrível. Paz é um poeta solar, ainda que afeito a certos encantos da penumbra. Minha incursão na obra do primeiro foi uma espécie de descida aos infernos da própria linguagem. Em Paz encontrei uma lucidez que, de tão lúcida, revela sua própria vertigem. Nos dois, distintas maneiras de enfrentar paradoxos. Aliás, sempre tive fascínio pelo paradoxo e pelo “encontro inesperado do diverso”. Todos os autores de minha predileção – de Augusto dos Anjos a Fernando Pessoa, de Clarice Lispector a Emily Dickinson, de Kirkegaard a Octavio Paz – são visceralmente paradoxais.

Zunái: Se pudesse escrever uma obra que fosse exatamente aquela que mais admira, que autor gostaria de ser, ou que obra apagaria o nome do criador para colocar o seu nome?

Maria Esther: Eu me faria autora de As mil e uma noites.

Zunái: Se a poesia fosse impossível para você, consegue imaginar Maria Esther Maciel trabalhando em que atividade?

Maria Esther: Eu a imagino trabalhando como cineasta ou diretora de uma associação protetora dos animais.

(Trechos da entrevista realizada por Wilmar Silva e publicada na edição n. 17 da Zunái, em março de 2009. )

sábado, 14 de novembro de 2009

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (IX)

ESTUDOS PARA VOZ E SILÊNCIO

Pintar as cores do branco, para esboçar a música do silêncio. Gestos mínimos, concisos, de um artista japonês: traços rápidos do pincel no espaço da tela, para iludir a idéia de tempo; para alucinar a consciência da forma. Prática do azul, de Jorge Lúcio de Campos, é um tratado lógico do delírio, uma construção rigorosa do impreciso, que nos fascina e seduz com sua nervosa beleza. O poeta ordena uma realidade recriada, ou paisagem onírica, tirando os objetos de suas funções ordinárias para redesenhá-los, realinhá-los como entes do imaginário, mas sem abdicar do acurado jogo de linguagem e da pesquisa semântica. Assim, por exemplo, no poema O Museu da Noite: "Esse o resto / de uma lua / entristecida - / já sem cor - / só maçã e / andaluzia", ou ainda em Paisagem Filosófica: "Um só volume / de lábio e / montanha" (...) / "coisas que / falam de um / sol quebrado". Os poemas desta coletânea notável não formam um ciclo ou série, como a seqüência de fotogramas em uma película ou a irrupção de ideogramas no haiku; porém, há uma unidade consistente, sutil e inconsútil, nas três seções que a formam - Desenhar, Ad Infinitum e As Estações da Razão, que somam 30 poemas (número que sugere a multiplicação do Três, a Trindade, pelo círculo mágico, o Dez, numa aritmologia poética).

A impressão inicial que temos na leitura dessas miniaturas (ácidas e delicadas, como flores do inferno) é que o poeta transtornou o olhar, para ver as coisas pelo avesso da pupila. É o próprio autor que nos diz, em Azul Frontal: "Há olhos que / nem sei - / devoram toda / a realidade / De algum modo / há olhos mais / agudos do que / um gesto atroz". Em outra peça do volume, Variação de Cubos Incompletos, a mesma referência à visão visionária: "Olhos que não / deixo de vestir / sempre que posso / - o inverso de / um buquê de crisântemos". O afastamento da lírica coloquial, centrada no cotidiano, em sua banalidade castrada (canonizada), não implica recusar o debate do estar-no-mundo, não foge à questão do ser no tempo; ao contrário, em Jorge Lúcio de Campos, a tensão entre arte e vida, pele e página ganha contornos dramáticos, até expressionistas, como em King Kong: "Naco de carne da noite / nesses dentes podres / que, afiado, inflo / num bafejo intenso / de silêncio e dor". Poesia como reflexão (fala) do corpo, da palavra e da mente, em sua unidade (totalidade), em sua condição de cíclico sofrimento e gozo, destino de fera entre feras, de reflexo no espelho do lago (onde brota o lótus, entre água e lama). No final do volume (virtual e onírico) encontramos (como Ulisses, na Odisséia) os espectros de filósofos pré-socráticos, como Heráclito e Parmênides, convertidos em personagens, em sujeitos semânticos de um discurso amoroso cuja Vênus (ou Sophia) é a linguagem, as palavras carregadas de informação nova, de coração e cérebro ("No breu do éter / outro éter se / dilata - em meio / ao mar um novo / mar já esquecido"). Em Prática do azul, Jorge Lúcio de Campos reafirma a qualidade de seu trabalho anterior (o poeta tem já cinco livros publicados) e desponta como um dos mais interessantes nomes da poesia brasileira contemporânea.

BATMAN E ROBIN DE VOLTA A GOTHAM CITY

Conheci Frederico Barbosa no final da década de 90, quando publiquei o meu segundo livro de poesia, Yumê. Na época, descobrimos várias afinidades, como o cinema e o jazz. Conversávamos muito sobre a poesia brasileira contemporânea, e desse diálogo surgiu o projeto de uma antologia, Na Virada do Século: Poesia de Invenção no Brasil, que foi publicada em 2002, pela Landy. Este foi o início de uma longa parceria. Quando ele assumiu a direção da Casa das Rosas, em 2004, eu e a Clenir demos os primeiros cursos nesse espaço cultural, que hoje é uma referência não apenas no Brasil, mas também no exterior, como um centro dedicado à difusão da poesia. Realizei inúmeros eventos na Casa das Rosas, como os encontros internacionais Kantoluanda, Galáxia Barroca, e participei de outros, como o I Simpoesia e o Mar Aberto, este organizado por Horácio Costa. Como vocês já perceberam, a minha amizade com Frederico Barbosa sempre esteve ligada ao trabalho apaixonado pela divulgação da poesia brasileira; nunca fomos tomar chá na casa um do outro, nem beber cerveja ou jogar sinuca em algum boteco (nada contra essas práticas) porque sempre estivemos envolvidos em projetos que ocupam boa parte de nosso tempo e pensamentos (ou seja, de nossas vidas). Para ele, e para mim, a poesia é algo visceral; é o ar que nós respiramos. Claro que, como é inevitável nas relações humanas, nem tudo são rosas, e por vezes há trovões e tempestades: tivemos uma ruptura que durou exatos dez meses, em que ficamos sem falar um com o outro, por discordarmos em algumas questões. Houve erros e excessos de parte a parte. Nossos amigos ficaram tristes, perplexos, alguns indignados, já que eramos chamados de “A dupla dinâmica da poesia brasileira” (eu dizia que ele era o Robin, e ele dizia que era eu). Depois, com o passar do tempo, a raiva foi cedendo vez à sinceridade do coração: carajo, durante quase dez anos fomos amigos e parceiros, fizemos tantas coisas juntos, por que esse embate agora? Por fim caiu a ficha, e hoje, finalmente, fizemos as pazes. Recuperei um irmão mais velho que eu não via há muito tempo. É uma sensação única, essa de recuperar o tempo perdido, desfazer os mal-entendidos e restabelecer a amizade com alguém que respeitamos por seu caráter, generosidade e ações.

Enfim, é isso. Batman e Robin estão de volta a Gotham City.

Podem avisar o Coringa e o Duas-Caras!

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (VIII)

UM ZOO DE SIGNOS: OS BESTIÁRIOS DE WILSON BUENO

"... ao modo de um impossível lagarto transmutado em dragão, animal transparente e da cor da água, a exibir, triunfante, seja no fantástico vôo ou no mergulho ao fundo, o seu esplendor de água-viva." Wilson Bueno, neste curioso livro de relatos chamado Jardim Zoológico, publicado em 1999, criou um catálogo composto de 34 seres inconcebíveis. São os ivitús, bestas de garras retorcidas, capazes de mitigar, nos índios, a dor da saudade; os guapés, microcães que fazem ninho no oco das árvores; os giromas, criaturas esféricas cheias de olhos, cuja cópula ocorre de maneira quase miraculosa; os agôalumem, citados acima, raça de monstros marinhos capazes de voar que despertavam a angústia e o medo nos marinheiros, entre outras desconcertantes espécies de alimárias (1).
Como numa bizarra história natural, o autor apresenta as criaturas teratológicas descrevendo seu peso, altura e coloração, seus hábitos sexuais, alimentares e capacidades físicas, situando-as na província do Chaco e na Islândia, nas florestas brasileiras e no Indostão, jogando com o universalismo do imaginário. Nessas crônicas do improvável, Bueno descreve suas feras com a ânsia de um biólogo alucinado. Assim, por exemplo, ele nos conta sobre os kwiuvés, habitantes do Alto Goiás: "Medindo em torno de vinte centímetros de altura, exibem contudo rotunda pança inteiramente pintada a urucum. No lugar do sexo, os kwiuvés machos têm um dedo e as fêmeas, uma pequena boca sem dentes". A existência desses e outros seres é atestada pela invocação apócrifa de autores como Ovídio, Borges (autor do Livro dos Seres Imaginários), Vallejo, Flaubert, e ainda pela citação de sonhos bestiais registrados na história literária, como o homem-tarântula gestado por Lautréamont (2). No caso específico do kwiuvés, faz-se referência a uma descrição do gnomo índio atribuída ao "antropólogo brasileiro Sérgio Oliveira". Já no relato sobre os dagdas, o autor diz: "O último dagda foi visto por volta de 1895, ao sul do Índico, na costa leste da ilha de Madagascar, pelo zoólatra francês Charles-Henri Lebaut".
Ao longo do livro, encontraremos numerosas outras passagens que parodiam o texto enciclopédico, o manual de zoologia e a crônica de viajante. Apesar do pastiche desses códigos estilísticos, o tom e andamento que predominam nessas prosas é o da fábula, em busca do imprevisto e do maravilhoso. Não por acaso, o autor cita como epígrafe uma sentença de Augusto Monterroso, que diz: "As novas gerações de escritores deverão retomar, cada qual na medida de seu talento, a inventiva tarefa que começou com Esopo, ou mesmo antes dele, de reunir os animais que pela Terra andam e hão de andar perenemente". Diferente da fábula tradicional, porém, não está presente aqui a intenção edificante, mas a relação simbólica entre a "razão animal" (3) e a psique humana, seus desejos, medos e frustrações, que se movimentam num tabuleiro cada vez mais confuso e tortuoso. As feras desse estranho Jardim Zoológico são entes metafóricos, conceituais, que representam aspectos de nosso sentir e imaginar ("talvez acabe aspirando, en neste zoo de signos, a la urdidura essencial del afecto que se vá en la cola del escorpión", diz o autor em Mar Paraguayo) (4). Os nuncas, por exemplo, deixaram de apostar na esperança; ao contrário deles, os cordes estão "inteiramente dedicados ao espinhoso ofício de amar neste nosso mundo beligerante". Os êulikes, solitários, nunca dizem a palavra amor, enquanto os tiguasús podem aliviar-nos do problema da morte. O jaguapitã, por sua vez, é "o alimento e o motor da Fé, pois só aparece para quem está necessitado Dela, sobretudo aos índios que, acometidos de irremediável engano, acabam abandonando a tribo e se enfurnando nos perdidos da Floresta - batidos de susto e grito".(5)

Podemos considerar este livro de Wilson Bueno como um insólito conjunto de fábulas, mas também como um moderno bestiário. Segundo nos informam os dicionários, bestiário (do latim bestiariu) é um livro com descrições e histórias de animais, reais ou imaginários, geralmente com ilustrações. O gênero, popular na Idade Média, pertence a uma longa tradição da zoologia fantástica, que começa talvez com os relatos mitológicos e avança na linha da história, abarcando os romances de cavalaria da matéria bretã, com seus gigantes e dragões, os relatos de navegantes europeus, na era dos descobrimentos (que usavam mapas decorados com imagens de monstros marinhos) e até tratados científicos medievais, inspirados em obras clássicas da cultura greco-romana, como os 37 volumes da História Natural de Plínio, o Velho, e a História dos Animais de Aristóteles. Wilson Bueno atualiza o gênero pela paródia e humor, despindo-o de sua mística e investindo na carga erótica da metáfora animal, onde prevalecem as razões do corpo em sua violência e delicadeza.
Conforme diz Maria Esther Maciel, este Jardim Zoológico "pode ser descrito como um catálogo ficcional de animais híbridos, fronteiriços (porque muitas vezes marcados pelos cruzamentos transnacionais advindos do contato entre os países do continente sul-americano) e dotados de uma espécie de saber poético sobre a vida humana e sobre o próprio território que habitam". (6) A mescla de referências culturais heterogêneas de diferentes tempos e espaços citada por Maciel estimula a invenção ficcional para além da representação de uma suposta realidade, e ainda instiga o leitor a uma visada simbólica mais ampla: cada um desses monstros é mais do que chifres, pêlos e escamas, é também arquétipo, mito, construção semiótica, como o Cérbero ou o Minotauro, seus parentes distantes em outra curva do espaço-tempo.

Grafias de esmeralda viva

Publicado em 1991, o Manual de Zoofilia é um conjunto de trinta narrativas ou poemas em prosa. Estas breves composições, que fazem uso da metáfora, do ritmo e do paradoxo, falam de seres como a cadela e o anjo, o dragão e o polvo, a criança e o cisne, sem fazer distinção entre o real e o imaginado (como se o autor nos dissesse que tudo é real, tudo é imaginário, logo, tudo é literatura). Ao contrário de Jardim Zoológico, onde há um discurso descritivo linear, parodiando o estilo didático das obras taxonômicas, como os dicionários e enciclopédias, aqui predomina certa obscuridade nas paisagens verbais, na construção musical das frases e na fratura sintática. Esse desconcerto verbal cria peças de estranha beleza, com o emprego de um vocabulário luxurioso (asdrôbel, solferina) e imagens poéticas construídas pela associação de termos sem uma relação evidente entre si (recordando Pierre Reverdy). Tal método compositivo, que altera a percepção habitual do referente e a lógica discursiva, articula inusitadas definições, antiverbetes de um glossário labiríntico, monstruoso, onde lemos que os dragões são "cactos arrancados vivos", e os camaleões, "fragmentos pré-históricos emplumados para a vitória". Pequenos paradoxos, figuras de palavras ou "juegos-de-jugar" que evoluem em curiosas não-histórias - ou desistórias - que com dificuldade incluiríamos no gênero ficcional, que pressupõe um grau mínimo de mímese. São prosas poéticas, "orquestrações para príncipe e viola d'amore", onde as frases se desenvolvem como acordes de uma peça de concerto, fazendo uso de todo o colorido de uma floresta de timbres: "pode que as lagartas ondulem sobre a pauta do silêncio, se é madrugada e convencionamos linhas que cruzem o espaço do quarto, métricas, assimétricas".
O curioso é que neste livro tão abstrato e metafórico ouvimos em contraponto um discurso de amor e ódio, ciúme e vingança, presente em pequenas inserções, colocadas no final dos textos como um canto paralelo e dissonante. (7) Após o delírio imagético urdido em torno de animais sonhados como desenhos de Bosch ou Arcimboldo, lemos boleros ou guarânias como esta: "Se te amo é assim hidrófoba a nossa paixão-fim-dos-infernos: se você me falta, vampiro de saudade, pela casa vampiro e pelo vento, se você me falta. Entre o grotesco e o sublime, só atravessando você inteiramente nua". Essa segunda voz evolui num crescendo, do início ao fim do volume, elevando o tom sádico, o desejo de posse e destruição do ente amado, num descontínuo e fragmentário monólogo amoroso, povoado por imagens desordenadas onde os animais são talvez apenas estelas simbólicas de um íntimo e misterioso labirinto.

Uma escrita chuvosa

"O mais lindo nesta história, contudo, é o dia em que os chuvosos sobre a Terra caem... múltiplos, gasosos, incessantes, transformados na névoa que deste lado se vê e que, feito um encanto, coroa os postes das madrugadas bêbadas de neblina..." (8) Em Os Chuvosos, livro publicado pela primeira vez em 1999, Wilson Bueno apresenta um poema narrativo sobre os seres que habitam o interior das nuvens, numa linguagem lúdica, de aparente singeleza ou suavidade, que parodia o estilo ficcional dos contos infantis (na linhagem dos Irmãos Grimm, Andersen, Perrault). (9) Ao criar personagens a partir de elementos inanimados da natureza, o autor utiliza o recurso da prosopopéia, assim definida pelos dicionários: "Figura pela qual se dá vida e, pois, ação, movimento e voz a coisas inanimadas, e se empresta voz a pessoas ausentes e mortas e a animais". Incluir Os Chuvosos no ciclo de bestiários de Wilson Bueno pode parecer arbitrário, mas o autor permite essa aproximação, nas primeiras linhas do relato, onde diz: "Estes animais, eu vos convido, era uma vez". Lendo as páginas dessa quase cantiga de roda ou história dançante, ficamos sabendo que essa misteriosa raça de seres conhece a vida em família e o pavor dos raios e trovoadas; sabemos ainda que, precipitados sobre o solo, eles se revelam "numa festa de luz e passarinho", quando a névoa é dissolvida pelo primeiro sol da manhã. De todos os relatos de Wilson Bueno, este é talvez o mais sutil, de ação mínima, transparente, quase reduzida ao precipitar das águas sobre as lonjuras de nossa sombria terra.
Um outro aspecto dessa desistória, analisada pelo crítico José Castello, no posfácio ao volume, é o da impermanência das coisas, seu fluir e refluir em ondulação, como no rio arquetípico de Heráclito e Kung Fu Tsé, dança das coisas no tempo, nesse contínuo vai-e-vem do samsara. Diz Castello: "mais que a chuva, o personagem de Wilson Bueno é o transitório: esse senhor esfumaçado, sem rosto, figura brevíssima que transita de um lado para outro, surgindo abruptamente e desaparecendo quando menos se espera". Com arte inusitada, própria de um artista japonês, o autor de Os Chuvosos faz o registro inusitado desse trânsito de imagens no mundo flutuante, numa delicada cantiga ou "juego de jugar", conseguindo, nas palavras de Castello, "reter faíscas, atá-las em novelo para fazer do passageiro, paisagem". E toda paisagem, como sabe o autor, é passagem, miragem, viagem da linguagem.


Post scriptum: não poderíamos finalizar este breve ensaio sem fazer uma referência ao cãozinho Brinks, personagem de Mar Paraguayo, que passa por uma curiosa metamorfose: seu nome vai aumentando ao longo da narrativa, por meio de sucessivos sufixos guaranis (Brinks'michimira'ymi), enquanto o animal vai diminuindo de tamanho, até ficar quase invisível.

Notas:

(1) Conforme analisa Maria Esther Maciel, Wilson Bueno faz uso de uma "razão animal", da qual "extrai um saber que tem no corpo a sua expressão mais viva e um olhar que traz, ao mesmo tempo, todos os afetos e sentidos" (in A Memória das Coisas, Lamparina Editora, Rio de Janeiro, 2004).

2) O homem-tarântula é citado por Lautréamont nos Cantos de Maldoror. Conferir, a esse propósito, as Obras Completas do autor francês, traduzidas por Claudio Willer (editora Iluminuras, São Paulo, 2002).

3) Ver nota 1.

4) Mar Paraguayo, de Wilson Bueno (editora Iluminuras, São Paulo, 1992).

5) Jaguapitã, diz o autor, significa "cachorro vermelho" em tupi-guarani. É também o nome de uma cidade do interior paranaense, situada a 50km de Londrina, cidade natal do escritor.

6) Ver nota 1.

7) A esse respeito, o próprio Wilson Bueno declara, em entrevista concedida a mim e publicada na edição de fevereiro/2001 do Suplemento Literário de Minas Gerais: "Eu sempre desejei fundir, num mesmo espaço de reflexão, a 'grafia' animal e a paixão erótica humana. Em Manual de Zoofilia fica evidente o quanto de irracionalidade comporta nosso discurso amoroso. E, para dar viva voz a esta racionalidade, fui buscar nos bichos encantos e sordidezas, grandezas e patifarias para transubstancia-los - usemos este verbo pedante - a partir do tesão, da cópula, da paixão viciosa e viciada em que, humanos, nos amamos, muitas vezes, no mais escuro ódio".

(8) O autor abordou esse tema em outra narrativa, intitulada As Chuvas, que a princípio iria integrar o Manual de Zoofilia mas que permaneceu inédita até sua publicação no site de Sara Fazib, http://www.sara.fazib.nom.br/wb.htm. Ver, a propósito, o fragmento inicial dessa prosa: "Bicho líquido de fiel transparência, as chuvas chovem no zinco de nosso teto humilde com a graça quase invisível de ariscas lagartas, e mínimas, muitas, coleantes, uma vez que cândidas."

(9) A paródia do estilo narrativo dos contos infantis está presente em outras ficções do autor, como O sapo papudo, que saiu no n. 3 da revista Monturo, de Santo André (SP), em 1999, e O lobo sutil, publicado no n. 0 da revista Sibila, de São Paulo (SP), em 2001. Estas e outras histórias foram incluídas no volume Cachorros do Céu, publicado, pela editora Planeta, após a redação deste ensaio. É um projeto do autor desenvolver o presente texto em futuro breve, incluindo comentários sobre Cachorros do céu.

CALÚNIA

(De Marina Pinto / Paulo Soledad)

Quiseste ofuscar minha fama
E até jogar-me na lama
Só porque eu vivo a brilhar

Sim, mostraste ser invejoso
Viraste até mentiroso
Só para caluniar

Deixe a calúnia de lado
Se de fato és poeta
Deixe a calúnia de lado
Que ela a mim não afeta

Se me ofendes, tu serás o ofendido
Pois quem com ferro fere
Com ferro será ferido

Quiseste ofuscar minha fama
E até jogar-me na lama
Só porque eu vivo a brilhar…

(Canção gravada por Caetano Veloso no disco Totalmente Demais)

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (VII)

IMAGENS DO MUNDO FLUTUANTE

Livro dos ventos, título de estréia da poeta Jacineide Travassos, é um conjunto de narrativas líricas divididas em duas partes: Hálito e Nome e Natureza Móvel, nomes que já indicam, desde o prólogo – intitulado Pequena História do Nascimento do Mundo - alguns dos temas essenciais desta obra: a invocação dos elementos e das estações, as referências míticas, a busca de uma origem simbólica e a fundação de um universo pessoal pela linguagem. A autora não pretende retomar a tradição bucólica, que tem antecedentes ilustres, como Virgílio, mas antes reinventar a natureza como ser semântico, numa particular teodicéia. A forte plasticidade dos poemas, com um meticuloso artesanato metafórico, de viés barroquizante, atinge talvez sua maior expressão nas peças mais condensadas, como Veneris Dies: “os ventos sopram chuva branca / pombas em vôo sólido / navios de pedra / sonorizam o silêncio das horas / ventos sopram a tarde sépia / asas de borboletas quedas da aurora / as folhas rugem eloqüência de mar exilado em Chipre / amor / chuva dos olhos em ilha”, peça que revela a presença fanopaica do haicai de Matsuo Bashô, e ainda a concisão cabralina (aquele Cabral da Pedra de Sono, fiel às conquistas pictóricas de Murilo Mendes).

A natureza, nos poemas de Jacineide Travassos, é uma metonímia do espaço interior, subjetivo, transformado em lírica de imagens (o que fica mais explícito, em especial, na segunda parte do livro, onde ela diz: “o mundo faz-se do olhar / espaços sugeridos pela diagonal / planos sem volume / dissolvem-se na memória / as mãos lentamente / erguem a escritura das ondas”). Ela não faz a descrição convencional do mundo cotidiano, nem cai numa poesia confessional, rotineira, em que as experiências existenciais se sobrepõem aos experimentos lingüísticos; a autora busca antes uma fusão entre o semântico e o subjetivo, obtendo uma voz pessoal que se afirma como fato estético — idéia prenunciada já na epígrafe do livro, de Pietro Wagner: “depois inventa uma pátria para o teu pássaro / e um telhado de açucenas para o vôo metal da tua lágrima”. A poeta desautomatiza a escrita, o olhar sobre si mesma e sobre o mundo em pequenas narrativas nas quais o trânsito acelerado das imagens recorda as técnicas do cinema, como na peça Ulisses e o silêncio das sereias: “nos olhos mulher cindida em azul e carne / carne em mudez de matéria / pedra / Ulisses ferindo os pés em geografia marítima / nos olhos o sangrar da memória / lâmina sulcando os mares / enunciando ilíadas odisséias inventários”. Nada é estático aqui: tudo se move numa dança dos signos no branco da página, indicando talvez o caráter lúdico, mutável e impermanente de todas as coisas, como já sabiam Lao Tzu e Heráclito de Éfeso. Uma dança cósmica, totemizada na poesia, que é a expressão do pensamento pela música.

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (VI)

UMA TEMPORADA NO INFERNO URBANO

A Musa Chapada é um livro que reúne poemas de Ademir Assunção e Antônio Vicente Seraphim Pietroforte com ilustrações do artista plástico Carlos Carah, que traduziu a alta temperatura dos textos em imagens brutais, próximas a um figurativismo expressionista. O volume está dividido em quatro seções: Grogues e noturnos, Viagem através da neblina, Clube do Pico e Bagana’s Blues, que abordam o consumo de drogas no cenário de miséria e violência dos centros urbanos. Os poemas fazem referência a lugares conhecidos de São Paulo, como o Largo de São Bento, a Catedral da Sé, o Parque do Carmo, o Bexiga, por onde circulam personagens criados pelos autores, como Igor, Lili Maconha ou Mister Morfina, em cenas que recordam a velocidade narrativa do videoclipe e da história em quadrinhos.

Em Clube do Pico, poema de Antônio Vicente Seraphim Pietroforte (título que ecoa o lendário Clube do fogo do inferno), o autor imagina um casarão abandonado na Zona Leste, onde jovens se reúnem à noite para beber, fumar baseado ou fazer sexo: “vai chegando gente / só vai menina gostosa / só vai moleque bonito / menina beijando menina / vão lá no Clube do Pico”. Os versos são breves, coloquiais e permitem uma aproximação com o poema Osso & liberdade, de Roberto Piva, outro clube imaginário freqüentado por garotos que dedicavam-se a orgias e à leitura de Mário de Andrade.

Piva, aliás, é a principal referência intertextual da Musa Chapada, e em especial o livro Paranóia, de 1963, onde encontramos uma peça intitulada Visão de São Paulo à noite. Poema antropófago sob narcótico, que se insere numa tradição marginal da literatura que teve início em meados do século XIX. Conforme escreve Virna Teixeira no prefácio à Musa Chapada, o consumo de drogas é “tão antigo quanto a civilização”, mas sua presença na literatura “surgiu após os avanços da Revolução Industrial, sobretudo a partir do uso de ópio na época do Romantismo inglês”. As Confissões de um comedor de ópio, de Thomas De Quincey, publicado em 1821, inaugurou essa linha temática na literatura ocidental, e atingiu um ponto de ebulição na época do Simbolismo, especialmente com o livro Paraísos artificiais, de Baudelaire.

No século XX, as drogas marcaram presença nas obras de autores como Huxley, Artaud, Ginsberg, que consideravam a ingestão de alucinógenos um método para a obtenção de estados alterados de consciência, além de ser uma atitude de ruptura com as normas burguesas. Para Camilo Pessanha e Henri Michaux, a droga foi um estímulo à criação, e ainda hoje se discute a influência dos entorpecentes na escrita desses autores. A visão ingênua em torno das drogas atingirá o seu ápice nas décadas de 1960-70, com a contracultura, que colocou o uso do LSD no mesmo plano que a liberação sexual, a contestação política, o rock e a busca de antigas religiões, como o xamanismo. Nos tempos pós-modernos, a mitologia da droga não exerce o mesmo encanto, pela divulgação de informações médicas sobre os seus efeitos na saúde física e mental e pelo vínculo entre a droga e o crime organizado. O charme de se beber absinto num cabaré parisiense cedeu vez às imagens de crianças cheirando crack debaixo de viadutos.

É neste cenário desolado que se desenrolam as narrativas poéticas da Musa Chapada, que não ignoram a guerra em curso nos centros urbanos, que Ademir Assunção retratou no poema Paisagem crivada de balas: “As rajadas podem ser ouvidas de Pirituba ao Pontal. / Escopetas, uzis israelenses e fuzis russos / sangram as bordas da Noite Drogada”. A violência é sintetizada por Ademir num verso notável: “Deus está solto. E dizem que Ele está armado”. A Musa Chapada, porém, não se resume a um rude naturalismo, por maior que seja a aproximação entre arte e realidade proposta no livro. Os autores dominam a técnica poética, e vamos encontrar recursos como a elipse, a paródia, a citação, a enumeração caótica, a espacialização das linhas, o diálogo com outras artes, e em especial a música, o cinema, o comic book, a pintura. Virna Teixeira aponta a incorporação de gírias do mundo da droga, como talco, granizo, farinha ou nariz nervoso, que trazem a marginalidade da temática ao próprio campo semântico.

Nos poemas de Ademir Assunção a enumeração caótica é um elemento estrutural, como em Noturno com marijuana, que mescla o jazz de Miles Davis a sacos de lixo, filmes de Hollywood ao monte Fuji e deusas do Olimpo a ogivas nucleares. Já nos poemas de Antônio Vicente vamos encontrar sex shops, pôsteres, metralhadoras, calcinhas e outras referências simbólicas que formam um bric a brac da cidade caótica. A paródia é um recurso utilizado com freqüência pelos dois autores, com ênfase na dessacralização religiosa, como na antiprece Santa Maria Joana, de Ademir Assunção (“erva santa dos xamãs / pode ser treva / pode ser canto / pode ser trava / pode ser cura”) ou na Reza n. 2 de Antônio Vicente Seraphim Pietroforte (“irmão Fogo / brasa do cigarro acesa / asa do carvão / sopro do carvão ao vento / na fumaça preta”).

O diálogo com a tradição literária também aparece em diversos poemas, como A volta do anjo torto, em que Ademir Assunção faz referências a Carlos Drummond de Andrade e Torquato Neto (“mas eis que um anjo torto / aquele mesmo, com asas de avião / entrou pela porta / um baseado na mão”). A presença das histórias em quadrinhos é recorrente em todo o volume, não apenas pelas ações rápidas e fragmentárias, como também pela citação de personagens como o Hulk, o Coringa, o King Kong, entre outros, como no poema O fim da história em Gotham City, de Ademir Assunção (“enquanto Coringa injeta no braço esquálido / a última gota da ampola / e Batman se retorce como uma cobra / picotada pelas garras das Iguanas de Hong Kong”). “O clima de horror e ficção científica” da Musa Chapada, diz Virna Teixeira, “traz as marcas de uma escrita psicodélica”, em que as fronteiras entre os universos real e simbólico são tênues. Porém, lendo com atenção este livro, o que notamos não é a busca de “estados alterados de consciência”, e sim o mergulho lúcido e crítico numa realidade cada vez mais próxima dos pesadelos de uma bad trip.

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (V)

A PALAVRA EM ESPIRAL DE VIRNA TEIXEIRA
Heráclito apontou a mudança cíclica como a essência da natureza; tudo é um contínuo deslocamento, similar ao fluxo das águas de um rio. As idéias de impermanência e mutação, presentes também no pensamento taoísta, como nas conhecidas anedotas de Chuang-Tzu, questionam a presunção da estabilidade, da fixidez, do eterno; a metáfora da viagem é um bom exemplo dessa concepção, e não por acaso temos relatos como os diários de viagem de Bashô, A Linguagem dos Pássaros de Attar, as aventuras de Simbad e Odisseu, entre tantos outros que representam, de maneira simbólica, a transitoriedade e mutabilidade do homem e do mundo. Tudo é viagem, tudo é miragem, um incessante jogo de metamorfoses. Estes são os pensamentos iniciais que me ocorrem ao ler os poemas de Virna Teixeira, que tematizam o contínuo deslocar-se, em várias acepções: o percurso geográfico, a jornada interior, no âmbito das sensações e imagens mentais, e sobretudo o trânsito da linguagem, os movimentos da palavra poética em diferentes formas de estruturação.

Virna Teixeira estreou em 2000 com o livro de poemas Visita, um conjunto de textos breves que descrevem suas viagens, leituras e experiências pessoais. Com olhar clínico e preciso no recorte das linhas, ela retrata paisagens e situações de modo conciso, fragmentário, quase cubista. Elementos mínimos são suficientes para compor a sua fabulação, cujo centro é uma cena ou gesto de maior intensidade, em torno do qual se articula o poema; o movimento acelerado das palavras, por sua vez, dá maior agilidade e poder de impacto à composição, que recorda uma seqüência de videoclipe. Assim, por exemplo, em Meio-dia: “beira de viaduto, / mendigo / descalço / televisão nos braços / súbito, arremessada / avenida abaixo / cacos / carros — veloz / disputa / dos pedaços, asfalto / enquanto / esfregar de mãos / os passos / sem pressa”. A temática urbana é uma constante na poesia de Virna, onde encontramos táxis, bicicletas, avenidas, placas de trânsito e out doors, mas o seu espaço geográfico é múltiplo: ela pode se referir a um evento ocorrido em São Paulo, Londres, Lisboa ou New York, animada pelo impulso do viajante, aquele cuja casa está em toda parte e em lugar nenhum; sua pátria é a sua fala, suas lembranças, seu universo particular, em constante ebulição. Os diálogos com a fotografia, o cinema e as artes plásticas, já evidentes em sua primeira lírica (recordemos a peça “um travesseiro / bordado, canto / esquerdo: / ninguém”, evocando Leonilson), permanecem e evoluem em seu segundo título publicado, Distância, de 2005. Este livro é um ritual de passagem, em que a autora afirma o pleno domínio de sua linguagem e ao mesmo tempo amplia o repertório temático e estilístico, construindo poemas de forte visualidade e um tom dramático expressivo — não no sentido da retórica, do jorro confessional, mas algo como um teatro poético, em que a ação é composta por um arranjo de cenários, objetos e pequenas falas, como neste poema sem título: “pavilhão 8 / cela 63 / faz quinze dias / que eles prenderam / você /a inscrição nos dedos / fox / nas grades / dos olhos / um cartão de visita / lá fora / espera / a sentença / apuro / no silêncio / da enfermaria / ‘é perigoso, o que / eu poderia / dizer’ / na neve, a raposa / deixa rastros”.

Intensidade é uma palavra essencial quando falamos da poesia de Virna, capaz de conciliar o mais alto lirismo com a forma meditada, construída com rigor de linguagem. Esta leitora de Ana Cristina César e João Cabral de Melo Neto sabe que a poesia move-se em espiral entre a emoção e a inteligência, o real e o imaginário, a sonoridade e o silêncio, numa aventura da linguagem ou irrupção de signos. Ela não necessita de mais do que onze palavras (sendo três artigos) para criar uma seqüência quase cinematográfica: “pequeno, o / frágil / corpo / soluça / vermelha, / a flor / entre os / dedos”, que recorda a objetividade de poetas como William Carlos Williams, a capacidade de síntese do haicai japonês e os recortes fílmicos de Jean Luc Godard. O que chama a atenção em Distância, porém, é a transição do minimalismo para outras formas de dizer, especialmente na última seção do livro, chamada Entre paredes. Encontramos aqui algumas peças que se aproximam da prosa, expandindo a música verbal, agora menos solista do que camerística, como numa peça notável que começa com estas linhas: “Eu estou morrendo, ele disse / O lápis verde escorrendo sob as pálpebras. / O que é ilusão nas horas transitórias. / Neste barco náufrago, atrás desta murada”. Temos aqui quase uma antecipação do livro Trânsitos, seu terceiro título, publicado agora pela Lumme Editor (selo Caixa Preta) que radicaliza as experiências anteriores, mostrando a capacidade de renovação da autora.

Na primeira seção do livro, temos um guia de viagem que nos remete às perambulações de Virna por países como Escócia, México, Índia e África do Sul; nesse breve baedecker, o leitor atento encontrará fotografias semânticas de cenários naturais, monumentos, citações de lendas e descrições do cotidiano, mas também perceberá uma capacidade maior de concentração e densidade poética, numa pluralidade de formas, nuances e tons. Cada poema é uma viagem; seria difícil destacar uma peça do conjunto. Em aguafuerte, porém, Virna alcança um timbre pouco comum em sua lírica, misturando referências de um universo sensorial onde o solene, o místico, o popular e o jocoso fundem-se no mesmo caldeirão, de inevitável kitsch e humor negro: “tequila, cerveza y cigarillos / mescalina, crânios de açúcar / bailavam: uma danza / de serpentes”. Como contraponto a essa luminosidade, a seção seguinte do livro é ambientada na sombra; o mundo objetivo cede lugar ao subjetivo, e a viagem para fora a outra, para dentro. Patinando no gelo fino é um ciclo de peças inspiradas no trabalho fotográfico da artista norte-americana Nan Golding, que retratou a intimidade, a sensualidade e o desespero dos junkies, habitantes do “playground do diabo” (título aliás de um poema publicado em Distância). São poemas que desprezam a distinção entre verso e prosa; apesar da concisão vocabular e do uso preferencial de substantivos, com poucas metáforas, a clareza é turvada pelo uso da elipse, do corte metonímico e da montagem fragmentária dos elementos (novamente, o cinema), como nesta composição (sem título): “Nado em alto-mar, maremoto. Flutuar sobre naufrágios, resíduos. Submersa no que não era – afogamento. Mergulho, viagem marítima. Escapismo, estrelas-do-mar. Sentimentos líquidos. Ebulição. Dissolução de formas. Novas, transitórias, fluidas. Tensão, polaridade. Repetição, aprendizado: trajeto contra a correnteza até a margem. Memória da água. Desenhos na areia, espuma”. O elemento líquido, aliás, percorre outros poemas da série (e convém recordar que a água relaciona-se com o mundo das emoções; com a origem da vida, na substância amniótica; e ainda com o fluir heraclítico do tempo e a mutação dos fenômenos, “tudo riocorrente”). Água, espelho de Narciso, o apaixonado por si mesmo, que não ouve os apelos da ninfa Eco. Água, abismo pessoal onde se acumulam detritos, sofrimentos, memórias: “como a minha sombra, nua atrás do espelho” (para citarmos a epígrafe de Maria-Mercè Marçal que abre esse caderno de poemas).

A jornada pelo imaginário dos alcoólatras, dependentes químicos e outros desajustados sociais, que dá a tônica na segunda seção do livro, é desenvolvida na terceira, Da vida das marionetes, onde encontramos um “coração de couro / com tachas de metal”, “bonecas, penduradas / no céu desta noite” e o junkie de “tatuagens desbotadas”, “desempregado / nas ruas de / Glasgow”. Se a presença do cinema é óbvia desde o poema inicial (Ken Loach), notamos também o registro da violência e do kitsch do submundo, que sugerem paralelos com a pintura de Francis Bacon, a fotografia de Diane Arbus, a linguagem narrativa dos comics e os ritmos ásperos do punk rock: a poesia de Virna não se contenta em ser apenas literária, o trânsito de influências entre artes e meios de expressão é uma necessidade a priori de seu método compositivo, de suas escolhas e estratégias. No campo simbólico, ela tece uma ampla metáfora do inferno (nesta série, há um poema chamado Hades), visto não como entidade teológica, metafísica, mas como experiência sensível, vivida neste mundo: nós escolhemos a nossa própria configuração de lamentos, pedimos ao cenobita que retalhe nossa carne com correntes e ganchos, e não podemos culpar ninguém por nossa sorte: “não há adversários — nem drogados / felizes”. A mitologia diabólica prossegue, junto a outros temas, nas duas seções finais do livro, Instamáticos e Impromptus, que reúnem peças breves, fragmentárias, como um retorno ao quase-silêncio, após a incisão da navalha: “o que se corta, cicatriza / corpo feito em pedaços / deformados em / movimento” (de Estudo para portrait I). Haveria muito mais o que dizer da poesia de Virna, como o uso sutil que ela faz do humor e da ironia, a abordagem plástica da lírica amorosa, a reinvenção do cotidiano pelo imaginário, mas isso exigiria um texto de maior fôlego que o de uma simples apresentação. Podemos concluir este breve texto afirmando que, em Trânsitos, temos uma autora que domina de maneira consciente a arte das palavras, e que sabe unir a intensidade de emoções e pensamentos ao rigoroso engenho formal, sem o que não é possível estabelecer nenhuma aventura intelectual.

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (IV)

A crítica literária é sempre parcial, uma vez que a apreciação de um poema, conto, novela, romance ou outro tipo de texto literário baseia-se em padrões de gosto, em conceitos a respeito da beleza, da verdade, da ética, do artesanato formal ou das relações com a sociedade. Cada crítico adota um método de avaliação derivado de uma poética, ou seja, de uma visão mais ampla sobre o fazer literário. Um crítico de orientação formalista irá privilegiar aspectos estruturais e semânticos, irá pensar o texto enquanto construção de linguagem, enquanto um crítico sociologizante irá colocar em primeiro plano o contexto histórico e social da obra literária e as relações entre esse pano de fundo e a obra analisada. Há várias outras operações críticas de leitura, como a estética da recepção ou a crítica genética, por exemplo, e com certeza nenhuma é capaz de dar a palavra final sobre um texto literário; no máximo, quando bem construída e fundamentada, a crítica consegue iluminar alguns pontos que auxiliam a compreensão de uma obra. As polêmicas entre teóricos de diferentes escolas, como a travada por Roberto Schwartz e Augusto de Campos a respeito do poema Pós-tudo, são batalhas de idéias entre poéticas; se deixamos de lado a simpatia por este ou aquele e o envolvimento emocional com o debate, a polêmica pode se revelar útil, se demonstra os valores, métodos e critérios de avaliação de cada um dos contendores, ou pode se mostrar algo estéril, quando se trata de simples competição de vaidades. Isto é o que diferencia a atividade intelectual, fundamentada em argumentos, e a pura e simples maledicência. Um crítico literário sério tenta compreender uma obra antes de escrever sobre ela; busca entender a poética do autor, como e por quê ele construiu o seu texto dessa forma, e não de outra, enfim, quer avaliar a forma sintática e semântica e os efeitos estéticos pretendidos pelo autor analisado, à luz dos valores e conceitos do próprio crítico. Nem sempre esta é a atitude profissional de alguns de nossos críticos, que preferem substituir a seriedade intelectual e a argumentação por ataques pessoais grosseiros, movidos por simples inveja, ressentimento e ainda para agradar a seus padrinhos influentes, numa atitude servil, canina, de bajulação sem ética ou princípios de qualquer natureza. Quando não há o mínimo de sinceridade, respeito e objetividade numa discussão, ela fica esvaziada em sua essência narcísica. Não se trata mais de debate literário, mas de um caso para a psiquiatria.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (III)

UMA VIAGEM AO IMAGINÁRIO DE HORÁCIO COSTA

Ravenalas é o mais recente livro de poemas de Horácio Costa, publicado pela editora Demônio Negro. A obra reúne peças escritas entre 2004 e 2008, inseridas na ordem cronológica em que foram escritas, e não agrupadas em séries temáticas ou estilísticas. No prólogo escrito para a obra, diz o autor: “Há núcleos temáticos, formas e sentidos recorrentes, nexos, reaparições, que o meu leitor estabelecerá com outras partes de minha obra poética, ou mesmo crítica: ça va de soi. O que me propus fazer ao dispor estes poemas em forma rigorosamente cronológica é arriscar deixar claras às descontinuidades, a porosidade do (meu) processo poético, sua irremissível desorganização, sua lacunaridade; deixar claro, enfim, o seu, digamos, intrínseco babelismo”.

Temos aqui, portanto, um roteiro de viagem, ou ainda a exposição da oficina de trabalho do poeta, como se ele nos mostrasse um pouco do seu processo criativo, anterior à edição e montagem que ele realizou em seus títulos anteriores. Diz ainda o poeta, no prólogo: “Exponho tanto os poemas, que, obviamente, falam entre si e com o restante de minha obra, e com o ‘arquivo’ da literatura e não só dela, claro, mas focalizo também os espaços entre eles, em termos temporais e poéticos”.

O que caracteriza o processo de criação deste livro, portanto, não são apenas os deslocamentos entre temas, releituras intertextuais e procedimentos estilísticos, mas também uma marca pessoal mais acentuada, uma aproximação maior entre poesia e vida, texto e experiência no tempo e espaço.

O primeiro poema, Abismos, um dos mais belos do volume, escrito na Califórnia, é falado em primeira pessoa, em versos encadeados que simulam o ritmo da prosa, mas sem uma linearidade previsível; há referências simbólicas a mitos como os de Ícaro, Ariadne e Tristão e Isolda, relidos de forma paródica e em consonância com a experiência pessoal, sem recusar a intromissão da subjetividade (“Desconheço o abismo da paternidade, / Recusei o da troca da nacionalidade”). A confissão, aqui, não entra em choque com a função poética: lirismo e linguagem unem-se num único artefato, que não apresenta uma conclusão ao leitor, e sim uma seqüência de enigmas, como no discurso do sonho, em que a clareza é sobrepujada pela profusão de imagens e símbolos que escapam à construção do silogismo. É uma outra lógica que impera e se sobrepõe à lógica rotineira do discurso.

O tom hermético ou enigmático de muitas peças, como Febra, reveza com a ironia, a sátira e as referências mais diretas, como no poema A voz do Brasil, que se insere num dos temas recorrentes do poeta, o do amor homoerótico, ausente no cânone da literatura brasileira até há poucas décadas. Horácio Costa, em seus poemas, textos críticos e intervenções culturais, como o recente congresso da ABEH (Associação Brasileira de Estudos de Homocultura), tem militado em favor da reinclusão do tema homoerótico numa das literaturas mais homofóbicas do Ocidente, como é o caso da brasileira. Mas este poema também chama a atenção pelo grau mais evidente de coloquialidade, pelas referências urbanas, pelo vocabulário simples, recordando a primeira fase da poesia do autor, reunida no livro 28 poemas / seis contos.

Horácio Costa não é um poeta que se limita a uma única dicção ou linha de pesquisa formal: encontramos em sua obra poemas de extrema concisão, como no Livro dos Fracta; poemas longos que dialogam com Jorge de Lima, como O menino e o travesseiro; uma imagética hermética, barroquizante, como nos poemas da segunda metade de Satori; e ainda peças de uma surpreendente leveza, como A voz do Brasil. Essa diversidade atinge o próprio campo lingüístico, como nos poemas escritos em inglês ou que incorporam ao português versos e expressões de outros idiomas, numa babel voluntária. Essa miscelânea, além do efeito estético, denuncia ainda o homo viator que é Horácio Costa, cidadão do mundo que viveu nos Estados Unidos, no México e que está em constante deslocamento geográfico, trazendo para a poesia brasileira, ainda afetada por um nacionalismo provinciano, esse traço da contemporaneidade que é o universalismo: não estamos sós no planeta, e a cultura brasileira, nascida da síntese de outras culturas, é, por sua própria natureza, plural.

Pensar o Brasil para além do lugar comum, com um olhar crítico e não limitado pela anacrônica sociologia marxista, é outro aspecto que chama a atenção na poesia de Horácio Costa: a angústia do deslocamento e a revolta contra os acontecimentos da história recente (como no poema Manjar branco) acompanham a sua produção, que é um testemunho de alguém que, sendo cidadão do mundo, é profundamente brasileiro, no que essa palavra ainda guarda de bom, ou seja, a vocação para a síntese, a mescla, a miscigenação.

P.S.: Ravenala, conforme o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, designa uma planta da família das musáceas, nativa de Madagascar, também conhecida como “árvore-do-viajante”.


ABISMOS

Não me obriguem a chegar mais perto dos abismos:
Ícaro despenhou-se;
Ariadne foi abandonada em Naxos
e cantou sua desdita a um abismo;
Tristão e a pobre Isolda desceram a falésia
rumo ao barco que os levaria direto às
ondas. Os abismos
constroem destinos cruéis que atravessam séculos.
Nada cruel é o meu e que acabará comigo.
Desconheço o abismo da paternidade,
Recusei o da troca da nacionalidade,
O abismo do amor-louco esquivei.
Algum dia quiseram-me vestir de branco:
Rasguei as vestes em presença dos bem-intencionados:
Não quis ser herói de alguém
para não tornar-me abismo de muitos.
Preferi a condição pedestre, acompanhar com o olhar
A zebra que singra o asfalto antes de atravessar a rua
Ao bordereau da vida.
Ainda assim, ocorrem-me abismos
E não apenas quando sustenta alto uma nota um soprano
Ou quando arrebenta como um colar de ondas estrepitantes
O choro de um bêbê.
Falo dos abismos dos sonhos que seduzem a quem os sonha,
A esse em que abandona a alucinação que construiu ao redor
Da sua idéia de si o eu empaliçado,
E àquele que, na travessia do sonhar,
Abandono-me a quem em mim sonha persistente
E abismos sonha.
Falo das arquiteturas que não quero subir
E são-me pelos sonhos impostas,
Barcos nos quais me encontro cruzando mares ignotos
Rumo à concreção de destinos que não posso recusar
E aos quais sirvo,
De falésias que esperam não o meu olhar
Mas o meu salto:
Falo da sereia mortal que me seduz todas as noites
Enquanto durmo e a mim com o seu canto nina
E marca os minutos com um observante adejar
De sua oleosa e rebrilhante cauda,
Na espera do assalto final.

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (II)


A MÁQUINA LÍRICA SE ARMANDO

Mr. Interlúdio, de Armando Freitas Filho, é uma notável síntese de lirismo e construção formal, expressão subjetiva e invenção de linguagem. Publicado pela primeira vez em 1979, no livro A mão livre, esse poema foi reeditado em 2008, na forma de plaquete, com tiragem de cem exemplares e projeto gráfico de Sérgio Liuzzi, a partir de um desenho do próprio autor (que fez, com a mão esquerda, uma caricatura de si mesmo, numa representação irônica do próprio discurso).

Poema longo que se desenvolve como um monólogo dramático sem ação fabulatória, Mr. Interlúdio estabelece um claro diálogo intertextual com a poesia portuguesa, e em especial com Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro (sem esquecermos do Sá de Miranda das Trovas à maneira antiga: “Comigo me desavim / sou posto em todo perigo: / não posso viver comigo / nem posso fugir de mim”). A tradição do eu fingido, duplicado ou mascarado, aliás, nasce com a poesia portuguesa, se pensarmos nas cantigas de amor do século XII, em que a voz feminina era a persona de um trovador masculino que mentia o que sentia. No poema de Armando Freitas Filho, a duplicação do eu tem o sentido de busca, ou talvez de estranhamento, de um outro que se ignora, mas que está presente nas mesmas roupas, nos mesmos sapatos, na mesma hora registrada no relógio. Assim, logo nos primeiros versos, o autor escreve: “Quem sou você / que me responde / do outro lado de mim? / Quem é que passa / invisível / pelo espaço da sala / e vai / do meu corpo / a este outro / em emulsão ou emoção / instantânea / feito como eu mesmo / de repente / em noite antiga / e não perde / nessa viagem / o tempo que perdi / e, no entanto / os dias que me fizeram / estão ali / correndo em suas veias?”. Nesta sequência de interrogações, em linguagem substantiva e direta, com poucas metáforas ou floreios verbais, o poeta cria uma tensão entre o eu que narra e o que é narrado, o eu que pensa e o que sente, o eu que mente e o que se cala, conflito que se multiplica nos jogos antitéticos entre subjetivo e objetivo, sujeito e mundo, vida e linguagem. No campo semântico, essas oposições estão presentes, por exemplo, no choque entre referências concretas (caderno, relógio, cigarro, janela) e imateriais (sonho, silêncio, memória, ecos), e ainda nas afirmações paradoxais, como nestas linhas: “O que sou / não sei / como me fiz / ao longe / e não me alcanço / toda vez / quando escapo / sem lembrança / ou flagrante (...). / O que sei / não sou / pois me esqueço / todo o que me fez / por dentro: / tudo o que está perto / todo o avesso / tudo o que de cor / o coração repete / entre relâmpagos”. A voz do poema se torna cada vez mais enigmática, ambígua, imprecisa, aproximando-se da lógica construtiva da música e do sonho.

Em Mr. Interlúdio, a música é o princípio estrutural da composição, que orienta a duração de cada linha, as pausas e mudanças de ritmo. A própria palavra “interlúdio”, segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, significa “trecho de música instrumental que se intercala entre as várias partes de uma longa composição, do tipo ópera, missa, cantata etc.”. A espacialização das linhas do poema e sua divisão interna nas páginas reforçam a divisão melódica e sinalizam a própria maneira de oralização do texto poético, sugerindo ênfases e pausas, o andamento lento ou rápido das frases, como se fossem acordes de uma composição musical. A distribuição das palavras e linhas na página colaboram também com a concepção visual do livro, que intercala páginas brancas e escuras, traduzindo o ritmo do poema numa linguagem plástica. O designer Sérgio Liuzzi inseriu também variações gráficas do desenho de Armando, que aparece ora invertido, ora recortado, ora duplicado e por fim dissolvido num abstracionismo gráfico, que aponta talvez o silêncio, a abolição das formas ou o esquecimento de si. Em Mr. Interlúdio, temos uma obra situada na zona fronteiriça entre poesia, música e pintura, e que exatamente por isso exige do leitor uma lógica que não seja puramente conceitual ou literária; é preciso estabelecer uma relação lúdica e sensorial com as palavras e com as imagens, que formam uma unidade estética. O leitor se torna, talvez, um outro eu do poeta, à medida que, ao interpretar sua máquina lírica, vai armando uma outra, dentro das inumeráveis possibilidades de leitura do poema. Nenhuma é definitiva, nenhuma é correta; todas são distintos lances de uma partida condenada a não ser concluída, e nisto reside seu encanto.