DIÁRIO DE UM ALFARRABISTA

Caros, confesso que tenho algumas preciosidades na minha biblioteca, entre elas a Caixa Preta e os Poemóbiles, de Augusto de Campos, a primeira edição de Poesia Russa Moderna e várias coleções de revistas literárias dos anos 70 para cá, inclusive a Código, que era editada por Erthos Albino de Souza em Salvador, Bahia. Para quem não sabe, essa foi uma das principais revistas de poesia de vanguarda, tendo publicado autores como Décio Pignatari, Júlio Plaza, Pedro Xisto, Paulo Leminski, Lenora de Barros, José Lino Grunewald, entre muitos outros poetas e artistas plásticos. O número 5 da revista, publicado em 1981, traz um belo dossiê dedicado a Augusto de Campos, com poemas, traduções, fotos e uma entrevista com o poeta, que lida hoje permanece viva, instigante — e atual. Numa das perguntas, o entrevistador, J. Jota de Moraes, dispara à queima-roupa:

“Nos cursos de Letras de muitas de nossas universidades, a sua produção — junto com a de outros integrantes do movimento concreto — costuma ser vista com muita reserva. Alguns chamam-na de formalista, outros de alienada; outros, ainda, são de opinião que, ao se preocupar excessivamente com a imagem, sua poesia consegue apenas descartar-se da palavra, em uma espécie de escapismo. O que acha desse quadro?”

Augusto: Alienação e formalismo são palavras-senha que identificam uma concepção maniqueísta, pseudo-marxista, e na verdade tributária do stalinismo cultural. Infelizmente, essa é a mentalidade dominante em algumas áreas de letras universitárias. Uma orientação sociologizante, bem educada mas desatualizada, a que veio somar-se o sentimento de ‘má consciência’ aguçado pelos anos de repressão no Brasil, criou uma indisposição pretensamente ‘ideológica’, nessas áreas, contra a poesia de vanguarda. Esta é tida como escapista por não falar diretamente da realidade social brasileira e não proporcionar aos regentes das nossas letras a catarse emocional necessária para aliviar as suas consciências de burgueses privilegiados num país subdesenvolvido. A música popular foi palco de idênticos preconceitos. Em 68, essas áreas universitárias eram, em peso, contra Caetano e todos os baianos — estrangeiros e a favor de Edu Lobo e Vandré, com suas senhas violeiro-boiadeiras. Quando Caetano foi preso, caíram do cavalo e puseram a mão na consciência. Era tarde. Oswald viu (numa tese que ninguém ouviu, A CRISE DA FILOSOFIA MESSIÂNICA): ‘O inexplicável para críticos, sociólogos e historiadores, muitas vezes decorre deles ignorarem um sentimento que acompanha o homem em todas as idades e que chamamos de constante lúdica. O homem é o animal que vive entre dois grandes brinquedos — o Amor onde ganha, a Morte onde perde. Por isso, inventou as artes plásticas, a poesia, a dança, a música, o teatro, o circo e, enfim, o cinema. Ainda uma vez hoje se procura justificar politicamente as artes, dirigi-las, oprimi-las, fazê-las servirem uma causa ou uma razão de Estado. É inútil.’ E até Mário de Andrade viu (carta a Drummond, 16.02.45): ‘O intelectual, o artista, pela sua natureza e pela sua definição, mesma de não-conformista, não pode perder a sua profissão, se duplicando na profissão de político’ (...). Quanto à acusação de eu me descartar da palavra, por causa da preocupação com a imagem, é mais um preconceito, neste caso de índole literária. São raros os poemas em que não uso palavras. com os recursos visuais e a concisão vocabular, penso, ao contrário, valorizá-las, restituir-lhes o seu vigor original, em vez de diluí-las em palavrório frouxo. A minha poesia é — se quiserem — uma poesia de palavrões. LUXO. LIXO.”

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO

A crítica literária sempre cometeu notáveis equívocos. Saint-Beuve, por exemplo, censurou a "imoralidade" de Madame Bovary, de Flaubert, e das Flores do Mal, de Baudelaire... no Brasil, Antonio Candido, em sua Formação da Literatura Brasileira, exclui o barroco e o arcadismo, como se as nossas letras tivessem como marco fundador o romantismo (apenas porque esse movimento artístico coincidiu com a proclamação da independência, em 1822). Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira (livro que não acho desprezível, num todo), esquece de incluir Sousândrade, de longe o mais inventivo de nossos poetas românticos, e Pedro Kilkerry, simbolista original de linha mallarmeana. Wilson Martins, autor da História da Inteligência Brasileira, faz pouco caso de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, preferindo o chatíssimo Vila dos Confins, de Mário Palmério. Roberto Schwartz (o mesmo que não soube ler o poema Pós-tudo, de Augusto de Campos), em seu estudo de Machado de Assis, submete a leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas a um viés sociologizante marxista, aliás ultrapassado há muito tempo, desde antes da queda do Muro de Berlim; isso sem falarmos das barbaridades cometidas por certos críticos contemporâneos (vide revista Sibila). Porém, a margem de erro da crítica literária não é um fato recente: já na década de 1870, quando José Veríssimo e Sílvio Romero criam os alicerces de nossa crítica (há um notável ensaio de Benedito Nunes sobre isso, chamado Crítica literária no Brasil, ontem e hoje), os erros de avaliação não eram poucos, nem menos assombrosos. Leiam o que José Veríssimo (que acertou a mão em vários estudos etnológicos, literários e históricos e soube avaliar a importância de Machado de Assis, desprezado por Sílvio Romero) escreveu a respeito de Cruz e Sousa: “Nunca ousei dizer que em Cruz e Sousa não houvesse absolutamente matéria de poesia, nem sensações e sentimentos, ideação bastante, dons verbais, capazes de fazer um poeta. Admiti sempre que os havia, mas o que não senti então, além da música das palavras, do dom da melodia, que é comum aos negros, era a capacidade de expressão, e essa capacidade escondia-me a sua inspiração. Ou ele não tinha de fato nada para dizer ou não o sabia de todo dizer, e esta sua inaptidão de expressão artística parecia-me chegar nele à inibição patológica. O caso que, com certas restrições, continua a ser exato, é curioso como fenômeno de psicologia étnica. Os seus sonetos, senão lhes vamos mais fundo que ao sentimento literal, não significam coisa alguma. (...) Constam apenas de palavras gramaticalmente arrumadas, sem sentido apreciável, ou tão escuro ou sublimado que escapa às compreensões miseráveis, como a minha”. (Fonte: José Veríssimo: Teoria, Crítica e História Literária. Seleção e apresentação de João Alexandre Barbosa. São Paulo: Edusp, 1978.) Alguém deveria organizar uma antologia só com as “pérolas” de nossos críticos literários... com certeza, seria um livro engraçadíssimo...

Besos,

CD

UM POEMA DE MAX MARTINS

OS CHAMADOS DO TIGRE

Os chamados do tigre me atravessam. Ardem
e medram em sangue sob escombros, plasmam
a carne do meu fruto flamejando-o.

Quem defende o meu corpo deste incêndio
desta palavra corpo se afogando?
E quem sou eu para guardar um nome de sua noite? Quem
das grades dessa noite, a pele majestosa, tenso
vibra seus punhos contra a neve

Tu

que não me dizes nem me sabes, tu
que do topo dos topos da metáfora me alivias vê:

Do fundo de meus olhos cego-deslumbrados
obscuros laivos de ternura me procuram

(Do livro Poemas reunidos, 1952-2001. Belém, Universidade Federal do Pará, 2001.)

HAICAIS DA COPA

amarela é a cor da camisa.
até o sol encheu a cara
de cerveja!

*
jogo que me comove
é o que faz barba,
cabelo e bigode

*
lua sobre o verde
campo de batalha:
à espera dos tigres

*
vencer não é tudo
disse o cego
para o mudo

*
hora do tigre:
gritam olhos e bocas
no estádio alucinado

Haicais que publiquei em 2002 no caderno de Esportes do jornal Folha de S. Paulo, alusivos à Copa da Coréia; na época, saíram também haicais de Ademir Assunção, Maurício Arruda Mendonça, Luiz Roberto Guedes, Joca Reiners Terron e outros poetas, confiram na página http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/copa/haicai.shtml

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O CAMINHO DO ARCO E FLECHA





“Há um antigo ditado Zen a respeito da arcoaria: ‘Você pode encontrar o seu próprio caráter no momento do tiro’. O disparar da flecha é uma expressão da perfeita tranquilidade mental do arqueiro; e, quando a flecha atinge o centro do alvo, diz-se que o espírito humano ligou-se ao alvo pela união entre homem, arco e flecha. A compreensão e a prática desse princípio criam uma personalidade capaz de fundir-se harmoniosamente com todos os outros aspectos da vida. No Japão antigo, o arco era considerado um objeto de boa fortuna, e o disparo da flecha com pontas ocas que assoviavam pelo ar ainda marca o início de muitos rituais importantes da religião xintoísta. A flecha afugenta os espíritos malignos e aplaca e propicia os deuses. Hoje em dia, esses costumes são praticados de acordo com as doutrinas do Budismo Zen.”

(Do livro O Caminho do Guerreiro, de Howard Reid e Michael Croucher. São Paulo: Cultrix, 2004.)

OITO HAICAIS

*
sombra de árvore:
conto apenas a você
o que disse o vento

*
primeiro dia do ano:
corpos sem nome
nas águas do rio

*
moça no metrô
borboleta de verão
tatuada nas tetas

*
após a chuva de inverno
a menina rega
o ipê amarelo

*
pequenas misérias de maio:
onde eu estou
é qualquer parte

*
formiga na grama:
passa sem pressa
ou telefone celular

*
galho seco; noite
escura; folhas e medos
amarelecendo

*
o tempo? viagem
do pó ao pó — os pés,
os paus e pedras

DOIS POEMAS DE ANTÔNIO FRANCO ALEXANDRE

caminha pelo sangue, na pele
rugosa do amanhecer,
a tão pequena tosse do outro
lado das palavras: como se

se dividissem os sentidos,
a visão, o tato animal,
o veneno riscado, arrancado
às paredes da luz

e sobre o flanco abrisse
uma doença uma razão
meticulosa deexistir,

um sofrimento a cada
instante mais veloz, mais ágil
uma secreta ausência perdoada


* * *

não são as luzes nem os animais
o esplendor
nem as mudas palavras onde a voz
difusa as separa

caminharemos junto à água, até
ao recordar dos promontórios
ao olhar
a invenção do inverno

e recolhidos
no brusco ardor dos
anos breves

ouvindo cintilar
a frívola passagem
dos sinais

(Do livro Poemas. Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.)

TRÊS POEMAS DE JOÃO RASTEIRO

2

golpes lentos no final da chuva
que se espraia fina sob a garganta
cozida no cio ancestral dos corpos
esculpidos nas linguagens do pólen,

pelo sopro inesgotável da pele
roxa a boca como gloriosa gôndola
consumindo-se na gusa dos sentidos

7

a construção é um espaço descoberto
o movimento lapidado das formas
difusas cicatrizes onde o amor flutua
mastigando as águas como unguento,

as crias dormem com as mãos acesas
fogueiras aprendendo a rota do voo
que reúne em si o vazio e a plenitude


9

a fera avassalada desafia as escorvas
fincadas na fêmea afeiçoada no fogo
escondido o tempo da memória barbital
pura reverberação do coração arqueado.

as águas do rio declinam as vozes
ancestrais como cometas fulminantes
esculpindo cada fruto como hulha viva.

(Poemas de João Rasteiro, do livro Pedro e Inês ou As Madrugadas Esculpidas. Lisboa: Apenas Livros Editora, 2009.)

QUATRO POEMAS DE JORGE MELÍCIAS

Trabalho a crueldade
pelo lado da exuberância.

Como instigando a carne
à vernação das goivas.

* * *

A chacina é uma indução
à espera do seu tempo.

Sobre esse propósito
estabeleço-me unívoco.

E onde cães e homens
disputam a carniça
à lisura dos ossos

inscrevo a consolação.

* * *

Adestramos na carne
os estrepes do horror.

E pela elocução do medo
inferimos da consolação:

só o ferro
remirá em si a ferida.

* * *

Vi o relâmpago disposto pelas traves
como uma plaina ao desvario sobre as córneas.

Os ganchos com a sua incisiva
mecânica de clarões.

Vi o cutelo. E a percussão

era uma cegueira decantada.

(Do livro Disrupção. Maia: Cosmorama, 2008)

POETAS DE MACAU (VII)


EXALTAÇÃO DAS TARDES

o sol cai, ouro líquido,
nos lagos de Nam Van
o céu atrás do leque de água
jade e nácar da neblina.

o chá verde, um aroma
e a música que fazes,
rosto e timbre da tarde.

LIÇÃO DE CHÁ

o corpo dela tinha um pacto
com a seda púrpura, vermelha às vezes

a orla do chá na taça, disse o mestre
deve brilhar como um anel.

CHÁ VERDE

pelo olho da libélula
e pelo cão andaluz
pela ladainha em sânscrito
pelo buço de Frida Kahlo
pelos juncos do Rio do Oeste
por um estilhaço de luz
pelos lábios de Hui Neng
pela orquídea de Gong Bei
na cabaia de veludo
debruada a carmim cru
pelo raio de lua no leque
pela insônia do chá
pelos teus cabelos de ébano
derramados no meu colo
pela tua rosa heráldica
nas noites brancas do delta
pela fria, muda espera
das noites quando não vens
pelo eco dos pregões
no pátio do perdedor
pelos noventa guerreiros
que hão-de vir em dois mil
exorcizar os arcanjos
das bandeiras cor de anil
pelas folhas de baniana
pela raiz do ginseng
pelo teu corpo nu dormindo
na madrugada intocado
pela iminência do adeus
pelas asas do pavor
de acordar e não te ver
pela cabaia de damasco
cor de fúcsia e açafrão
pelos bambus em contra-luz
pelo templo de Tou-Tei
quando partir, ficarei
nunca irei quando me for

(Poemas do livro Chá Verde, de Fernanda Dias. Círculo dos Amigos da Cultura de Macau, 2002.)

TRÊS POEMAS DE SÉRGIO MEDEIROS

ESPUMA...

O escritor Henri Michaux disse que pôs sobre a sua mesa uma maçã. Então ele entrou na maçã.

Quelle tranquillité!

Invadiu a maçã com o seu corpanzil ou foi a maçã que o “devorou”?

Areia movediça? Espuma ou esponja onde se afunda e flutua? Onde se fica também cristalizado?

É paz. Ou horror. O próprio Michaux inicialmente ficou congelado dentro da maçã: Quand j’arrivai dans la pomme, j’étais glacé. Em inglês isso seria: When I arrived inside the apple, I was frozen.

(Como será essa experiência em outras circunstâncias? Numa feira livre entra-se numa maçã que alguém amável ou odioso comprará. Ou que muitas mãos anônimas tocarão nesse mesmo dia. A maçã toma sol e se revela terrivelmente efervescente.)

James Joyce menciona o suave aroma que escapava de uma escrivaninha aberta: o cheiro de uma maçã muito madura ali esquecida. Ou de um vidro de goma arábica. Ou de lápis de cedro novos.


DÉCOR

— as folhas mortas e submersas se aproximam mais do ralo do que as bolhas que se aglomeram na água da chuva.


UM CASAL...

O casal ia de bicicleta. Ou voltava a pé para casa. Caminhando ao lado de imensos formigueiros. Como túmulos que a vista não abarcava. Num dado momento eles se sentam lado a lado num tronco caído na beira da estrada. A moça é índia ou japonesa e o rapaz espanhol.

A garota explica que ele é feio.

Ele mal consegue balbuciar alguma coisa. Examina a máquina fotográfica.

O tronco é um ninho de formigas e a garota salta gritando.

O rapaz se levanta calmamente e passa a mão no traseiro e depois nas pernas.

A garota se despe atrás de um arbusto.


(Do livro Sexo Vegetal. São Paulo: Iluminuras, 2009.)

DIÁRIO DE UM LEITOR

Caros, tenho de ler vinte obras de literatura portuguesa até o final do ano, para prestar o exame de ingresso no doutorado na USP. Desde os cancioneiros dos trovadores, Os Lusíadas de Camões, Gil Vicente, Padre Vieira, até Herberto Helder e Saramago. Por um lado, esse é um “castigo” quase tão terrível quanto ficar preso numa cela com Angelina Jolie durante uma semana. Por outro lado, tira o meu tempo para outras leituras. O pior de tudo é que estou recebendo muita coisa boa, enviada pelos amigos: Sérgio Medeiros enviou-me o seu livro de poemas mais recente, Sexo Vegetal, um dos trabalhos mais originais de nossa poesia mais recente; Jacineide Travassos, que encontrei em Recife, entregou-me o seu belo Livro dos Ventos; os mexicanos Rodolfo Mata e Ernesto Lumbreras, que encontrei num café em Sampa, presentearam-me com Temporal (livro de Rodolfo) e Caballos en praderas magentas (livro de Ernesto); o português Jorge Melícias enviou-me, há tempos, uma reunião de sua obra poética, intitulada Disrupção; ainda de Portugal, recebi vários títulos de João Rasteiro e Casimiro de Brito; e a Mônica Simas deu-me várias preciosidades, como os poemas de Gao Ge traduzidos por Fernanda Dias (ela própria uma das poetas mais notáveis de Macau, autora de livros como Chá Verde) e um importante livro de sua autoria, Margem do destino: Macau e a literatura em língua portuguesa. Recebi vários outros livros, que não citarei aqui (correndo o risco da injustiça), pois a lista seria longa. Claro que será impossível para mim ler e comentar tudo; só Os Lusíadas já exigem a minha atenção integral há dois meses, uma vez que é leitura que exige consulta constante a dicionários, enciclopédias e obras de referência, para o entendimento mínimo das centenas de referências e citações feitas no poema. Porém, aos poucos, irei comentando na Pele de Lontra algumas coisas interessantes que tenho lido, rápida e esparsamente, enquanto almoço ou tomo o café (hábito incorporado há alguns anos, comer lendo poesia, ou será ler comendo poesia?). Por fim: soube hoje, pela amiga Virna Teixeira, que perdemos 90% da obra de Hélio Oiticica num incêndio ocorrido no Rio de Janeiro, incluindo bólides, parangolés, livros, quadros, filmes e outros documentos e objetos produzidos pelo artista. É um dia de luto para a cultura brasileira (vale a pena perguntar: o que aconteria na França se um incêndio destruísse 90% da obra de Marcel Duchamp, por exemplo?). Confiram um belo poema de protesto publicado por Marcelo Sahea em seu blog, na lista de links ao lado.

Besos,

CD

POETAS DE MACAU (VI)

UMA CASA CHINESA

Junto à entrada está o deus-porteiro
Que não deixa entrar diabos e ladrões.
E àquele que abra e saia dos portões
Assegura que volte são e inteiro.

Na sala está o buda folgazão
Enchendo a casa de luz da alegria
e p’ra que nunca falte o arroz do dia
Na cozinha está o deus do fogão.

Trabalha o patrão numa grande mesa
E entre ábacos e livros aos montões
Majestoso se ergue o deus da riqueza.

Na alcova está a deusa das paixões
Para dar ao casal toda a certeza
De dar ao seu lar novas gerações.

(Poema de Leonel Alves)


MURO

Tijolos
tijolos vermelhos
levantaram
um
m
u
r
o
separando o mundo em
por dentro do muro
por fora do muro

O muro
cujo lado interior era vermelho
cujo lado exterior era vermelho também
Mas alguém
pintou com cal
o seu lado interior e o seu lado exterior
e depois pinta-o
de outra cor

(Poema de Wei Ming, traduzido por Yao Jingming)

POETAS DE MACAU (V)

IMUNIDADE

Antes
amar era um risco
tal como a seiva venenosa do oloendro
ao tocar na ponta de um dedo
se uma pequena ferida tivesse
poderia matar a vida

Hoje
amar é um hábito
tal como o mestre que provou mil ervas medicinais
é capaz de resistir aos efeitos venenosos
Com esta imunidade
amar já é uma aventura com antídoto

(Poema de Yi Ling, traduzido por Yao Jingming)


CASA DE PENHOR

Um morcego voa
e apanha uma moeda de cobre
conduz os miseráveis para dentro da porta
O condutor é cego

Logo que um miserável entra
esconde-se por detrás do biombo
Até os seus objetos
embrulhados em folhas de um jornal já lido
são de vergonha

Entre o biombo de madeira e o balcão
entre os objetos e o recibo de penhor
os miseráveis ficam mais miseráveis

A quem interessa
outro biombo que oculte a sociedade?

(Poema de Han Mu, traduzido por Yao Jingming)

POETAS DE MACAU (IV)

MEI CHIT LAI

Era lichia
toda ela.
Branca
translúcida
trêmula
estranha
cheirava a rosas passadas.

Sorvi-a num trago
e arrependi-me.

Faltou-me o sentido da eternidade
e perdi-a,
num só gesto,
naquele instante.

Xian, 1989

(Poema de Carlos Marreiros)

POETAS DE MACAU (III)

QUADRO DE MACAU ANTIGO

Macau envelhecido nas fachadas;
rostos, aquarelas nos postigos;
luzes, sombras; contrastes muito antigos;
fios, gaiolas, roupas penduradas.

Becos, pátios, lúgubres escadas;
o mahjong e o chá para os amigos;
divindades, incensos e formigas,
em volta das comidas ofertadas.

Um recorte de igreja ou de pagode!
brisas de ventoinhas, velharias;
sons, odores; mistura de hino e ode!

Mas já o camartelo está à espreita!
O passado a morrer sem poesia
e o futuro sem alma satisfeita!

(Poema de Antônio Correia)

POETAS DE MACAU (II)

OLHANDO A LUA, NA MINHA MONTANHA

Se um dia um búfalo subir até a lua
Será decerto o meu pequeno búfalo
E quando ele voar, sem dúvida será
O dia do Festival do Meio do Outono
Tal como eu o recordo claramente
Alguém que deixa a montanha e olha para trás
Há um salgueiro imenso que lhe acena
No alto do salgueiro está o pequeno búfalo do pastor
É sempre a meio do Outono que ele sobe para a lua
Em cada Outono alguém estará partindo para longe
Atravessando oito mil milhas em trinta anos
Quem sabe, se quando vejo o luar do topo da montanha
No alto do salgueiro, lá está o búfalo estelar
O mesmo de quando eu era menino

PINTURA SUSPENSA

Onde, o lado indiscernível
Da montanha sagrada?
Ilhas de sonho

Na esfera azul
Nuvens e névoa
Descem, lentíssimas
Até sumir
Uma
A
Uma
No seio do lótus branco
Lótus branco
Lótus branco
Lótus branco
Lótus branco

(Dois poemas de Gao Ge, traduzidos por Fernanda Dias)

DIÁRIO DE UM DESEMPREGADO

Caros, estou há exatamente nove meses sem emprego. Tenho 46 anos, e nunca em minha vida eu fiquei tanto tempo sem trabalho. O meu curriculum está no Catho, mas só tive duas entrevistas até agora. Busco vagas de revisor, preparador de textos, redator, editor assistente, professor de literatura, e nada. Além da idade “avançada” (quá quá quá), o meu curriculum é pouco competitivo justamente porque eu tenho mais experiência: por incrível que pareça, 80% das vagas que aparecem no Catho, nessas áreas, são para estudantes ou recém-formados, pois as empresas têm a cara-de-pau de oferecer salários de R$ 500,00 a R$ 1 mil... parece piada, mas é verdade.

Já me cadastrei no Trabalhe Conosco dos sites de dezenas de empresas e sempre consulto os cadernos de empregos aos domingos. Tudo o que consegui, até hoje, foram uns poucos frilas que não cobrem 30% de minhas despesas (e já cancelei o curso de natação de meu filho, o meu curso de Tui Sou, reduzi as compras de supermercado, cortei despesas em tudo o que se possa imaginar, mas a minha despesa mensal ainda é alta: pago aluguel, escola de filho e zilhões de outras coisas que vocês sabem muito bem).

O que eu posso fazer, para evitar a depressão ou um surto homicida, é estudar literatura portuguesa (releio os trovadores, Gil Vicente, Padre Vieira, Camões, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Sá-Carneiro, Herberto Helder etc.), para fazer os exames de ingresso ao doutorado, em 2010, e praticar, regularmente, Tai Chi e Aikidô, que fortalecem meu corpo e espírito. Revejo os filmes de que gosto no DVD, ouço jazz, óperas de Wagner, curto a família, como se estivesse num longo período de férias. Porém, a situação está por um fio: minhas reservas financeiras acabaram, já estou operando no vermelho e logo terei de fazer empréstimos apenas para pagar as contas em dia (e claro que depois não terei como pagar os empréstimos; ainda existe prisão por dívidas?). Enfim, meus caros, é o caos. Se alguém souber de vaga em algum lugar, mesmo fora de São Paulo, por favor, me fale.

Mavimpi,

Claudio

DIÁRIO DE UM VIAJANTE (II)

Caros, estive em Recife, entre os dias 03 e 06 de outubro, participando da VII Bienal Internacional do Livro. Realizei palestras sobre o neobarroco e a poesia brasileira contemporânea e um minicurso do Laboratório de Criação Poética. Fiquei surpreso com a presença do público, que superou minhas expectativas. Dei uma entrevista para a TV Globo local (!) e encontrei amigos queridos como Delmo Montenegro, Jacineide Travassos (que lançou o Livro dos Ventos), Pedro Américo & Alice, Daniel Sampaio, Amador Ribeiro Neto, Homero Fonseca e Marcius Cortez. Esta é a terceira vez que visitei a capital pernambucana, onde sempre fui recebido com atenção e carinho. Não pude ir à praia, infelizmente, nem a João Pessoa ou a Olinda, uma lástima, mas pelo menos fiz um bom passeio no centro histórico da cidade, incluindo o tour pelas igrejas barrocas, especialmente a Capela Dourada, da Ordem Terceira de São Francisco do Recife, com sua bela arquitetura do século XVII. Não sou cristão, e raras vezes senti a presença espiritual em igrejas católicas (talvez por conhecer tão bem seu passado de inquisições e cruzadas), mas confesso que sempre tive uma afinidade com os fransciscanos, e senti-me muito bem nesse local. No fim do mês, farei nova viagem, agora para Santo Domingo, capital da República Dominicana, onde participarei, como convidado, de um festival literário. Até lá, preciso colocar a vida em ordem, começar a editar a nova edição da Zunái, fazer as leituras para o exame de ingresso ao doutorado e, sobretudo, continuar procurando emprego. Minha situação econômica está próxima à falência; se não arrumar algo até o fim do ano, não sei o que vai acontecer. Cantem mantras por mim.

Besos,

CD

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

DIÁRIO DE UM VIAJANTE

Caros, estarei em Recife entre os dias 03 e 06 de outubro, participando da Bienal Internacional do Livro, onde vou ministrar um curso do Laboratório de Criação Poética nos dias 04 (domingo) e 05 (segunda-feira), das 10 às 12h, no Palco das Idéias. No dia 04, às 15h30, também participarei de uma mesa sobre Literatura Hispano-americana com a profa. Renata Arruda, e no dia 05, às 20h30, estarei numa mesa sobre a novíssima poesia brasileira com o Daniel Sampaio e a Jacineide Travassos. Se sobrar tempo, darei um pulo em Olinda para ver igrejas barrocas e comer um peixe com molho de camarão no Mirante. Na volta, contarei novidades!

Besos,

CD