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golpes lentos no final da chuva
que se espraia fina sob a garganta
cozida no cio ancestral dos corpos
esculpidos nas linguagens do pólen,
pelo sopro inesgotável da pele
roxa a boca como gloriosa gôndola
consumindo-se na gusa dos sentidos
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a construção é um espaço descoberto
o movimento lapidado das formas
difusas cicatrizes onde o amor flutua
mastigando as águas como unguento,
as crias dormem com as mãos acesas
fogueiras aprendendo a rota do voo
que reúne em si o vazio e a plenitude
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a fera avassalada desafia as escorvas
fincadas na fêmea afeiçoada no fogo
escondido o tempo da memória barbital
pura reverberação do coração arqueado.
as águas do rio declinam as vozes
ancestrais como cometas fulminantes
esculpindo cada fruto como hulha viva.
(Poemas de João Rasteiro, do livro Pedro e Inês ou As Madrugadas Esculpidas. Lisboa: Apenas Livros Editora, 2009.)
Pedro e Inês ou As Madrugadas Esculpidas é um poema longo de João Rasteiro dividido em 24 partes, cada uma delas dividida em duas estrofes, um quarteto e um terceto, de métrica variável, que retoma a história trágica de Inês de Castro, aquela que “depois de morta foi rainha”, conforme diz Camões no episódio dos Lusíadas em que trata dessa história. Rasteiro recria a trama de modo bastante sutil e rarefeito, quase ocultando os personagens e acontecimentos numa linguagem elaborada, próxima à abstração da música; é uma escrita ao mesmo tempo tradicional e moderna, que dialoga com a tradição da literatura portuguesa e responde ao desafio de Edgar Allan Poe sobre a impossibilidade do poema longo na era contemporânea (curiosamente, as obras mais características da modernidade, como a Terra Devastada de Eliot ou Os Cantos de Pound, norte-americanos como Poe, são poemas longos...). Este livro de João cheio de música, símbolos e imaginário, merece ser lido por sua consistência e originalidade.
ResponderExcluirMeu caro Claudio, logicamente fico bastante contente por gostares do livro "Pedro e Inês ou As Madrugadas Esculpidas".
ResponderExcluirÉ um livro que embora eu tenha revisto antes da publicação, tem o essencial do seu "corpus" escrito em 2005.
Sendo o tema em si, já um desafio daqueles que impõe respeito, uma vez que não é fácil partir do principio que se conseguirá de alguma forma ser inovador, com um tema desmesuradamente lido, escrito, reescrito, para mais, tendo um suporte quase sempre da grande tradição da lírica portuguesa.
Assim, sem muita pretensão (ou talvez, com aquela que todo o poeta sempre tem lá no seu intimo) tentei, não só como muito bem referes, colocar como essencial a abstracção, suportada num processo formal interno (dentro da ilusão lírica - quarteto e terceto), que vai, não só no seu encadeamento e talvez até através de alguma imagética, construir, ou até posso dizer, desconstruir, todo o processo lírico inerente ao mito, daí, e apesar de o título nos parecer uma espécie de redundância, como realça de forma magnífica o Prof. Dr. José Carlos Seabra Pereira, "madrugadas e esculpidas e esculpidas, actuam como lançamento de duas isotopias fundamentais da subsequente digressão lírica: a isotopia futurante da fecundidade - pelo amor e pela beleza - e a isotopia da consagração memorial - pela arte". E talvez seja essa pretensão que lá no fundo eu tive/tenho, que o mito de Inês, aquela que depois de morte foi rainha (aquela a quem a literatura deu a coroa de rainha, a coroa que D. Pedro já tinha determinado colocar em sua e nossa rainha) continue a ser esculpida todas as madrugadas em que a sílaba acesa ainda anseia ser aquela "que quis decifrar o destino da sílaba".
Desculpa ter-me alongado, mas entusiasmei-me com o teu comentário. Mais uma vez agradeço e reafirmo a satisfação por teres lido, gostado e analisado de forma bastante próxima do odor do verbo.
Um abraço de Coimbra,
João Rasteiro