sábado, 28 de fevereiro de 2009

UM POEMA DE DELMO MONTENEGRO

LINCE-LARVAL

sob o livro nunca /

a
língua exangue
(coração-
aborto
: cloaca
vômito linhaça


cai

)

desfeita (massa cal-cadáver
: gozo-placebo

a preta
obra amoníaca

sal de fumos
:

carcaça
escrita

sai

)

vade-mecum-apostasia
vade-mecum
pancreator


a
língua
em estado

de demência


(se contrai)


(Poema do livro Ciao cadáver. São Paulo: Landy, 2005)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

ÚLTIMAS NOTÍCIAS














Caros, a revista eletrônica Psicanálise & Barroco está em sua décima-segunda edição e publicou um caderno de poesia neobarroca brasileira, organizado por mim e pelo Vinícius Mendes, que traz poemas de Josely Vianna Baptista, Wilson Bueno, Horácio Costa, Elson Fróes, Eduardo Jorge, Ana Maria Ramiro e Claudio Daniel. Confiram no endereço www.psicanaliseebarroco.pro.br/revista.

POEMAS DE ANDRÉA CATRÓPA

AZUL-MARINHO

o som das algas
ondulando a respiração
silenciosa dos peixes — ela deslizava
no sono mais velho que relógios rumo
às cordilheiras marinhas para encontrar
tímpanos ecos de cantigas pálpebras fotografias de entranhas


ATO COMPULSIVO N. 3.008.011.974

o prazer ilícito de partir ossos (mesmo que já um pouco
apodrecidos pela chuva) — as pontas que cercam
seus muros — a dor auto-infligida de abortar o outro,
colocar o outro no centro do palco que se
transfigura em arena para descarnar
a fala



“não me reconheço”


O SEM-NOME

vermelho-laca com grandes brasas por detrás dos olhos,
os cães ouviram o assobio,
o homem ouviu — lhe disseram é o que anda sem os pés,
o que se esgueira por entre as copas de árvores e não
é cobra
e virá

encarnado é texto, oração, pensamento,

desencarnado é sangue, suor, frio na espinha, a ameaça
da terra, o chão.


(Poemas do livro Mergulho às avessas. Bauru: Lumme Editor, Selo Caixa Preta, 2008)

DOIS POEMAS DE NICOLLAS RANIERI

CENA

o ar queima
o mar arde
borboletas
cospem larvas
dragões vomitam
infernos
universos
sóis implodem

silêncio

uma mulher
se despe
se masturba
da vulva
às
vísceras

TENTAÇÃO

metais
elípticos
entre pêlos
de tigres
espinhos
venenos
facas afiadas
fio por fio
no rosto
da amada
faces que
falecem
rastros de
urânio em
explosão
rastros de
um crânio
supernovas
na terra
fendas es
feras aves
saindo e
entrando
ilusões de
um lagarto
no oceano

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

DOIS POEMAS DE ANDRÉ DICK

ONDE

onde a orquídea
se inscreve

cores desbotadas
papéis de parede
descascam

nenhuma claridade
janela aberta
para a rua

outra estação
à flor da pele
de outra chuva


NENHUM TRAÇO

riscar nenhum traço
vestígio de dias —

enquanto
olhos desenham
da janela

alguém que passa
sem fazer ruído

manhã de silêncio
entre lacunas

vaso que harmoniza
outra chuva de verão


(Do livro Grafias. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2002)

DOIS POEMAS DE VIRNA TEIXEIRA

CONVERSA

entre sombras de
árvores, a noite

relva, onde
pesadas as
palavras

desabam, como
frutos

pequenas equimoses
sob as
polpas.


* * *

Eu estou morrendo, ele disse.

O lápis verde escorrendo sob as pálpebras.

O que é ilusão nas horas transitórias.

Neste barco náufrago, atrás desta murada.

My little boy. Do what you want.

Os vultos na pista da dança. A música do Depeche Mode.

A fila interminável do banheiro sujo.

Uma cortina vermelha. Lá fora túneis, automóveis.

As manhãs também.

Empalidecem.

(Poemas do livro Distância. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

DOIS POEMAS DE LÍGIA DABUL


PROFISSÃO

O que posso
do máximo:

asa de borboleta e
alfinete
no feltro verde de uma música.

Isso tudo depois da manhã,
mais para o final da tarde.


LACRE

Pó por todos os lados
mas as folhas são
de água dentro. Vai.
No meio de pedras
tem um líquido, então
abre, ele pedia. Não
chove há tempos.
Do viaduto sobe
essa poeira: Abre,
chove agora. Não é de
lama a resina. A peça
delgada, lamelosa,
primeiro. Anda,
até nas pedras tem.
Olha eu mesmo,
ensangüentando.
Pode ser uma flor
molhada - eu disse
assim como um óleo
de freio, para depois
abrir.

(Do livro inédito Nave.)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

UM POEMA DE MICHELINY VERUNSCHK

O QUE DIZEM OS GIRASSÓIS SOBRE A MORTE

Eles vestiram
suas roupas sujas
e saíram de casa
e suas mãos
se desmanchando
em linhas de sangue
borraram a lã dos cordeiros
e as amendoeiras.
Nossas tias lamentavam a lua,
o tapete que teciam,
a voz de esmeralda
da menina caída no poço.
Eles não sabiam,
mas estávamos lá.
Bebemos em silêncio
o sêmen ainda quente do morto.

POEMAS DE DANIELA OSVALD RAMOS

DO CADERNO V

não me interessa mais a dor
não nem a ferida amarela com
bordas vermelhas nós na mesma
corda que ascende em torno da
imagem fluida palavras estão
antes

*
ascende em espiral em torno
da imagem central nós da mesma
corda bordas em momentos distintos

*

Acender a corda botar fogo
do primeiro ao último andar
um caminho amarelo vermelho
delicado em álcool fino

*
Consciente do peso
sobre a mesa sob o corpo

conceda-me esta trança
senhor o toque é bom
entra por baixo
sai no escanteio

*
A grafia está correta, pode
botar tudo que está molhado e
úmido no túnel hermético fechado
calêndula dentro confere menos dor
a esta relação

*
não estou aqui para pornografias
seios a descoberto e tudo isso
apaga tudo afinal quem somos nós
nada pó branco na madrugada

UM POEMA DE LEONARDO GANDOLFI

NÃO CANTE VITÓRIA ANTES DO TEMPO

Tête-à-tête – uma voz em off –
não tanto pelo tiro, mas por um passado
de supressão, telegrafia e certezas.
A transparência, como dizem, se alimenta
da falta de esperança e da contingência.
I could make your business my business.
É que, como a música, a fotografia
tem vivido tempos bem agitados. Como assim?
De novo vão querer incriminar o mordomo?
You wouldn’t like it, the pay’s too small.
Até chegar ao verso acima fui deixando um pouco
de tudo, lugares e amigos, principalmente.
Isso mesmo – nossa gratidão é imensa, queimará.
Negativo – já não posso fazer nada a alguém
cuja vida tem sido regressar ao mesmo ponto.

(Poema do livro inédito Os espiões aflitos)

DOIS POEMAS DE MARÍLIA KUBOTA


BILHETE DE AMOR

a ausência é insuportável
a presença insuportável
entre estar e não o silêncio
fabrica sombras:
poeira na calçada,
o namorado morde o seio
da namorada,
a evocação da anedota.

isto é ir enchendo
o corpo, enchendo
com voz ausente
para arrebatá-lo
a seguir

***

insuportável o jogo do silêncio
ele está vencendo
pousado o tempo sinônimo de morte

o elegante esgarçado anima rodas
abomina a cidade imóvel

nada acontece aqui em noviorque
em paris bogotá em arcoverde
para a violência do girassol andante

tudo acontece no filó da flor
a cor magnífica extenuantes pétalas
olhar embevecido estonteado
como quem perde o controle
e despe armas despede o conhecido

UM POEMA DE THIAGO PONCE DE MORAES

COMO DAS NUVENS O TEU RAIO

Há em teu rosto inerte
Algo de hieroglífico (de
Indecifrável) que por todo
Instante basta.

Há em teu rosto algo
Que também passeia pelas
Tuas mãos – há uma renúncia
Trágica que não alude a nada.

E como quem sabe das palavras
Mas limita-se a sorrir,
Deixas de teu rosto Algo
E as memórias ermas daquele

Verão em que escrevias, propondo,
Pois, tuas feições por horas:
Desejo mais ver
Do que dizer.


(Poema de um livro inédito de Thiago Ponce de Moraes. Excelente, aliás.)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

UM POEMA DE EDUARDO JORGE

FUNÂMBULO COMO SE ELÁSTICO

2

fina linha era
sobre a cidade: cabelo-fio

equilíbrio (a partir
do ponto zero do esforço:

móbile aéreo fluirá
a cor — algo entre
bolchevique e bodisatva

dautonismo milênio este

phoros — luz ou buzina
algo entre som e sentido:
o espaço na lona, silente
elástico:

o fio deixado, do cabelo
a diante passava fino e cego,
como o branco, o opaco
destes olhos.

(Poema de Eduardo Jorge, publicado no livro Espaçaria. Lumme Editor, 2007.)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

UM POEMA DE CARLOS BESEN

DESARVORAR PELA ÁGUA

Os pés peneiram água
entre os dedos.
Carcaça sem afundar,
carrego-me ao fundo
sem pouso nem feudo.
Afogo sem raízes,
o mar me devolve
aborrecido.

* * *
A corrente marinha
não golpeia a ferro.
Perco o alfabeto
nos traços da alga.
Anoto sem disciplina
o vôo da espuma.

* * *
Plana como agulha,
a linha do horizonte
produz lábia
com lábios de concha:
o mar desequilibra,
sol na visão da faca.
Os peixes pulam
como bolha devolvida,
como se desviassem
uma punhalada.

* * *
Abordado pelas garras
alcalinas da água,
os dedos me costuram
à pasta da areia.
Aluno oblíquo,
aprendo a ser árvore.

UM POEMA DE SÉRGIO MEDEIROS



KAPOOR

O sol estava sujo, ou parecia, na rua e na calçada. Havia um sopro gasto e fixo ali, entre crianças deformadas.

Entramos, éramos três. Frescas sombras e claridades, como numa biblioteca imponente, com guardas. Eis que:

A névoa desce e se debate embaixo /
ou a névoa sobe e seus pés
somem, enquanto sua cabeleira,
no alto, enleia-se
na arquitetura...

O esqueleto da névoa
é como um...
vácuo longuíssimo
que, escurecendo,
se esconde no seu sopro alvo...

A névoa é um dedo
tocando o teto / ou
unha imensa de um dedo
grosso...
fincado no chão...

(Ao redor, sempre para
cima: as paredes não falam,
mas têm pomo-de-adão
acentuado / diante do espelho,
nossos reflexos esmigalhados voam para
todos os lados, como bandos
de pássaros velozes.)


(Poema incluído na antologia de poesia brasileira contemporânea Todo começo é involuntário, que espero publicar neste ano.)

DOIS POEMAS DE ANA MARIA RAMIRO



ERUPÇÃO

O
toque
rarefato,

primeiro feixe sobre
a retina

interiores despertos
por signos voláteis

surda infusão, perceber
o branco, fragmentá-lo
em faces

sorrateiro e túrgido, um seio,
um veio de ouro, um braço
corre feito cavalo insone

libélulas arfam

incongruências, gravar o magma
em imóveis andores,
lapidar os escombros

para que, altaneira,
a folha paire ilesa
e se vista de orvalho.


ECDISE

no deserto da pele

um nome singular é
invocado, ignora estirpe,
molda uma nova
forma (escama)

ruínas córneas se ar-
rastam

o trajeto (bifurcado) separa pedro
de pedra, pretere
paternidades

no deserto da pele (sinuosa)

uma jóia desliza
nua

(Do livro inédito Fronteiras da pele, de Ana Maria Ramiro, a sair pela Lumme Editor, no Selo Caixa Preta.)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

LETRA NEGRA (XXVIII)

esta é a maneira de sermos brutais,
com a aspereza
de quem caminha
pelas ruas,
mascando lascas.

não preciso dar explicações
com palavras de madeira,
porque sou impuro
e espontâneo
como a fera.

esta é minha sombra magra, confesso,
estes, os meus passos desordenados.

nenhuma estrela para definir o dramatismo da noite
ao longo da jornada,
nem os ramos
de uma árvore inclinada.

quem considere imprecisa a descrição,
que escreva o seu próprio
rascunho,
com a fúria
violeta
do escaravelho.

sem contar nove vezes
menos um eco,
sigo minha jornada bípede,
de energúmeno.

nada aqui faz sentido para os meus lábios
vociferantes;

e como não venero
deuses de esterco,
nem as clausuras
cíclicas da história,

sigo andando
com minhas omoplatas,
minhas axilas,
meu caralho,

minha testa
desenhada
com símbolos alquímicos,

e um poema
escrito para ninguém
nas linhas torcidas
de meus pulsos.

UM POEMA DE EZRA POUND

E ASSIM EM NÍNIVE

"Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

"Veja! não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul."

Não é, Ruaana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho."

(Tradução de Augusto de Campos)

LETRA NEGRA (XXV a XXVII)

XXV

— alguma vez (inseto oculto na caixa de sândalo) foi possível?

ou seria (o livro de Heráclito aberto ao acaso) mera arquitetura

do imaginário (peixeazul afunda no tanque de outono)?


XXVI

esqueletos da noite

esfiapam farpas

nuncas de caranguejos

arranham órbitas

investidas em vogais:

noite é o nome da ferida

noite é o nome de nunca

onde queimam palavras,

silêncios, ódios, parietais:

ferida é o nome de nunca mais.


XXVII

caranguejos da noite

arranham farpas

esfiapam silêncios

em órbitas de vogais

parietais de esqueletos

investidos de ódios

em onde de nuncas:

noite é a ferida do nome

noite é queimam palavras

ferida é nunca de nunca mais

domingo, 8 de fevereiro de 2009


Caros, no dia 11 de fevereiro, quarta-feira, a partir das 19h, estarei participando de um debate sobre a situação da poesia na sociedade de consumo, num local aliás bem apropriado ao tema: a livraria Saraiva Mega Store do Shopping Center Ibirapuera. O evento é organizado pelo escritor Nelson de Oliveira, e estarão presentes na mesa, junto comigo, o Ademir Assunção, Edson Cruz (editor da Cronópios), João Bosco Bezerra Bonfim e Elisa Andrade Buzzo. Quem puder dar um pulinho lá, apareça!

LETRA NEGRA (XXII a XXIV)

XXII

descontínua realidade mandíbula de mamute ou mandala.

XXIII

águas coléricas
nas folhas,

esqueletos
de carros

convertidos
em rasuras,

cão desenterra
secas cabeças
de cogumelos

— fragmentos
de metáforas
podres:

paisagem
que se transfigura
e definha

entre uma
respiração
e um breve piscar
de pálpebras.

XXIV

c o n s i d e r e a e s t r u t u r a d o o l h o, s u a l ó g i c a e s f é r
i c a; a j u s t a p o s i ç ã o d e c o n j u n t i v a, í r i s, c ó r n e a, r
e t i n a, c r i s t a l i n o, e m c a m a d a s f i b r o s a s i n t e r l i g
a d a s n u m a r e d e; c o n s i d e r e a c a p t a ç ã o d e c o r e s,
l i n h a s e f o r m a s n a s m e m b r a n a s ó p t i c a s, o a l c a n
c e d a v i s ã o n o e s p a ç o p o l i d i m e n s i o n a l e o f l u i r
e r e f l u i r d a s i m a g e n s n o t e m p o a t é a c o m p l e t a
d e s a p a r i ç ã o d a p a i s a g e m.

LETRA NEGRA (XIX a XXI)

XIX

a q u i u m c a m a l e
ã o s e t r a n s f o r m
a e m á g u a, e m p e
i x e, e m l u z, e m s
o m b r a, e m n a d a.

XX

desofuscar seqüência de mamíferos

réptil noturno difrações de retráteis.

sede vegetal de especulares, corrosão,

grafias epidérmicas ao ignorado,

réptil noturno atravessa buceta nocaute.

XXI

desofuscar difrações epidérmicas

vegetal noturno grafias de retráteis.

corrosão, sede nocaute de especulares

seqüência de mamíferos ao ignorado,

vegetal noturno atravessa buceta réptil.

LETRA NEGRA (XIII a XVIII)

XIII

realidade: campo de improváveis simulando pólipos.

XIV

adensamento vermelhidão cróton membrana agulhas dentada desluzir devoluta infecção fraturas catatônica.

XV

musical porque desmesurada essa aparição amorfa agredida ou depurada até a corcunda justaposição de engano e enganos.

XVI

cavalo liquefeito captura epitélios úmbrica nudez sutura sutura.

XVII

dessemelhante, ilhas ávidas ao delinear a curvatura do coração.

XVIII

realidade: campo de improváveis simulando polvos.

LETRA NEGRA (XI e XII)

XI

porque só o raro me interessa, na era da banalidade.


XII

invento estranhos jogos, ó górgonas, busco uma saída para a insânia. crio nomes para as cores: azul é asmodeus, vermelho, belial, roxo, astaroth, branco, balam, violeta, astarté. alucino palavras até queimarem parietais, rótulas, tendões, nervos retorcidos em rude seqüência de mutações. renomeio teu corpo, matéria transfigurável, ao percorrê-lo de esperma: boca é amêijoa, dorso é fataça, vagina é lagamar, olhos são gavinhas, tetas são guantes, e assim até o extremo da pele. escrevo nomes para o teu nome: você é agramática majólica, replicante sexual, lince nervurada, ubíqua sulamita, ninfa alvaiade, náutila lupina, mielina menina da fronteira.

LETRA NEGRA (V a X)

V

“quando nada mais faz sentido” —
busco o mistério animal,
a ferocidade da noite:
deslizando por meus lábios,
ela se transforma, revoluta,
desentranhada, não me decifra,
não te devoro, abisma fábulas
na desordem dos cabelos,
entre pupilas, expandindo luas,
tensionando a pele, na cegueira dos mamilos.

VI

floresta de enganos, se me esmagam,
furiosos, com simulações,
é tua face que me escapa à pele;
se atravesso veredas infernais,
desalentado, paisagem de fraturas,
é apenas para encontrar-te,
tua imagem reversa é o meu labirinto.

VII

espaço vegetal, tempo lagarto:
mãos fluidas; voz movediça;
olhos de musgo, na pedra;
quem sou eu, nessa era líquida,
menos homem que número,
letra negra, fragmento do caos,
movendo-me à roda de teu nome?

VIII

flutuantes territórios
em que tudo é ambíguo;
larvais estatuetas, jades
instáveis, refratando ínferos.

IX

mulher-esfinge
disposta em meu sangue —
incisiva, configurada ao sol de duas faces,
quem é você, jardim, jaspe ou pesadelo,
serpe cabalística em cada unha,
tudo instável, tudo música e insanidade,
mas teu seio afundando em minha boca.

X

mulher-enigma
espelhada em meus ossos,
freqüentá-la, cada mistério,
umbigo e cabelos, de sua caligrafia
de reversos: inventá-la, reinventá-la
pétala, centaura, lupina, traquéia, tempestade.

LETRA NEGRA (I a IV)

I

escuto escuro — sombras surdas —
no espaço espesso
lodo torvo
de um tempo esquivo
em que começo e recomeço
o pugilato
comigo mesmo
luta ou luto
que me cega e segue
como treva ou trava
ao vento curvo.

II

verde é o segredo
verde é o silêncio

escrito em cicatriz
escrito em anti-flor-de-lis

— para a necessária
abolição de mim —

III

estou morto e não-morto
vértebras ao inverso
letras tontas
de um nome incerto
vocábulo equívoco
desfeito em água
— para a necessária
abolição de mim —
escuto espesso — sombras mudas —
no escuro escuro.

IV

nada me aquieta
entre espectros
de palavras-coisas:

anêmonas trafegam
pensamentos rotos,
roídos até o muco

— eis a era desolada
de cortes e recortes
tempo-cutelo

no espaço lacerado
pele-de-lua violada
por línguas-gárgulas

lua-esfinge-macerada
por caninos cérberos:
tempo nigromante

— corvo corvo corvo
recrocitando escárnios.


(Fragmentos iniciais do poema-livro Letra negra, que comecei a escrever em janeiro de 2009.)