sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

POEMAS INÉDITOS DE CLAUDIO DANIEL

 


















KOANS

 

 

I

 

Para que lado sopra o vento?

A pálpebra

do olho.

A curva

do rio.

A bosta

do cavalo.

O silêncio

antes do grito

do galo.

 

II

 

Onde canta o uirapuru?

Embaixo

da nuvem

em forma

de gato.

No círculo

de pedras

no centro

do lago.

Na lágrima

do homem morto.

Uirapuru

já voou.

 

III

 

O que o surdo disse ao mudo?

Três quilos

de alcatra.

27 de maio.

A sexta cor

do arco-íris.

A urina do cão

no poste

da rua.

A mulher nua

no quarto ao lado.

 

IV

 

Qual é a palma de um só som?

 

V

 

Vivo ou morto?

Um pedaço

de estrume.

O martelo.

Dois loucos

cantam no parque.

Uma, duas,

três estrelas.

Peixes vermelhos.

A baba

que escorre

da boca

do velho.

Um rato

boiando

no balde.

 

VI

 

Onde está o pensamento?

Na caixa

de pregos.

Na toalha

da cozinha.

Na garrafa

de pinga.

Na casa

da bruxa.

No esqueleto

que canta.

No focinho

do porco-

espinho.

 

VII

 

Onde está o Buda?

Na cabeça

da chave

de fenda.

Na pata

amputada

do macaco.

Dentro

da noz.

No tabuleiro

de xadrez.

No bueiro

do esgoto.

No buraco

do rato.

No carrinho

de māo

vermelho.

No choro

do bebê

nāo-nascido.

 

 

VIII

 

A lua que aponta para o dedo não é a lua.

 

 

IX

 

A mente é uma caixa de esterco.

O monte

Sumeru

na cabeça

do alfinete.

Escorpiões

em cópula

na areia

da praia.

Qualquer coisa

entre o nunca

o sempre

o quase

e o nunca

visto.

 

X

 

O que é o nirvana?

Gato branco

gato preto

jogam bola

na sala de jantar.

 

XI

 

Afundar-se na nudez

essencial de Deus

é comer quando

se tem fome;

é dormir

quando se tem

sono;

 

 

2023

 

À memória de D. T. Suzuki e Thomas Merton

 

 LETRAS PEDROSAS

 Para Bruno Contardi

 

I

Caminho de pedras brancas

em Sāo Thomé;

lascas

assimétricas

ásperas

em trilhas

tortas;

pedras

em forma

de serpente;

nuvens

que simulam

ondas

de espuma

branca;

velho tronco

de galhos

retorcidos

que apontam

para

lugar

nenhum.

II

Tudo

tem olhos,

as folhas

o limo

as lascas;

fio de água

escorre

em rochas

negras

como madeira

queimada;

manchas brancas

de uma escrita

secreta

espraiam-se

como lepra

em pedras

e troncos.

Nuvens

concentram-se

como jorros

de esperma

sobre o verde

das colinas.

Estar aqui

como no centro

de uma galáxia.

 

2023

  

CABO FRIO

 

Cachos de flores amarelas

falésias, galhos,

conchas, líquens

na praia de areia fina;

barcos de pesca

em frente à linha

verde do mar.

Passos lentos

na orla diurna

voo fotográfico

de mergulhões.

Súbito, árvore caída

no meio do caminho

tronco coberto

de conchas brancas.

Quem já viu

a festa de Yemanjá

em Cabo Frio?

O canto das filhas

de mãe d’água

mistura-se ao azul

das ondas do céu.

De volta à cidade,

em frente à peixaria,

o magro gato cego

anseia pelo atum.

Morador de rua

diz boa noite

ao pássaro de outro nunca.

 

2023

  

A MULHER QUE MATOU OS PEIXES

nada sabia das ilhas japonesas,

de suas cachoeiras, rios e cascatas;

nunca reparou na beleza ondulante

dos pequenos dragões vermelhos

brancos, amarelos, prateados

nem viu as “imagens do mundo flutuante”

pintadas em gravuras de madeira coloridas

nem as pipas em formato de peixe

hasteadas por meninos em dias festivos;

a mulher que matou os peixes

nada sabia sobre as antigas histórias

que as avós japonesas contavam aos  netos:

que as carpas nadavam contra a correnteza

saltavam cascatas e até mesmo montanhas

para depositarem os seus ovos

e por isso dizia-se que eram dragões.

Não, a néscia nada sabia dessas histórias

e mesmo que soubesse, não faria diferença:

ela só queria roubar as pequenas moedas

jogadas por turistas no lago do Palácio.

 

2023