(Ária de Wolfram)
Tudo é um livro de viagens. Com fotografias de meninos e cavalos-marinhos, pássaros e pianos, garrafas de cerveja e pincéis. Sempre é possível, no pequeno barracão de feira, brincar de marinheiro e esgrimista. Tatuar o torso da formiga ou masturbar-se em jornais velhos. Assobiar outro noturno de Chopin. Incendiar uma lágrima. Jardins e camaleões, pérolas e madrepérolas, tudo são palavras secretas. Vivemos na encantação. Somos todos peles-vermelhas, girafas sonâmbulas, relógios mecânicos, vagões de metrô. Quando eu era adolescente, tracei com o canivete círculos na face. O meu nome então era “Eu Sou o Enforcado”. Usava brincos de ouro nas orelhas e um lenço vermelho sobre a testa. Gostava de calças velhas, blusões de couro e pesados coturnos. Amava fantasiar-me de cigano, bucaneiro ou tuaregue. Papai não gostava. Implicava com os meus disfarces. Com o tempo, cansei de imitar esqueletos e motociclistas. Quis ser paisagens. Fiz-me deserto e iceberg, aurora boreal e piscina selvagem. Certa vez, pintei o rosto de azul e raspei as sobrancelhas. Queria me vestir de “O Mais Profundo Céu”. Papai não gostou nem um pouco. Ele, que era um diploma afogado em uísque com sorriso de impecável lagartixa e um relógio de pulso derretido dentro do crânio. Gárgula com frio suor de réptil esmeraldino, papai invocou desolados cenários bíblicos, a foto de mamãe amarelada na gaveta fúnebre. Ouvi sua voz de tenor enlouquecido, voz de galo azul e alvorada, e senti o peso de sua pata de urso em minhas costas de galápago. Depois, o telefone trouxe o carro que me levou a um lugar branco com flores do campo, cheiro de iodo e novelas de Franz Kafka. Fui levado a um quarto escuro onde caras fodidos como lutadores de jiu-jítsu me espetaram com seringas e alfinetes de cenobita. Eles queriam que eu fosse um roteiro previsível de melodrama, com sorriso de plástico e girassol enfiado na lapela do paletó sombrio. Sim, eles eram nigromantes e queriam transmutar-me em orquídea, em peixe ornamental de restaurante japonês com afiladas barbatanas. Eles me trancaram na jaula de um navio holandês no mar imóvel de uma noite africana. Tatuaram meus olhos com escunas e cetáceos e ataram meus punhos com as tripas de um leão. Fumaram havanas e apagaram os tocos em meu tronco, incêndio de pequenos sóis, inscrições nas corcovas do camelo. Unhas manchadas de preto, boca lacerada e tez amarela de defunto, juntei meus ossos e nervos e costurei com a pele da raposa. Dor metalizada em touro, setas cravadas nas costas, escavei o chão com as patas e o focinho, híbrido animal de pequenos olhos vermelhos. Assim o tempo vertical de um verde escuro, sinistra arquitetura de braços fluidos que cresciam nos lençóis e agarravam os meus pés. Vozes ruivas de esfinges e medusas me curravam com cápsulas e haldol, eu era o zumbi da orquestra noturna de espectros e mongóis. Urrava o azul de minha boca, riscava os pulsos com lascas de vidro e arranhava as paredes do crânio em formol. Então, Ela, a Menina da Fronteira, sorriu para mim com o desenho de figuras espiraladas em seus lábios, e ouvi sua voz de taumaturga. Havia uma porta atrás do espelho, com um corredor de mãos que puxavam meus cabelos. Segurei firme a ventosa e bebi a última gota. Conversei com os mortos, como se fossem vivos, e aceitei sua versão dos fatos. Fiz-me coisa entre coisas, sombra entre muitas sombras. Menti acreditar no que mentiam. Fingi ser um boneco mecânico, até ser declarado são. Agora, eles não podem mais me machucar. Certo dia, acordei na manhã esquálida, escovei os cabelos molhados e vesti a camisa dos humanos. Ela, a Menina da Fronteira, ainda estava sorrindo para mim quando papai assinou a folha do cheque antes de levar-me de volta para casa. Cinco anos se passaram, levei comigo algumas cicatrizes e o Livro de Sonhos com as páginas em espiral borrifadas de estrelas.
— Estou tentando, estou tentando entender, ela respondeu com a pele e a voz, em timbre vegetal, escuro, quase mudo.
(Fragmento do conto Fantasmas não bebem coca-cola, de Claudio Daniel)
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