Claudio Daniel
O poeta gaúcho José Couto, autor de livros como A impermanência da escrita (2010, O soneto de Pandora (2017) e O unicórnio do sul e outras lendas poéticas (2019), desenvolve uma interessante pesquisa intersemiótica, envolvendo os recursos da poesia, pintura, canção popular e da animação computadorizada, para envolver todos os sentidos do leitor. Este trabalho poético, realizado com rigor e sensibilidade, invoca ao mesmo tempo as lendas do folclore brasileiro e da mitologia afrobrasileira, numa valorização de nossaa cultura ancestral, tão ameaçada hoje pelo fundamentalismo político e religioso. Esta recuperação do “arcaico” – que nos faz recordar do conceito de Paul Valéry, que via no poeta alguém muito antigo – não acontece, porém, de maneira ingênua, ao contrário: José Couto incorpora o léxico iorubá aos poemas escritos em português, criando expressivos efeitos sonoros e linguísticos, mantém a sutileza e o tom enigmático dos mitos e nos convida a mergulhar no imaginário coletivo de nossa própria cultura, que tanto tem a dizer à nossa inteligência e sensibilidade. Poeta da melodia e do intelecto, que traz para a poesia a reflexão crítica sobre a realidade brasileira, no momento mais difícil de nossa história, o autor gaúcho recupera o sentido do conceito de logopeia, que segundo Ezra Pound significa a “dança do intelecto entre as palavras”. No caso de José Couto, as palavras-de-axé dançam ao som de batás, os tambores tradicionais da nação iorubá. Vamos ler agora alguns poemas desse autor singular, que se destaca pela originalidade no quadro atual da poesia brasileira:
JAGUNJAGUN DE BALÒGUN
jagunjagun de balògun
dançavam o èrúbo
bájà, edún
ija káwó
guerreiros de ifá
saúdam korin kunle
guerreiros de xangô
exaltam òsè ida-oba
a figa lá de olodê
soprou si ori xirê
a estrela lá de ìgamolè
é nosso ìmalè é nosso ìmalè
BENFAZEJA
reza das ajés
iá mi oxorongá
com folhas
da palmeira do dendê
raminho de alegrim
tira do meu peito enxovalhado
quebranto cobreiro
mau-olhado
espinhela caída
vento virado
choro cifrado
beba da água da cachoeira
antes de entrar na casa de oxalá
plante a espada de ógun
se deseja saudar xangô
colha a folha de iróko
depois da lua prateada
ofereça ainda orvalhada
pra nanã euá orunmilá
reza das ajés
com folhas maceradas
mutamba rama de leite
malmequer bravo
arruda e noz de obi
esfrega nas costas
corta na raíz
os pés descalços
guiné orô orim-rim
BOI BARROSO
meu boi barroso
meu boi araçá
tua carroça de palha
tá cheia dos butiás
adeus arambaré barra do ribeiro
tapes e outras trilhas
vou pelo atalho olhar o mar
se me perder
tava relendo cobra norato
lendas do sul
grande sertão
pé de pilão
batata cozida, mingau de cará
se o minuano não assoviar
se o boi barroso da cara preta
não tropeçar na capivara
pé dentro pé fora
digo adeus e noves fora
O AMOR É AZUL, SEGUNDO A TARDE
para Lázara Papandrea
aqueles seus versos
escritos sobre as águas
pela menina
nas nascentes dos rios
desaguaram
suas imagens
e infinitas transparências
na imprecisa manhã
que se insinuou
com as mãos em concha
bebi de tua paz reverberada
nas entrelinhas dos poemas
lavei o rosto dos excessos
e um silêncio ensurdecedor
e desmesurado
derramou em meu peito
uma vertente fugaz
capaz de recolher do vento
e do amor segundo a tarde
algo assim como pássaros azuis
habitantes desse livro
para presentear desconcertante
leitores desavisados
MÁQUINA DO MUNDO
nada se compara a esse entardecer
a lágrima do sol avermelha o rio
sem culpas esculpe desejos no silêncio
mas quem verdadeiramente se importa?
e no entanto essa beleza impregna de avessos
a delicadeza que finda na luz que se despede
tão pouco ofereceu esse dia que parte
talvez um minúsculo fragmento de folha
sendo levada sem rumo
pousou seu desvelo aos meus pés
e depois partiu em frêmito alucinante
mas quem verdadeiramente se importa?
entretanto agora nesse porto
esvaziado de opacidades
desprende cheiros familiares
algo não tangível
porém me escapa seu sentido
se há algum
transborda preso na garganta
do tamanho de um navio atravessado
mas verdadeiramente
alguém se importa?
a escuridão chega
e nos abraça implacável
vislumbro longe
às fragilidades que o mundo sussurra
despido do tempo que o dia me furtou
reparo nas indeléveis cicatrizes
que os cravos dilaceraram no centro das mãos
e nesse exato instante
revela-se a epifania das infinitudes
perfumes óleos avelãs
a mirra o incenso e o indecifrável
subitamente desaguam
desconcertantes
acendo o último cigarro
caminho sobre às águas turvas
anoitecidas sem compaixão
na margem orixás
babalorixás me saúdam
homens e mulheres registram nos celulares
ambulantes oferecem bugigangas
todos aguardam
antes de tocar as pontas dos dedos
na pele úmida do afluxo
uma esfera esdrúxula
circunspecta drummondiana
de cor incerta
emite permanentemente
um mantra stotram
cruza o céu de ponta a ponta
em porto alegre
mas me diga leitor
quem verdadeiramente se importa?
O CARBONO TRANSLÚCIDO
I
só eu vi
luzes turvas do alumbramento
nas dissonâncias
do desamor-imperfeito
só eu li
o sol dentro do verso
fragmentar cristais límpidos
desejos transformados em náufraga
só eu revivi
a desolada alma do pássaro
gerar a desordem
o poema decifrar o vórtice
desencadear fragrâncias
amorosidade equilibrista
só eu concluí
escrita extensíssima de ecos
diamante raro lapidado
essência vaporosa da lágrima
frêmito da navalha no lábio
vertendo luz na palavra indizível
revelações materializadas
nas entrelinhas pontiagudas
II
linguagem: abismos dos avessos
forjando inesperadas trilhas
vestígios de nuvens
sussurrando dentro
caos da paixão
amplidões, ressignificados
lapidados, reinventados
tatuados no que nos tocou
profundamente e permaneceu
alucinando perplexidades
desconcertando sentidos
dissolvendo epifanias
dissipando sobras
encurralando no canto
do mais intrincado labirinto
o leitor vencido, submerso
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