terça-feira, 10 de novembro de 2020

OS TAMBORES POÉTICOS DE JOSÉ COUTO


Claudio Daniel


O poeta gaúcho José Couto, autor de livros como A impermanência da escrita (2010, O soneto de Pandora (2017) e O unicórnio do sul e outras lendas poéticas (2019), desenvolve uma interessante pesquisa intersemiótica, envolvendo os recursos da poesia, pintura, canção popular e da animação computadorizada, para envolver todos os sentidos do leitor. Este trabalho poético, realizado com rigor e sensibilidade, invoca ao mesmo tempo as lendas do folclore brasileiro e da mitologia afrobrasileira, numa valorização de nossaa cultura ancestral, tão ameaçada hoje pelo fundamentalismo político e religioso. Esta recuperação do “arcaico” – que nos faz recordar do conceito de Paul Valéry, que via no poeta alguém muito antigo – não acontece, porém, de maneira ingênua, ao contrário: José Couto incorpora o léxico iorubá aos poemas escritos em português, criando expressivos efeitos sonoros e linguísticos, mantém a sutileza e o tom enigmático dos mitos e nos convida a mergulhar no imaginário coletivo de nossa própria cultura, que tanto tem a dizer à nossa inteligência e sensibilidade. Poeta da melodia e do intelecto, que traz para a poesia a reflexão crítica sobre a realidade brasileira, no momento mais difícil de nossa história, o autor gaúcho recupera o sentido do conceito de logopeia, que segundo Ezra Pound significa a “dança do intelecto entre as palavras”. No caso de José Couto, as palavras-de-axé dançam ao som de batás, os tambores tradicionais da nação iorubá. Vamos ler agora alguns poemas desse autor singular, que se destaca pela originalidade no quadro atual da poesia brasileira:


JAGUNJAGUN DE BALÒGUN


jagunjagun de balògun

dançavam o èrúbo


bájà, edún

ija káwó


guerreiros de ifá

saúdam korin kunle


guerreiros de xangô

exaltam òsè ida-oba


a figa lá de olodê

soprou si ori xirê


a estrela lá de ìgamolè

é nosso ìmalè é nosso ìmalè


BENFAZEJA


reza das ajés

iá mi oxorongá

com folhas

da palmeira do dendê

raminho de alegrim

tira do meu peito enxovalhado

quebranto cobreiro

mau-olhado

espinhela caída

vento virado

choro cifrado


beba da água da cachoeira

antes de entrar na casa de oxalá

plante a espada de ógun

se deseja saudar xangô


colha a folha de iróko

depois da lua prateada

ofereça ainda orvalhada

pra nanã euá orunmilá


reza das ajés

com folhas maceradas

mutamba rama de leite

malmequer bravo

arruda e noz de obi


esfrega nas costas

corta na raíz

os pés descalços

guiné orô orim-rim


BOI BARROSO


meu boi barroso

meu boi araçá

tua carroça de palha

tá cheia dos butiás


adeus arambaré barra do ribeiro

tapes e outras trilhas

vou pelo atalho olhar o mar

se me perder


tava relendo cobra norato

lendas do sul

grande sertão

pé de pilão

batata cozida, mingau de cará


se o minuano não assoviar

se o boi barroso da cara preta

não tropeçar na capivara


pé dentro pé fora

digo adeus e noves fora


O AMOR É AZUL, SEGUNDO A TARDE

para Lázara Papandrea


aqueles seus versos

escritos sobre as águas

pela menina

nas nascentes dos rios

desaguaram

suas imagens

e infinitas transparências

na imprecisa manhã

que se insinuou


com as mãos em concha

bebi de tua paz reverberada

nas entrelinhas dos poemas


lavei o rosto dos excessos

e um silêncio ensurdecedor

e desmesurado

derramou em meu peito

uma vertente fugaz


capaz de recolher do vento

e do amor segundo a tarde


algo assim como pássaros azuis

habitantes desse livro

para presentear desconcertante

leitores desavisados


MÁQUINA DO MUNDO


nada se compara a esse entardecer

a lágrima do sol avermelha o rio

sem culpas esculpe desejos no silêncio


mas quem verdadeiramente se importa?


e no entanto essa beleza impregna de avessos

a delicadeza que finda na luz que se despede


tão pouco ofereceu esse dia que parte

talvez um minúsculo fragmento de folha

sendo levada sem rumo

pousou seu desvelo aos meus pés

e depois partiu em frêmito alucinante


mas quem verdadeiramente se importa?


entretanto agora nesse porto

esvaziado de opacidades

desprende cheiros familiares

algo não tangível

porém me escapa seu sentido

se há algum

transborda preso na garganta

do tamanho de um navio atravessado


mas verdadeiramente

alguém se importa?


a escuridão chega

e nos abraça implacável

vislumbro longe

às fragilidades que o mundo sussurra


despido do tempo que o dia me furtou

reparo nas indeléveis cicatrizes

que os cravos dilaceraram no centro das mãos


e nesse exato instante

revela-se a epifania das infinitudes

perfumes óleos avelãs

a mirra o incenso e o indecifrável


subitamente desaguam

desconcertantes


acendo o último cigarro

caminho sobre às águas turvas

anoitecidas sem compaixão


na margem orixás

babalorixás me saúdam

homens e mulheres registram nos celulares

ambulantes oferecem bugigangas


todos aguardam


antes de tocar as pontas dos dedos

na pele úmida do afluxo


uma esfera esdrúxula

circunspecta drummondiana

de cor incerta

emite permanentemente

um mantra stotram

cruza o céu de ponta a ponta

em porto alegre


mas me diga leitor

quem verdadeiramente se importa?


O CARBONO TRANSLÚCIDO


I


só eu vi

luzes turvas do alumbramento

nas dissonâncias

do desamor-imperfeito


só eu li

o sol dentro do verso

fragmentar cristais límpidos

desejos transformados em náufraga


 só eu revivi

a desolada alma do pássaro

gerar a desordem

o poema decifrar o vórtice

desencadear fragrâncias

amorosidade equilibrista


 só eu concluí

escrita extensíssima de ecos

diamante raro lapidado

essência vaporosa da lágrima

frêmito da navalha no lábio

vertendo luz na palavra indizível

revelações materializadas

nas entrelinhas pontiagudas


II


linguagem: abismos dos avessos

forjando inesperadas trilhas

vestígios de nuvens

sussurrando dentro

caos da paixão

amplidões, ressignificados

lapidados, reinventados

tatuados no que nos tocou

profundamente e permaneceu


 alucinando perplexidades

desconcertando sentidos

dissolvendo epifanias

dissipando sobras

encurralando no canto

do mais intrincado labirinto

o leitor vencido, submerso 


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