quarta-feira, 2 de outubro de 2019

POEMAS DE YVETTE CENTENO




















MELANCOLIA

Melancolia:
é a casa dos mortos?

ouvem-se vozes
e um grito

não é um grito:
é uma explosão de sussurros.


O ANJO

Uma pedra na mão
uma palavra-pedra
uma palavra fria
aguardavas a chave
não era
o que ele trazia.


ANUNCIAÇÕES

Nem sempre virão de branco
os mortos que acompanham.

Por vezes virão de treva
envoltos nessa bruma
que primeiro os esconde
e depois os revela.

(Do livro Entre silêncios. Lisboa: Pedra Formosa Edições, 1997)

AS NORNAS
(Ouvindo Wagner)

Cantam as tecedeiras
enquanto tecem os fios:
uma dá, a outra puxa,
a última esconde o desenho
e com a tesoura de prara
corta o fio do destino.


PEDRAS

Não quero a Pedra
quero a flor dentro dela

PAUL CELAN

I
Cultivemos a planta
do silêncio negro-musgo

dizer o nome
é perturbar o somo

deixemo-lo
que se afunde
nas suas águas paradas

II

O destino:
essa flor que se abre
raiz plantada
no ar

III

O amor é uma travessia?
O amor é um afundamento.

IV

Quantos poemas
para salvar o dia
quantos poemas
para salvar a vida


PAUL CELAN, PARA SEMPRE

Escolheste a água
de cabelos lisos
como os da tua mãe

escolheste a água
de peixes cintilantes
como as cinzas do céu
que outrora tinha visto

escolheste a água
porque abafava os sustos
e os gritos

MULHERES
(fragmento)

III

Não são casas
são caixas

Não são caixas
são coisas

Não são coisas
são fugas

Voa-se pelas escadas
voa-se com os telhados

até às brancas estrelas
da memória

à dança vermelha
das papoulas

o grito do violino
o negro bater
do sangue
do coração

A HERBERTO HELDER
(ao ler A faca não corta o fogo)

Essa faca
não corta o fogo
mas corta o coração da pedra
florescendo em palavras-pétalas
de ouro
(eu disse ouro? queria dizer
brasa
carvão em brasa
ardendo na fornalha)
e corta a veia
no fio do horizonte
deixando ver um sangue
delicado
voz abafada
grito nascendo
dessa faca
no fogo
desse corpo
(eu disse corpo?
queria dizer treva
Ungrund
buraco negro da alma
ferida mortalmente)

SOMBRAS

É a Sombra
das sombras

vagueia
pelo jardim

perde-se
nos labirintos

afoga-se
nos lagos

esconde-se
nos corredores
de bambu

escapa-se
pela ponte
que não une

antes separa

as pedras
do templo
e do palácio

(Do livro Outonais. Lisboa, 2011 )


Yvette Centeno, poeta, ensaísta, dramaturga, romancista e tradutora portuguesa, nasceu em Lisboa, em 1940, filha de pai português e mãe polonesa. É uma das principais escritoras e intelectuais de Portugal hoje, especialista na obra de Fernando Pessoa, e pesquisa temas relacionados com a maçonaria e o hermetismo. Sua tese de doutorado é sobre A alquimia no Fausto de Goethe e a autora criou o Gabinete de Estudos de Simbologia da Universidade Nova de Lisboa, onde leciona. Como tradutora, verteu para o português obras de Goethe, Stendhal, Shakespeare, Brecht e Celan, entre outros. A obra publicada de Yvette Centeno inclui romances como No jardim das nogueiras (1982), peças teatrais -- Saudades do paraíso (1980), Será Deus o dr. Freud? (1995), ensaios – Fernando Pessoa: tempo, solidão, hermetismo (1978), A utopia: mitos e Formas (1994), coletâneas de poesia, como A Oriente (1998) e traduções de autores como Bertolt Brecht e Paul Celan. A autora mantém o blog Simbologia e alquimia (http://simbologiaealquimia.blogspot.com.br/), onde publica regularmente textos sobre literatura, mística e psicanálise.

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