quinta-feira, 30 de setembro de 2010

UMA HOMENAGEM A ROBERTO PIVA

“Os poetas são malditos mas não são cegos, eles enxergam com os olhos dos anjos”. Essa frase luminosa revela algo da poética de Roberto Piva. Em certo sentido, Piva compartilha da tradição dos malditos (Sade, Lautréamont, Rimbaud, Baudelaire, poetas beatniks) tanto quanto da magia visionária e do êxtase xamânico (Mircea Eliade). Sua poesia é visionária na medida em que o poeta se faz vidente, buscando sempre o desregramento de todos os sentidos. E maldita porque nunca se conforma com as regras sociais, sendo justamente uma forma transgressiva de romper com a normalidade.

Poeta que vislumbra brechas e horizontes, Piva é criador de sonhos, visões e devaneios. As suas visões são originalíssimas. Como dizia o filósofo Gilles Deleuze, o artista é criador de perceptos e afectos. Ele cria blocos de percepção e de sensação que se erguem como monumentos gigantescos. E a originalidade de Piva, no meu ponto de vista, reside no fato de que sua poesia instaura perceptos e afectos na realidade mundana. A realidade se transmuta nos seus gestos. É nesse movimento de “mutação das formas” no plano das significações e dos símbolos que vejo a potência da poesia de Piva dentro do cenário da literatura brasileira contemporânea.

Como o próprio poeta declara num dos seus poemas do Ciclones:

a poesia mexe
com realidades não-humanas
do planeta
profecias
espíritos animais
vidência
estrela bailarina
lugares de poder
fogo do céu

Nos seus últimos livros, Ciclones e Estranhos sinais de Saturno, pressentimos a força dos perceptos que se ancoram numa dimensão ecológico-existencial cujo domínio ultrapassa o mundo dos seres humanos. A poesia se torna presença totêmica, epifania de um ser sagrado que fala pelos orifícios dos vegetais e que escorre nas realidades não-humanas.

Jurema preta

Sou aluno
das árvores
alma elétrica
nas veredas mais secretas
Catimbó sonâmbulo
& seus palácios
meu crânio virando brasas
desfolhando meu coração
mananciais transfigurados
na
memória

A propósito dessas “realidades não-humanas”, podemos considerar os afectos como “devires não-humanos do homem” enquanto “os perceptos (entre eles a cidade) como paisagens não-humanas da natureza”. A arte busca a expressão dessas realidades por meio da criação de perceptos e afectos, enquanto a filosofia o faz por meio da criação de conceitos. No fundo, ambas comungam de um mesmo esforço de transcendência: são criadoras no sentido de uma gênese epistemológica – esse ato dificílimo de transfiguração do real. E o que vemos nas obras-de-arte são blocos de sensação e de percepção, os quais segundo Deleuze, se repetem de modo rítmico. São aqueles ritornelos que aparecem no canto dos pássaros e se repetem para constituir o seu próprio habitat. Ritornelo “é um jorro de traços, de cores e de sons, inseparáveis na medida em que se tornam expressivos...”. Desse modo, os pássaros são vistos como verdadeiros artistas. Um poema, uma dança e uma música são compostos por fragmentos rítmicos ou ritornelos que cristalizam agenciamentos existenciais. É nesse sentido que se diz que o artista cria um universo de afectos e perceptos. No caso específico de Piva, são aqueles perceptos criados a partir das imagens do Sonho e de uma Natureza convulsiva.

O poeta mobiliza “máquinas desejantes” – para usar uma expressão cara à filosofia deleuziana – e as conecta com outras máquinas num fluxo contínuo infinito. Costura um curto-circuito de fluxos, uma imensa usina de máquinas. Desde a máquina-ânus até a máquina-boca, passando pelo seu corpo, mas também atravessando outras esferas, costurando os objetos parciais de seu desejo. Toda máquina desejante corta, extrai e se conecta funcionando como uma produção. Nesse processo de sínteses e disjunções maquínicas, o que se verifica não é apenas a zona indefinida de uma região denominada inconsciente, mas a produção material do inconsciente. Essa mesma produção é social, libidinal e sígnica. Trata-se de uma mesma produção: a produção social, a produção dos desejos e a produção da linguagem.
(Leia a íntegra do ensaio de Chiu Yi Chih e um poema dedicado ao autor de Paranóia na edição de outubro da Zunái.)

UM CONTO INÉDITO DE WILSON BUENO

LÁDIVA

“Feliz daquele/ que ao ver o relâmpago/ não diz – a vida é breve”.

No micropoema japonês foi onde encontramos, tarde dessas noites frias, nós, os navegantes de Hérida, a mais perfeita metáfora em favor da vida eterna – senha e sumo de quem se habilita à inenarrável ilha de Ládiva, ao norte do País Eslavo.

De gelo e praias cinzas, Ládiva nunca amanhece. É sempre bruma, e a imaginação da noite, em Ládiva. A noite imaginada nessa permanência com que a névoa insiste, mesmo quando, ao fim da manhã, você supõe, no céu da ilha um sol de meio-dia.

Contam que, muito antes de nós e de nossos bisavós, ou ainda bem antes destes, os moradores de Ládiva, cuja maior característica, registram, era o engenho para escavar terras e construir túneis, chegaram a abrir, a marretas e pontapés, no céu cinzento, um grande buraco. Por alguns dias, o sol brilhou profuso e obstinado, sem intervalos, sobre Ládiva. E iluminou as praias lavadas pelo azul do mar e pela franja das ondas que sobre a areia se atiram ainda hoje, insistentes, suicidas.

Assim que o buraco aberto por nossos esforçados ancestrais tornou a fechar, voltou a névoa contínua e tudo misturou-se, em Ládiva, ao cinza-escuro quando é a noite imaginada, ou ao cinza-claro, forte indício de que é manhã ou tarde na ilha onde cultuamos os mortos com altas velas e mantras que são quase uma secreta carícia. Isto se não fincamos, ao telhado da casa, os crânios lavados a sal dos mortos antigos. Em Ládiva tudo é assim, surpreendente e novo, como se a morte não houvesse, como se a morte não houvesse mais.

Contudo o que nos incomoda é a imaginação da noite em nossa ilha onde sequer a noite existe, o céu fechado de modo nunca interrompido, sem estrelas, nem mesmo o vazio da ausência delas, ali onde nos postamos, quando é madrugada, e nada descortinamos além do permanente breu e a fuligem eterna das esgarças fumaças. Deambula sobre nossas cabeças um céu sempre móvel, e carregado, que foge, incessante foge para o largo Oceano – como se açulado por forças incoercíveis.

Não por obra do vento, diga-se, posto que em Ládiva o vento gane apenas nas frestas das casas e nunca ascende além que a altura da mais alta edificação da ilha – o templo devotado a um deus que ninguém até hoje soube o nome ou, o que é pior, adivinhou-lhe os preceitos e nem sequer a espécie de oferenda que exige lhe seja colocada aos pés. E sem saber o que um deus quer, nós, os nascidos em Ládiva, vivemos sempre temerosos ante a crua iminência de ser duramente castigados.

Por isso amanhã partiremos outra vez ao continente, em meio à névoa e à neblina. Deixaremos o cais de Ládiva, até que ela seja apenas um ponto perdido, fraco a luzir no horizonte, mas que nossos olhos súplices ainda hão de buscar, com saudade, com muita saudade, feito ela tivesse existido um dia.

(Leia outros contos inéditos de Wilson Bueno na edição de outubro da Zunái.)

UM ENSAIO DE AURORA BERNARDINI

Tanto para o Evangelho segundo Jesus Cristo (José Saramago, 1991) quanto para A Glória ou “O Evangelho segundo Judas” (Giuseppe Berto, 1980, conhecido no Brasil por ter escrito o roteiro de Anônimo Veneciano e por ter sido o auto de O Mal Obscuro , Ed. 34), os episódios da vida de Cristo, tais são conhecidos por quem foi criado na cultura judaico-cristã, servem de estrutura portante natural aos relatos, cabendo ao leitor não o trabalho de memorizar a seqüência dos fatos para não perder o fio da estória, mas o prazer de reconhecer acontecimentos já sabidos nas circunstâncias estratégicas tecida pelos autores e, o que é mais importante, de se surpreender com a interpretação que é possível dar aos fatos assim dispostos.

Nesse sentido, as diferenças entre os dois evangelhos são poucas, diante das coincidências, mas inclusive devido ao ponto de vista e ao fato do narrador adotado formalmente (em Berto é Judas, em Saramago é uma terceira pessoa), elas existem e são basicamente as que seguem.

Não há praticamente em A Glória indagações quanto aos desígnios de Deus pai, nem descrições ou conjeturas quanto à vida, à culpa e à morte de José, que em Saramago ocupam capítulos inteiros. No que se refere a José, sua atuação é extremamente reduzida, em Berto. Contrariamente a Saramago, tendo ele casado com Maria quando essa já havia concebido ao filho, seu despeito revelou-se ao chamá-lo Jesus e não Emanuel, como tencionara.

Não há passagens amorosas no romance de Berto, nem entre José e Maria, nem entre Jesus e Maria Madalena. A Maria, enquanto mãe, é atribuída a origem do complexo de superioridade do filho que, agindo no subconsciente do jovem, libertaria forças inesperadas.

A condição de Jesus, quanto à família, em Berto, é de orfandade. “Quem me segue e não odeia seu pai e sua mãe, e a mulher e os irmãos, e mesmo sua própria vida, não pode ser meu discípulo”, é um dos preceitos que ele lembra em suas primeiras pregações.

Já em Saramago, Maria tem uma personalidade marcada, não é apenas função da vida do filho.

O que realmente importa na obra dos dois autores são as conclusões a que os evangelhos permitem chegar, não somente enquanto versões de “Vida e Obra de Nosso senhor Jesus Cristo”. São conclusões às vezes tão radicais que levam a discutir as questões mais fundamentais de nossa cultura. É a algumas delas que vamos, agora.

Lembro-me da inquietação existencial constelada de dúvidas de minha geração, que tentava remir mergulhando nas argumentações dos grandes clássicos – Dostoiévski, por exemplo. Para uma delas, de primeira grandeza, o equacionamento, se não propriamente a resposta, vinha do discurso de Ivan Karamázov, resumidamente assim: “Não se trata de entrar aqui no mérito da existência ou não de Deus. Se trata do seguinte: se este é o mundo que Deus permitiu que existisse, eu o recuso, devolvo o bilhete”. Dostoiévski, como se sabe, embora por Ele atormentado (sic) durante a vida inteira, nunca chegou a negar a existência de Deus. Ingmar Bergman, conforme também se sabe, faz com que uma das personagens de O Sétimo Selo assim se manifeste: – “os homens pegaram seus medos e deram-lhes o nome de Deus” – e, mais tarde, em sua entrevista aos Cahiers du Cinema, em 1969, ele mesmo depõe:“Depois que me libertei da idéia de Deus, tudo ficou mais fácil para mim. Agora estou tranqüilo”.

“Não há mais grandes valores, pois seus eixos, que são as grandes crenças, com a morte de Deus, deixam de existir”, dizem os pós-estruturalistas, retomando Nietzsche. Deus não existe. Nesse mundo sem Deus, tudo, de fato, é permitido, e o que não o é, não o é graças às leis que agora governam os homens e reprimem a animalidade instintiva à qual a maioria deles se reduziu, ou devido ao medo da culpa, que a minoria continua sentindo, e ao que se costuma dar ainda o nome de “consciência”. Mas o que é esse Medo e o que é essa Culpa que o homem ainda não totalmente bestializados não pode deixar de ter? É aí que entra o livro de Saramago. O Medo e a Culpa (e o medo da culpa) são tão próximos à idéia de um deus virtual que ainda continua condicionando nossa vida, que tanto vale partir - sem tanta especulação e conforme cabe a um evangelista como Jesus Cristo - da premissa que Deus existe sim, ou melhor, que Deus é, tal como o Diabo também é, e um não é sem que seja o outro. Mas, como Jesus descobre que o Diabo não é necessariamente o mal, e que seus papéis ora são invertidos, ora são entrelaçados, mas sempre sendo um a conseqüência do outro? Através do sentimento da Culpa, não a culpa genérica do pecado original, que essa é por demais desgastada, mas de uma culpa concreta que cada um carrega ou herda, fruto de um ato inevitável. Assim se configura o beco sem saída da existência, onde Deus aparenta deixar o homem livre só para poder castigá-lo, onde o homem é, mais do que o instrumento, o joguete de Deus. Se em Dostoiévski o homem resgatava sua culpa com a expiação, aqui a única libertação da culpa é a morte, à qual o próprio filho de Deus aspirava, para que se finde o jogo, aqui está a trama, que com as outras imprevisíveis tramas tende apenas a fazer com Deus continue sendo.

(Trechos do ensaio O Evangelho segundo Jesus Cristo e o Evangelho segundo Judas, de Aurora Bernardini. Leia o texto integral na edição de outubro da Zunái.)

UM ENSAIO DE LEDA TENÓRIO DA MOTA

A ausência de Francis Ponge (1899-1988) no primeiro quadro de referências da crítica barthesiana é surpreendente para os estudiosos de Barthes e para os amantes do poeta. Isso vai além do tratamento dispensado a certos autores importantes ou importantíssimos _ como Raymond Queneau ou Céline _ , pelos quais ele passa rapidamente demais, mas passa.

De fato, Ponge inexiste para Barthes. Como explicá-lo se Barthes está extremamente atento ao que acontece em volta, tanto no terreno da crítica como no da literatura, quando sai O grau zero da escritura, e mais ainda quando sai sua primeira leva de Ensaios críticos? Oscar Wilde escreveu que cada uma das artes possui um crítico que lhe é, por assim dizer, destinado. Será que o gênero poesia não estava designado a Barthes? Michel Déguy é um dos que pensam assim. De seu lado, Barthes talvez lhe dissesse que a escritura não faz acepção de gênero, como o Neutro. Mas mais desconfortável ainda as coisas se tornam quando descobrimos que não se trata só do primeiro Barthes. Pois, se é verdade que encontramos menções ao poeta, aqui e ali, em suas milhares de páginas, é igualmente verdade que essas menções são tão simpáticas quanto expeditivas. O mentor da nouvelle critique­ _ é forçoso admitir _ passou ao largo de um dos mais notáveis homens de letras ao seu redor. O crítico do grau zero ignorou o projeto literário mais representativo da “Forma-Objeto” e o mais insólito dos processos de “concreção” da escritura. O cultor do Neutro desconsiderou o poeta que _ na melhor versão pirrônica _se recusava a ter razão.

Quem percorrer o índice onomástico das Oeuvres Complètes de Barthes encontrará aí dez remissões a Ponge. Ela é evocado três vezes em Essais critiques: na primeira vez, a propósito da “literatura objetiva”, mas centrando fogo em Robbe-Grillet, que é “mais experimentalista”; na segunda, a propósito dos temários da revista Tel Quel, de que ele é só um dos nomes; na terceira, a propósito de autores que contam, mas Jean Genet parece contar mais, já que, na pequena relação de nomes que Barthes estabelece aí, apenas o nome de Genet é acompanhado do adjetivo “admirável”. Depois disso, voltamos a encontrar referências a Ponge em entrevistas dadas por Barthes ao longo dos anos 1970, como aquela aqui já mencionada, ocasiões estas em que a iniciativa de citá-lo parte dos entrevistadores, mais que de Barthes. E, ainda, comparecendo entre parêntesis, num dos Fragmentos de um discurso amoroso e, sempre rapidamente, no seu prefácio ao Dicionário Hachette, texto em que lembra a comum paixão de Mallarmé e Ponge pelos dicionários.

Em nenhuma dessas ocasiões ele brilha pela presença. Não obstante, é dono do mais notável chosier da literatura francesa, quando o nouveau roman entra em cena, chamando a atenção de Barthes. Alguém não apenas decidido a visar o mundo exterior _ esse “mundo mudo” que os homens abafam com a sua tagarelice, dirá _ , mas a baixar a voz da poesia, para lhe dar o lugar que os poetas lhe roubam. Como programa aqui: “Não podemos senão aumentar o mais possível o fosso que, nos separando não só dos literatos em geral, mas da sociedade humana, nos mantém perto desse mundo mudo de que somos aqui, um pouco, como os representantes (ou os reféns)”.

(Trechos iniciais do ensaio O poeta e o crítico: silêncio de Barthes sobre Francis Ponge, de Leda Tenório da Mota. Leia o texto integral na edição de outubro da Zunái.)

domingo, 26 de setembro de 2010

UM ENSAIO DE MARIA ESTHER MACIEL

1. A tarefa moderna do poeta-tradutor

Desde Novalis – que associava o “alto espírito poético” à tarefa do tradutor – a tradução, vista como um trabalho também criativo, ocupou um topos especial na história da moderna poesia ocidental, tendo sido exercitada por vários representantes do cânone poético da modernidade, como Charles Baudelaire, Paul Valéry e Ezra Pound. Uma prática, aliás, que se intensificou ao longo de todo o século XX também na América Latina, graças sobretudo a poetas-tradutores como Octavio Paz, Jorge Luis Borges, Augusto e Haroldo de Campos, dentre outros.
Paz, como um dos primeiros poetas-tradutores latino-americanos a marcar a importância das traduções para o contexto poético e cultural de nossa modernidade, chegou a definir o século XX como o século das traduções. “Não somente de textos” – ele diz – “mas também de costumes, religiões, danças, artes eróticas e culinárias, modas e, enfim, de toda espécie de usos e práticas, do banho finlandês aos exercícios de ioga” (PAZ, 1993, p. 165). Mesmo reconhecendo que outros povos, em outras épocas, dedicaram-se à tradução de textos com paixão e esmero (a exemplo da tradução dos livros budistas por chineses, japoneses e tibetanos), ele atribui aos modernos a consciência de que traduzir é alterar, reafirmar o mesmo como outro, como diferença. A era moderna, segundo ele, permite-nos dizer que, se por um lado, a tradução suprime as diferenças entre as línguas, por outro, as explicita, convertendo-se em um exercício de “otredad”.É nesse sentido que Paz também trata o conceito moderno de tradução como um operador também eficaz no trato de várias questões, como a da relação dos poetas modernos com a tradição, a do diálogo e entrecruzamento entre as culturas do planeta e, mais especificamente, da cultura latino-americana com as culturas estrangeiras. Traduzir passa a ser também uma maneira de assegurar a continuidade de nosso passado ao convertê-lo em diálogo com outras civilizações, e de sustentar o fluxo de uma tradição, na mesma proporção em que a transforma.
Dentro dessa lógica, a tradição ou as tradições devem ser vistas em sua condição de mobilidade ou, como diz Haroldo de Campos, como uma “partitura transtemporal” (CAMPOS, 1993, p. 258) , nunca de cristalização. Do que se depreende que toda tradição viva é sempre outra e só tem assegurada a sua permanência no processo da memória (que, para Paz, é também criadora) e da recepção presentificada que, no caso, funciona também como uma tradução feita simultaneamente de desvios, repetições e transgressões. Como acrescenta Paz, “ao negar a tradição, a prolongamos; ao imitar a nossos predecessores, os transformamos. A imitação é invenção; a invenção, restauração” (PAZ, 2003, p. 147). Em outras palavras, toda tradição sobrevivente ou rediviva o é também em condição de novidade.

(Trechos do ensaio Desafios da tradução criativa: invenção, “transfingimento” e cruzamentos culturais, de Maria Esther Maciel. Leia o texto integral na edição de outubro da Zunái.)

UM POEMA DE ANDRÉA CATRÓPA

AS RELAÇÕES VICÁRIAS

I
através do espelho
fala só para mim
essa boca
seu sotaque
pretérito
esperou
este ouvido
para ser
quase
obsceno
de tão
explícito


II

suas notas,
seus trapos,
e noites insones
são agora
motivo de discórdia
entre os leitores groupies
você está na moda
e seu esqueleto
não goza
do abandono
que em vida
você cavou

III

notas para
o subterrâneo -
saiba que agora
você é precursor
de muitas coisas
com que jamais
sonhou: o assassinato
do sujeito, os labirintos
virtuais e até, isto
não é uma ofensa,
a inteligência
artificial.


IV

amanhã
haverá um simpósio
em sua homenagem,
um homenzinho
de crânio enorme e
pescoço largo,
de feitio tímido,
só se inflama
ao falar de sua obra.
os passeios, os bulevares
de sua infância lhe são
familiares.
apesar de agnóstico,
dizem as más línguas,
já esteve em uma sessão
espírita para tentar
lhe falar
em caráter
extraordinário.

(Leiam mais poemas de Andréa Catrópa na edição de outubro da Zunái.)

UM POEMA DE LEONARDO GANDOLFI

DESAPARECIMENTO DE AGATHA CHRISTIE

Quando descobrir o que seu suspeito vai fazer
é sua obrigação se antecipar a ele,
chegar ao local antes que o crime aconteça.
Se quiser descobrir o que ele está tramando
ou pensando será melhor persegui-lo.
Se possível entre o repetido
e o simultâneo.
Por terraços,
esquinas, destroços, seguir e
seguir até que não exista diferenças entre
vocês, dizia meu avô, inspetor de polícia.
Pistas falsas, velocidade, solidão. Atrás dele
não para pensar como ele, mas por ele –
me perder onde se perdeu, parar onde
parou, ver o que viu. Ah os dias
– todo o nosso esforço resumido
nessa idéia da sombra, salvo
engano, seu sentimento de
pertença. Um peso, duas
medidas, quantas
desculpas.
Nessa hora
quando tudo parecer sem razão
ou regresso, quando a procura
não for mais que descompasso e divisão,
nada de espanto. A telepatia, como se vê,
limita-se às bebidas mais baratas,
conduz ao amor, às suas cidades.

(Leiam mais poemas de Leonardo na edição de outubro da Zunái.)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

POEMAS DE RADOVAN IVSIC

SONHEI

1

Só, completamente só, caminho sobre uma nuvem. Minhas pernas são acariciadas por uma relva tão transparente que não a vejo. Estou maravilhado pelo silêncio. Tomo um pouco d’água escura e transformo a nuvem numa jovem que amo loucamente até a minha morte, na solidão.

2
Estamos sentados na beira de um rio, ela e eu. Ela me fala, e o murmúrio de suas palavras torna-se uma nuvem de cerejas que se pousa sobre meus cílios. Respiro calmamente e penetro nas imagens que ela teria desejado esconder de mim. Ela ri, depois pega uma montanha e a pousa sobre meus lábios, entre nossos beijos.

3

Viro-me, vejo o mar de uma cor indeterminada e três conchas vermelhas. De um cipreste sai um cervo. De seu olhar tranqüilo brotam avencas numa angra. Ajoelho-me para colher um pouco da relva escondida entre os seixos. Espero o cervo adormecer. Quando o vejo chorar lágrima após lágrima, cravo-lhe a relva entre os galhos. Uma jovem azul sai-lhe da cabeça e por inteiro tremo com os beijos nus que ela deposita sobre minhas pálpebras. Com um supremo esforço, abro os olhos para quebrar o segredo, mas uma lâmina de onda negra o arrebata e choro toda a noite no vento, frio.

4

Esta floresta é clara como seda. Um esquilo branco flui caudaloso nas ramagens e me traz a primavera desvairada. Pergunto-me se é preciso esperar até que o amor ecloda o galho morto da esperança ou se não seria preferível partir em direção à praia, entrar furtivamente na água e nadar amplamente até o alto mar, tão novo. Gostaria de andar, mas sinto que não tenho mais pernas. Tornei-me uma árvore e tenho folhas. Estou a ponto de brotar e rio, mas não é mais um riso, é o murmúrio ameaçador da minha nova folhagem. Deveria me preparar para o amor mas torno a me fechar e nado em direção ao sono.
Tradução: Éclair Antonio Almeida Filho
(Leiam mais poemas de Ivsic na edição de outubro da Zunái.)

DOIS POEMAS DE GEORG TRAKL

A NOITE

Com figuras de heróis mortos,
Lua, enches os bosques silenciosos,
Lua crescente –
Com o doce abraço
Dos amantes,
As sombras de tempos gloriosos
Os rochedos podres à volta;
Um azul brilhante
Batia contra a cidade
Onde má e fria
Uma raça apodrecida mora,
E o descendente branco
Prepara o futuro negro .
Ó sombras que a lua engole,
Suspirando no cristal vazio
Do lago da montanha.

GRODEK

Ao entardecer as armas da morte
Ressoam nas florestas outonais, as planícies douradas
E os lagos azuis, por cima, o sol rola, sombrio;
A noite abraça os guerreiros moribundos,
O lamento selvagem de suas bocas quebradas.
Mas o sossego concentra nuvens vermelhas
Entre os salgueiros, onde mora um deus feroz,
O sangue derramado, a frescura lunar;
Todos os caminhos acabam em podridão.
Sob as ramagens douradas da noite e das estrelas
A sombra da irmã cambaleia , através
Do silencioso arvoredo , para saudar os espíritos dos heróis,
As cabeças ensanguentadas;
E, silenciosas, as escuras flautas do outono ressoam no juncal.
Ó orgulhosa tristeza! E vós altares de bronze,
A chama quente do espírito alimenta hoje uma grande
Dor – os netos não nascidos.

Tradução: Luís Costa

(Leiam mais traduções de Georg Trakl na edição de outubro da Zunái.)

POEMAS DE HENRI MICHAUX

MAGIA
(fragmentos)

II

Assim que a vi, desejei-a.
De início, para seduzi-la, disseminei planícies e planícies. Planícies saídas do meu olhar estendiam-se doces, amáveis, reconfortantes.
As idéias de planície foram ao encontro dela e, sem o saber, ela as percorria, sentindo-se satisfeita.
Percebendo-a bem segura, eu a possuí.
Isso feito, depois de um pouco de repouso e quietude, voltando ao meu natural, deixei reaparecerem minhas lanças, meus trapos, meus precipícios.
Ela sentiu um grande frio e que tinha se enganado completamente a meu respeito.
Ela foi embora, a fisionomia desfeita e esvaziada, como se tivesse sido roubada.

III

Acho difícil acreditar que isso seja natural e conhecido por todos. Às vezes eu fico tão profundamente entranhado em mim mesmo numa bolha única e densa que, sentado sobre uma cadeira, a menos de dois metros da lâmpada colocada sobre a mesa de trabalho, é com grande dificuldade e após um longo tempo que, apesar dos olhos bem abertos, consigo lançar um olhar até ela.

Uma emoção estranha toma conta de mim quando dou esse depoimento sobre o círculo que me isola.

Parece-me que um obus ou até mesmo um raio não conseguiriam me atingir de tantas camadas de todas as partes que tenho aplicadas sobre mim.

Simplesmente, seria bom que a raiz da angústia estivesse enterrada por algum tempo.

Nesses momentos eu tenho a imobilidade de uma cova.

Tradução: Izabela Leal.

(Leiam mais poemas de Michaux na edição de outubro da Zunái)

sábado, 18 de setembro de 2010

UM POEMA DE ARTHUR RIMBAUD

COCHEIRO BÊBADO

Álacre
Vai:
Nacre
Rei.

Acre
Lei.
Fiacre
Cai!

Dama:
Tombo
Lombo

Dói.
Clama:
Ai!

Tradução: Augusto de Campos

UM POEMA DE TRISTAN CORBIÈRE

PAISAGEM MÁ

Praias de ossos. A onda estertora
Seus dobres, som a som, na areia.
Palude pálido. O luar devora
Grandes vermes – é a sua ceia.

Torpor de peste: somente a febre
Coze… O duende danado dorme.
A erva que fede vomita a lebre,
Bruxa medrosa que se some.

A lavadeira branca junta os
Trapos surrados dos defuntos,
Ao sol dos lobos… E os sapos. Ei-los,

Anões de vozes melancólicas,
Que envenenam com suas cólicas,
Os cogumelos, seus escabelos.

Tradução: Augusto de Campos

UM POEMA DE JULES LAFORGUE

O CIGARRO

Sim, este mundo é chato e o outro, uma graça.
Eu vou resignado, sem me fiar na sorte,
E pra matar o tempo, enquanto espero a morte,
Lanço ao nariz dos deuses fitas de fumaça.

Ide, esqueletos do futuro, pobre raça.
Eu, o meandro azul que para o céu serpeia,
Mergulho em êxtase sem fim, cabeça cheia
De ópios febris de alguma estranha taça.

Adentro o paraíso, em sonhos todo imerso,
Nos quais se vão mesclar, em fantásticos ritos,
Elefantes em cio a coros de mosquitos.

E quando acordo, meditando no meu verso,
O coração pleno de júbilo, balanço
Meu polegar cozido - uma coxa de ganso.

Tradução: Augusto de Campos.

Leiam mais poemas do autor uruguaio de língua francesa Jules Laforgue, em tradução de André Vallias, na revista eletrônica Errática (ver link ao lado).

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Gabriela Marcondes trabalha com a palavra poética em todas as suas dimensões: plástica, sonora e logopaica. Ela é autora de poemas visuais, poemas-objeto (alguns deles apresentados no festival Artimanhas Poéticas, realizado no Rio de Janeiro em 2009) e desenvolve interessantes pesquisas com as novas tecnologias eletrônicas, ao mesmo tempo em que escreve poemas em verso, com o mesmo rigor e inventividade formal, como os reunidos no livro Depois do vértice da noite, seu segundo título de poesia, publicado há pouco pela 7 Letras (seu primeiro livro, Vide o verso, saiu em 2006). A escrita de Gabriela é concisa, fragmentária, incorpora a visualidade das vanguardas, na disposição de palavras e linhas, ao mesmo tempo em que utiliza elementos tradicionais da arte poética, como a aliteração, a assonância, o trocadilho, relidos sob uma ótica contemporânea e com uma dicção bem pessoal. Gabriela tem um sexto sentido que sabe conjugar a construção formal com o humor, a ironia e a coloquialidade, sem cair no poema-piada ou no poema-crônica-de-jornal, banalizados pela excessiva diluição do Modernismo. Ela consegue obter linhas de alto impacto estético pelas associações entre objetos animados e inanimados, pelo uso da alegoria, do paradoxo, de inusitados adjetivos, entre outros recursos barroquizantes, que ela consegue traduzir em versos de aparente simplicidade, como “a realidade nem sempre trabalha de olhos abertos” ou ainda “fiz as pazes com as sombras”. Gabriela Marcondes é uma poeta para ser lida com a inteligência e os sentidos em estado de alerta.

UM POEMA DE ANDRÉIA CARVALHO

ENCONTRAI HORTÊNCIA TRANSTORNADA!

Vieram-me aqueles olhos de estação no inferno.
Peles de gamo e urso, café e armas,
escondidas na bagagem mínima.
A rótula sã: uma mentira de acrobata.
Antes de caminhar,
já amputada,
com a estratégia dos peregrinos precocemente mumificados.
Nunca mais me viria,
como um poema para mil escravos.
(de avalon à bruma da abissínia traficante!)

Como são fátuos os versículos infiéis.
Quem resiste?
Santelmo!

E o cigarro suicida,
iludindo o sorriso cênico dos lábios.
Quem resiste?
Estrelas na brasa, tragando a própria fogueira mortuária
como um beato céu.

Quem resiste?

Talvez, uns pés livres de necromante,
de sátiro ou de magritte.
Um esqueleto de bosque negro
na densa hipnose noturna.
Espetáculo na praia para dois fiéis
de si mesmo.

Ah! Vislumbre destas matilhas de paisagens,
uivando pela presa das panteras:
Resista, até que venha a ti
a chuva feiticeira de todas as dádivas escarradas.
(assistidas, assistidas até a última quimera!)

Resista, até que venham a ti
a mimética caligrafia, o oráculo sinestésico de teu sangue,
a voz de tábua ouija.

Uns olhos de barcos bêbados, como o corpo articulado dos escorpiões.

Resisto, vidente. Desfolhada hortência na porta que dá início às ruas.

(Leiam mais poemas de Andréia Carvalho no blog O Hábito Escaralate, http://habitoescarlate.blogspot.com/)

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

CÂNONE E ANTICÂNONE (II)

Mário Faustino escreve sobre Carlos Drummond de Andrade, no ensaio Poeta Maior, incluído no livro De Anchieta aos Concretos:

“Outro aspecto da criação poética que nos parece praticamente ausente na obra de CDA é o da criação de padrões logomelophanopaicos (Pound) ou verbivocovisuais, como diriam Joyce ou os concretistas paulistas. Não há, que saibamos, um só poema seu que represente, nesse sentido, o sucesso atingido, por vezes, por exemplo, em Uma Faca Só Lâmina, de João Cabral de Melo Neto – cuja poesia, entretanto, é bom frisar, teria sido impossível sem a existência prévia de Drummond. Há, todavia, no Fazendeiro do Ar, o mais recente livro de CDA, certo poema que parece indicar um caminhar o poeta neste rumo essencial. Trata-se da Escada, onde lemos:

E mortos, e proscritos
de toda comunhão no século (esta espira
é testemunha, e conta), que restava
das línguas infinitas
que falávamos ou surdas se lambiam,
no céu da boca sempre azul e oco?


Fala-se, de quando em quando, nas chamadas rodas literárias, em uma ‘decadência’ de Carlos Drummond de Andrade. A coisa não nos parece colocada em seus devidos termos. É verdade que o poeta tem publicado, nestes dois últimos anos, alguns poemas, nos suplementos literários, que somente subtraem à sua glória, nada lhe acrescentando. Poemas que não deleitam, não movem, não ensinam, não esclarecem, não criticam, não tomam parte – nem na vida social nem na vida estética – poemas que não criam nem exprimem. Isso, contudo, não significa muito, quando nos lembramos que Carlos Drummond de Andrade há muito publica poemas medíocres nos suplementos, deixando de incluí-los em suas obras completas, quando José Olympio as edita.

Por outro lado, dizem-nos que O Fazendeiro do Ar, o último livro dessas obras reunidas, seria o pior livro de Drummond. Não concordamos. O livro talvez seja um dos menores, em número de páginas. Contém vários maus sonetos (o soneto está longe de ser o forte de CDA). Mas contém obras-primas como o Brinde no Banquete das Musas, a Viagem de Américo Facó – um soneto, aliás – a última parte (Errante) dos Cemitérios, um grande poema em prosa (Morte de Neco Andrade) contém a Escada, que abre, como indicamos, um caminho novo, e, sobretudo, aquela Elegia que é, em nossa opinião, um dos cinco ou seis melhores poemas jamais escritos por Carlos Drummond de Andrade.

(...)

Já apontamos, de outra feita, aquilo que consideramos o seu grande pecado de omissão: o não se ter nunca realmente interessado (e hoje em dia ainda menos) pelo desenvolvimento da poesia brasileira como forma de cultura. O não propagar. O não ensinar, por um de tantos meios. O não lutar abertamente contra os inimigos de nossa poesia: a facilidade, as falsas glórias, a caótica escala de valores, para a qual ele mesmo contribui, às vezes, assinando, ou quase assinando, elogios públicos a poetas que ele mesmo sabe, ou devia saber, estarem longe de merecer tais elogios.

Tudo isso, porém, pouco importa. Como também pouco importa a baixa qualidade dos produtos das outras linhas de montagem da fábrica Drummond: as “crônicas”, por exemplo, em prosa e verso, do canto da página CDA da imprensa diária. O que importa é que temos, mesmo nos 50 Poemas, quanto mais nos 262 de Fazendeiro do Ar & Poesia Até Agora, a mais importante contribuição jamais feita em verso para o aprofundamento, para o aguçamento e para a diversificação da língua portuguesa no Brasil.”

(21 de abril de 1957)

CÂNONE E ANTICÂNONE (I)


Mário Faustino (1930-1962) foi um dos maiores poetas-críticos de nossa história literária. Na década de 1950, dirigiu a página Poesia-Experiência, no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, que é um marco em nosso jornalismo literário. Seus artigos, breves e densos, escritos numa linguagem objetiva, fazem uma releitura inteligente da poesia brasileira, enfocando os seus autores mais inventivos, de Gregório de Matos a Augusto de Campos, além de poetas de outras latitudes que na época ainda eram pouco lidos e estudados no Brasil, como Stefan George, Jules Laforgue e Tristan Corbière. Faustino também foi excelente tradutor, e verteu para o português, entre outros autores, Ezra Pound. Como crítico, Mário Faustino foi sempre parcial, na melhor linhagem baudelairiana: o poeta deve descer do muro, tomar partido, dizer aquilo de que gosta e aquilo de que não gosta, sem meios termos, fiel àquilo em que acredita. É uma questão de sinceridade, não apenas no domínio da ética, mas também no da estética.

Mário Faustino tinha raro domínio das técnicas de versificação e apurada sensibilidade musical, como demonstram os poemas de seu único livro, O Homem e Sua Hora, mas ele foi contemporâneo dos poetas concretistas e estava engajado na saga de renovação das formas poéticas, ainda que não aderindo, integralmente, ao Plano-piloto da Poesia Concreta. Sua atitude em relação a esse movimento foi de respeito e diálogo intelectual, mas ele buscava outras possibilidades de invenção estética, que não chegou a desenvolver plenamente, devido a sua morte prematura, num desastre aéreo (ele foi a Cuba, como jornalista, para entrevistar Fidel Castro). Podemos apenas adivinhar o que ele teria feito se vivesse mais tempo lendo o seu Marginal Poema 15, que ainda hoje soa estranho, dissonante, moderno. Mas o que nos interessa aqui é falarmos, brevemente, do Mário Faustino crítico.

A editora Companhia das Letras teve a ótima idéia de publicar em 2003 as suas obras completas, em três volumes (ou quase completas, porque faltou incluir as traduções): O Homem e Sua Hora (poesia), Artesanatos de Poesia e De Anchieta aos Concretos (crítica literária). Em Artesanatos de Papel, estão reunidos os seus textos sobre poetas estrangeiros, como Edgar Allan Poe, Théophile Gautier, Walt Whitman, Baudelaire, Apollinaire, Tristan Tzara, entre muitos outros, lidos à maneira poundiana, com atenção especial à informação nova que ainda pode ser encontrada nesses autores. Já em De Anchieta aos Concretos, ele faz uma investigação de poetas brasileiros canônicos ou recentes, com o mesmo olhar crítico preciso e implacável. Sobre Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, diz o seguinte:

“3. A poesia de Carlos Drummond de Andrade é documento crítico de um país e de uma época (no futuro, quem quiser conhecer o Geist brasileiro, pelo menos de entre 1930 e 1945, terá que recorrer muito mais a Drummond que a certos historiadores, sociólogos, antropólogos e ‘filósofos’ nossos...) e um documento humano ‘apologético do Homem’. (...) 4. Carlos Drummond de Andrade é um ‘inventor’. Se não o é ao nível universal (é meio incerto encontrar um ‘processo’ seu que já não esteja em Heine, Laforgue, Valéry, Eliot, Auden etc.), sem dúvida o é entre nós: poemas como Soneto da Perdida Esperança, José, A Flor e a Náusea, Os Bens e o Sangue, para não falar de pormenores, trouxeram, ao aparecerem, contribuição quase inteiramente original ao desenvolvimento de nossa poética. (...) Sobre a linguagem de Carlos Drummond de Andrade há muito que estudar, que optar, que decidir. Antes de mais nada, dentro de um conceito contemporâneo de linguagem poética, bem distinto da linguagem prosaica e da linguagem retórica, e da ‘expressão sentimental ou imediata’ (Croce), será essa linguagem realmente poética? A resposta seria, a nosso ver (neste momento, pelo menos, de nossa própria evolução): ocasionalmente, sim; o mais das vezes, não.

Ocasionalmente, sim. A linguagem de Carlos Drummond de Andrade sempre teve momentos indubitavelmente ‘poéticos’ (i. é, linguagem de criação, e não de expressão; meio de doação, e não só de comunicação; apresentação do objeto, e não apenas alusão ou comentário ao objeto), como, por exemplo, Cota Zero, Poema Patético, Bolero de Ravel, (...) ou como o Noturno à Janela do Apartamento (...). No caso de Drummond, entretanto, esse frequente acertar não basta ainda, porque não o define. Não constitui o principal em sua obra. Ele nos surge, neste momento, sobretudo, como o renovador, com seus versos, de nossa linguagem prosaica (...). Como poeta, entretanto, no sentido de Criador de palavras-realidades, somos levados a pensar que um Jorge de Lima – muito menos importante que ele sob qualquer outro aspecto – o vence nesta tarefa, por excelência da linguagem poética, de identificar magicamente sujeito e objeto de conhecimento poético, de recriar a palavra na ocasião do poema, tarefa de criação, repetimos, e não apenas de expressão.”

(CONTINUA)

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

BABEL DECIFRADA

A Bíblia é o grande código da literatura ocidental, segundo o estudioso Northrop Frye. É o início de toda a nossa tradição literária. O Cântico dos Cânticos, por exemplo, traduzido por Haroldo de Campos no livro Éden, publicado pela editora Perspectiva, é uma das bases de nossa poesia erótico-amorosa, ao lado da lírica romana e das canções dos trovadores da Idade Média. Já o estilo conciso, obscuro e paradoxal dos livros sapienciais, como os Provérbios e o Eclesiastes marcaram importantes obras de autores românticos e simbolistas, como o Blake do Casamento do Céu com o Inferno, o Nerval de Aurélia e mesmo esse inimigo declarado do cristianismo que foi Lautréamont, nas sentenças paródicas de suas Poésies. Outro adversário contumaz da fé cristã, Friedrich Nietzsche, usou o estilo oratório dos profetas hebreus em seu Assim Falava Zaratustra, e até Marx, em sua obra mais elaborada, do ponto de vista literário, que é o 18 Brumário de Luís Bonaparte, fez várias citações do cânone bíblico, como a conhecida frase “deixemos que os mortos enterrem os seus mortos”. Se fossemos fazer uma lista de todos os autores influenciados, de uma maneira ou outra, pela literatura bíblica, essa lista seria interminável.

Por isso mesmo, traduzir a Bíblia é uma aventura fascinante, que representa um mergulho na fonte primordial de nosso imaginário, de nossa tradição literária e de nossa cultura — ainda que nos afastemos, voluntariamente, da herança judaico-cristã. O que diferencia as traduções de Haroldo de Campos daquelas realizadas por outros estudiosos é que ele não foi movido pela intenção mística ou teológica, mas pelo desejo de recuperar para nós alguns exemplos mais expressivos da poesia bíblica, muito mais elaborada e sofisticada do que poderiam imaginar aqueles que só leram as versões convencionais da escritura.

O resultado do trabalho titânico desenvolvido pelo poeta são três livros notáveis: o Qohélet, tradução do Eclesiastes; Bereshit, com a reimaginação da primeira história da Gênese e da resposta de Deus a Jó; e por fim este Éden, publicado postumamente, que reúne a segunda história da criação, o episódio referente à torre de Babel e o Cântico dos Cânticos, atribuído ao rei Salomão. Nesse conjunto admirável de obras, que formam um tríptico, Haroldo nos mostrou que os textos bíblicos são poemas riquíssimos, não menos complexos, formalmente, do que um poema de Khlébnikov ou Mallarmé. Para revelar as cintilâncias da arte verbal bíblica, Haroldo desprezou a distinção entre prosa e poesia, buscando antes recuperar o ritmo, a respiração prosódica das linhas, valendo-se para isso de sinais gráficos e de recursos de espacialização da poesia moderna. Ele não evitou os jogos paronomásicos, os paralelismos e todos os recursos da função poética que, em geral, são ignorados nas versões tradicionais. Haroldo buscou hebraizar o português, criando uma língua quase híbrida, que ao mesmo tempo nos encanta pela estranheza melódica e apresenta outras possíveis abordagens do texto original, recuperando significados que estão ausentes em muitas versões. Assim, por exemplo, ele traduz shamáyim por fogoágua, em vez de céu, indicando, nesse neologismo, a idéia de uma abóbada celeste formada por uma espécie de magma. Essa tradução nada tem de arbitrária, já que esh significa fogo e máyim, água, como esclarece o tradutor — ou transcriador, como ele preferia ser chamado. O resultado poético pode ser conferido nas linhas iniciais da Primeira História do Bereshit:
No começar Deus criando / O fogoágua e a terra / E a terra era lodo torvo / e a treva sobre o rosto do abismo / E o sopro-Deus / revoa sobre o rosto da água.

A estranheza começa pelo uso do infinitivo, No começar, seguido pelo verbo no gerúndio, Deus criando. É como se o poeta trouxesse até nós o momento inicial da criação, descrevendo o inconcebível cenário de elementos que surgem, interagem e se transformam, na alquimia criadora do cosmo. Esse passado remoto é vivificado também pelo desenho melódico das linhas, com ênfase nas assonâncias (e a terra era lodo torvo) e aliterações (revoa sobre o rosto). Já na Segunda História do Gênesis, presente no livro Éden, ele recupera o jogo semântico entre adam e adamá, que traduz como homem-húmus, coerente com a noção semítica de criação do primeiro humano a partir do pó da terra. Ao mesmo tempo, Haroldo faz outra aproximação paronomásica entre mulher e húmus, recuperando o jogo que em hebraico existe entre ish (homem) e isha (mulher). Não se trata de mero capricho estilístico, mas de uma relação ao mesmo tempo de significante e de significado, já que a aproximação semântica indica uma relação causal: o homem veio do pó, e a mulher da costela do homem. Ou, como diz a Segunda História do Gênesis, na versão haroldiana:
E disse o homem / esta desta vez osso / de meus ossos / e carne de minha carne / A esta chamarei mulher / pois do homem-húmus esta foi tomada.

Outra recriação notável, agora no livro do Qohélet, é a da paronomásia havel havalim, que nós conhecemos, a partir da Vulgata latina, como “vaidade das vaidades”. Esse é um dos versos mais conhecidos da Bíblia. Haroldo interpretou de outra maneira a sentença, traduzindo-a como tudo névoa-nada, sendo que havel, em hebraico, tem o sentido literal de vapor, sopro, e só figurativamente significa vaidade. Não se trata apenas de jogo lingüístico, mas, novamente, uma releitura do sentido, já que a palavra vapor tem um significado mais preciso do que vaidade, e com o conteúdo figurativo adicional de algo impalpável e efêmero. Assim como, na literatura budista, os fenômenos são comparados a bolhas de espuma, que surgem e logo caem na impermanência. Ao optar por tais soluções, Haroldo manteve-se fiel ao sentido literal, muito mais concreto do que abstrato, e com um ganho maior de poeticidade, pelo impacto do inusitado. O que surpreende, no entanto, é o modo como Haroldo fez isso sem abdicar da sonoridade do texto; vale lembrar que ele utilizou diversas gravações, com professores de hebraico lendo esses poemas em voz alta, para trabalhar a partir do impacto sonoro do original. A esse respeito, vale a pena citar um trecho da Primeira História, do Bereshit:
E Deus disse / que as águas esfervilhem / seres fervilhantes / alma-da-vida / E aves voem sobre a terra / face à face / do céufogoágua. / E Deus criou / os grandes monstros do mar / E toda as almas-de-vida rastejantes / que fervilham nas águas / segundo sua espécie / e todas as aves de pena / segundo sua espécie / E Deus viu que era bom.

Esse relato cosmogônico, história cantada do mundo, é um dos vários gêneros literários que integram o cânone bíblico. Em outros capítulos desse livro infinito, encontramos poemas líricos, como o Cântico dos Cânticos (que também integra o Éden), o relato épico, como a história de Josué e as trombetas de Jericó, o discurso filosófico, como os Provérbios e o Qohélet, e ainda esse texto insólito, irônico e enigmático que é a resposta de Deus a Jó, traduzida por Haroldo e incluída no livro Bereshit:
A chuva terá um pai? / Ou quem gerou / as gotas de orvalho? / Do ventre de quem / saiu o gelo? / E a geada do céu / quem a gerou? /; (...) Comandas e os relâmpagos vêm / E te respondem: 'Aqui estamos!' / Quem infundiu / no íbis sabedoria / Ou quem deu ao galo inteligência?

Outro texto de difícil classificação é o episódio da Torre de Babel, incluído no Éden, que é a metáfora arquetípica do surgimento das línguas e das nações (assim como a Primeira História do Gênese trata do nascimento da dualidade e do ego, aquilo que os hindus chamam de mundo do samsara). Novamente, aqui, Haroldo não se contentou com as soluções adocicadas das versões tradicionais, e fez um poema forte e consistente em português, descobrindo novos sentidos para formas novas.

Vale citar o fragmento final:

E disse Ele-O-Nome
um povo uno e uma língua-lábio una para todos
e isto só o começo do seu afazer
E agora nada poderá cerceá-los
no que quer que eles maquinem fazer
Vamos baixemos
e lá babelizemos sua língua-lábio
Que não entenda um
a língua-lábio do outro
E os dispersou Ele-O-Nome de lá
sobre a face de toda a terra
E eles cessaram de construir a cidade
Por isso chamou-se por nome Babel
pois lá babelizou Ele-O-Nome
a língua-lábio de toda a terra
E de lá dispersou-os Ele-O-Nome
sobre a face de toda a terra

Convém ressaltar que Ele-O-Nome é o modo como Haroldo traduz o intraduzível tetragrama que na Bíblia hebraica representa o nome impronunciável de Deus, e que em hebraico safa'ehath significa lábio, com o sentido de idioma; daí a versão haroldiana língua-lábio, que mantém na ambigüidade do neologismo a duplicidade de sentido do termo original. Sobre o Cântico dos Cânticos, pouco há o que dizer: é apenas a melhor tradução em português do mais belo poema de amor da história literária ocidental.

(Resenha que publiquei em 2004 no site Cronópios.)

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

O programa de rádio Ondas literárias, apresentado por Andréa Catrópa, levou ao ar entrevistas com poetas brasileiros contemporâneos, como Virna Teixeira, Ademir Assunção, Frederico Barbosa, Rodrigo Garcia Lopes, Claudio Daniel, Ronald Polito, entre outros, além de dicas culturais, leituras e adaptações de poemas em áudio dos entrevistados. Agora, as matérias gravadas para esse programa podem ser acessadas na internet, no blog http://ondasliterarias.blogspot.com/

UMA ENTREVISTA PARA WEBLIVROS

CAMALEÕES À SOLTA

Claudio Daniel é poeta, jornalista e tradutor. Autor dos livros de poesia Sutra, Yumê e A sombra do leopardo. Organizou, com Frederico Barbosa, a importante antologia Na virada do século, com poetas brasileiros que estrearam a partir dos anos 90, alguns deles inéditos em livro. Foi um dos ganhadores do prêmio literário da revista CULT, na categoria poesia. Trata-se de um autor ocupado com os aspectos lúdicos e plásticos da linguagem, cuja obra está densamente impregnada por elementos da filosofia e da cultura orientais. Como tradutor, tem feito um trabalho intenso de recriação de poetas latino-americanos, como José Kozer, Eduardo Milán, Víctor Sosa, León Félix Batista, entre outros. Em 2004, Claudio Daniel lançou dois livros: um de ficção, Romanceiro de Dona Virgo e a antologia neobarroca Jardim de camaleões, com 24 poetas. É sobre esses títulos, sua visão de literatura e trajetória poética que Claudio Daniel fala com exclusividade para Weblivros.

Reynaldo Damazio

WEBLIVROS: Você publicou o seu primeiro livro de contos, o Romanceiro de Dona Virgo, pela editora Lamparina, em 2004. Em que medida essa obra dá continuidade a sua produção poética? Trata-se de uma ruptura ou de uma nova faceta em sua trajetória?

CLAUDIO DANIEL: O Romanceiro de Dona Virgo é uma reunião de seis narrativas breves, que parodiam estilos e temas de diferentes períodos da literatura de língua portuguesa, desde os cancioneiros medievais até o simbolismo. A escritura faz um deliberado pastiche, sem qualquer compromisso com o realismo, a verossimilhança ou a historicidade, como bem observou Maria Esther Maciel, no posfácio da obra. Ao contrário: há uma deliberada mistura de fatos e personagens reais e imaginários, de códigos lingüísticos e culturais, e mesmo de idiomas (há citações em sânscrito, chinês, latim, hebraico e galego), numa miscelânea barroca. Como bom ladrão e falsário, inseri nas histórias, em itálico, textos retirados de Camões, Claudio Manuel da Costa, Gregório de Matos, Cruz e Sousa e outros poetas, que funcionam como vozes dramáticas, interagindo com as narrativas. Estes autores, aliás, são também personagens, cujas biografias são reinventadas, com elementos da novela policial, da aventura picaresca e do discurso metafísico, entre outros gêneros. É assim uma espécie de sátira da história da literatura, mas também o discurso amoroso de alguém obcecado por esse inútil ofício das palavras. Escrevi o Romanceiro de Dona Virgo ao longo de cinco anos, com o mesmo rigor que exijo de meus poemas; nunca quis apenas contar histórias, como um fabulador, fazendo do texto um elemento passivo para a evolução ficcional. A prosa que me interessa é aquela que se deixa contaminar pela função poética, pela metalinguagem, como as Galáxias de Haroldo de Campos, o Catatau de Leminski ou o Mar Paraguayo de Wilson Bueno. A busca de imagens, de sonoridades, da arquitetura estrutural do texto, essa é a minha Penélope. Embora este livro tenha enredos mais ou menos lineares, as tramas funcionam como melodias numa peça de concerto, onde o que importa de fato são a harmonia e o ritmo, ou seja, uma certa abstração ou rarefação dos temas. Creio que o Romanceiro de Dona Virgo poderia ser considerado também como um poema longo em prosa, dividido em seis cantos ou seções que interagem, compondo uma unidade. Neste sentido, não há uma ruptura com o meu trabalho anterior, mas uma ampliação da função poética num outro modelo de composição (assim como a ópera amplia as possibilidades da canção lírica, com o emprego de um número maior de recursos e instrumentos musicais). Se em vez da prosa ficcional eu tivesse escrito uma peça de teatro, creio que seria também poesia, embora declamada no palco por atores, com todo o mise-en-scène da forma dramática.

WB: Você também publicou em 2004, pela editora Iluminuras, a antologia neobarroca Jardim de camaleões. Gostaria que você explicasse o conceito de neobarroco que norteou a seleção dos textos e falasse sobre a importância desta vertente para a poesia contemporânea.

CD: "A escritura como tatuagem: inscrever sentenças na página, adereços rituais de cerimônia mágica. Sentir a carnadura das palavras, em gozo bacante; ceder a seus jogos e permutações de cores e linhas como a pele do tigre ou a loucura de um deus. Espaço entre som e luz, sentido e mistério, o barroco faz da arquitetura verbal uma forma de delírio visionário. (...) A saturação de signos, na prosódia barroca, opera a ruptura com os próprios limites do compreensível; esse tumulto intencional, dentro da função poética, produz verdadeiros labirintos verbais, jardins de espelhos deformados." Este parágrafo abre meu ensaio A escritura como tatuagem, que é a introdução da antologia Jardim de Camaleões, A Poesia Neobarroca na América Latina. O livro é uma coletânea de 24 autores de diferentes pontos do continente, do Uruguai a Cuba, do Chile ao México, da Argentina ao Peru, do Brasil à República Dominicana, com traduções minhas, de Glauco Mattoso e de Luiz Roberto Guedes. Comparecem aqui os fundadores históricos desse "artesanato furioso", como Lezama Lima e Severo Sarduy, e ainda autores mais jovens, que estão na faixa dos 40 anos, como Victor Sosa e Reynaldo Jiménez. Por ser uma abordagem extensiva dessa estética camaleônica, situada à margem dos modelos canonizados (e domesticados) do establishment universitário, incluí no livro textos teóricos de vários autores, desde o prefácio, assinado por Haroldo de Campos, até o posfácio, escrito por Roberto Echavarren (além de um ensaio longo do cubano José Kozer, e da "orelha" de Horácio Costa). Podemos considerar o neobarroco uma forma de escritura que explora todos os recursos da linguagem, até o máximo grau. Uma arte mestiça, que nasce do cruzamento de referências indígenas, européias, africanas, orientais, apaixonada pelo excessivo, multiforme, transbordante. É uma antropofagia omnívora, que inclui em seu cardápio ecos de textos místicos medievais e até de cantos rituais xamânicos e formas pouco assimiladas da vanguarda, sem esquecer dos elementos "coprofágicos" da cultura de massa, como as histórias em quadrinhos. Essa mescla não busca a unificação, mas a ampliação do ruído, da dissonância, num coral rutilante de vozes. Essa confusão intencional, labirinto mandálico, de certo modo mimetiza a nossa época, regida pelo trânsito caótico, simultâneo, de signos culturais. No campo puramente verbal, o neobarroco distancia-se do coloquialismo e das formas já esgotadas da poesia moderna (de Neruda e Parra, por exemplo), e retoma o experimentalismo de autores como Vallejo ou Girondo. Sua sintaxe é tortuosa, não linear; há uma luxúria semântica, metafórica, com toda sorte de construções inusitadas. Para os poetas brasileiros contemporâneos, o diálogo com o neobarroco significa conhecer uma pesquisa poética radical, distinta da visualidade da Poesia Concreta e do minimalismo da Language Poetry norte-americana. É uma outra praia, um outro campo fértil para a leitura e a investigação, que não deve levar à cópia discipular, epigonal, mas a uma reflexão crítica sobre os rumos da poesia recente em nosso país.
WB: Percebe-se em seu trabalho uma forte ligação com a poesia latino-americana, de teor marcadamente imagético. Essa tendência se opõe a uma linha mais objetiva, herdeira do modernismo, bastante difundida na literatura brasileira, em prosa e verso. Com que tradições literárias a sua poesia dialoga?

CD: Poesia, para mim, sempre quis dizer metáfora, símbolo, imagens sonoras, "construção precisa do impreciso". Sei que tomei a decisão de ser poeta após ler o Corvo, de Edgar Allan Poe, e As Flores do Mal, de Baudelaire. Fiquei fascinado com a música estranha, nervosa, desses poetas; com as visões de uma geografia íntima, onírica, criada pelo "poder encantatório das palavras". Depois, fui descobrindo outros autores, como Blake, Rimbaud, Trakl, Celan, videntes que não separavam vida e linguagem, razão e emoção, conhecimento e imaginário, nem se conformavam a um retrato ingênuo e simplista do cotidiano. A poesia, para mim, sempre foi sinestesia, teurgia, palavras recitadas como mantras ou cantos sagrados, cerimoniais. Esse caráter ritual da poesia, no entanto, nada tem de arcaico; ao contrário, é estimulante para a pesquisa de combinações imprevistas, inusuais, de sons e imagens, numa busca incessante de outras construções, outros caleidoscópios, ecos especulares da ânsia por uma nova ordem das coisas. Nunca me interessei por poetas que se limitam a pintar cenários banais, previsíveis, da vida ordinária, numa representação superficial da realidade. No ensaio que escrevi sobre o uruguaio Victor Sosa, chamado Arte de enlouquecer cristais (já publicado no site Weblivros), digo o seguinte: "Nada é tão linear, tão lógico e previsível como a crônica de jornal. A Natureza, que criou o lagarto e a vulva, os cristais e o caramujo, a lepra e a madrepérola, é uma deusa bizarra e caprichosa; e o poeta, seu sacerdote, por dever de ofício e devoção à deidade, não pode fazer por menos. Limitar-se à contemplação rotineira das coisas, longe de ser uma postura realista, conduz a um afastamento do ‘real’, esse ente metafísico que não se distingue, em seu significado mais profundo, da mente e do universo". Poesia, para mim, é a busca incessante de novas formas e sentidos, de novas visões e modelos de mundo (ou, como diria o chileno Vicente Huidobro, de uma nova fauna e flora). Quanto ao modernismo, vale a pena dizer que não foi uma única vertente, mas várias: podemos citar, por exemplo, a corrente antropofágica de Oswald de Andrade, Pagu, Raul Bopp e Tarsila (para mim, a mais interessante, pela radicalidade da invenção formal); a linhagem órfica de Jorge de Lima e Murilo Mendes (que ainda merece um estudo em profundidade, inclusive por sua repercussão em poetas posteriores, como Mário Faustino); a vereda coloquial-cotidiana de Bandeira e Drummond, hegemônica na universidade e na imprensa, talvez por ser a de mais fácil compreensão, e por inspirar hoje vários poetas medíocres, mas de grande influência na mídia; e a linha construtivista, que vai de João Cabral de Melo Neto, nos anos 40, até a Poesia Concreta, nas décadas de 50 e 60. Claro que há outras linhas nascidas da Semana de Arte Moderna de 1922, citei aqui apenas aquelas que acho fundamentais. De todos esses nomes, foram importantes em minha formação literária, sem dúvida, Oswald, Murilo, Cabral e os concretos, com quem aprendi a arquitetura do poema, a pensar em cada palavra, linha e conjunto de linhas de maneira orgânica, onde nenhum elemento está a mais ou a menos no conjunto. A leitura de livros como A Arte no Horizonte do Provável, Verso Reverso Controverso e o Panaroma do Finnegans Wake foi essencial para mim, assim como as traduções que os irmãos Campos fizeram de Ezra Pound, Mallarmé, Cummings e Maiakovski. Há um ensaio de Haroldo, chamado Uma Arquitextura do Barroco, incluído no livro A Operação do Texto, que acho especialmente importante para a compreensão do barroco para além das limitações geográficas e temporais; o titã concreto compreendeu essa estética luciferina em termos trans-históricos, descobrindo a luxúria semântica gongórica em autores de Alexandria, da China da Dinastia T’ang, do Brasil Colônia e em outras dimensões do espaço-tempo, antecipando muitas formulações teóricas de autores latino-americanos, e ao mesmo tempo iluminando a compreensão de poetas como Lezama Lima e Severo Sarduy. Quando descobri a poesia cubana, aliás, e em especial a de José Kozer, que traduzi (Geometria da Água e Outros Poemas, Fundação Memorial da América Latina, 2000), foi uma redescoberta de tudo aquilo que eu já sentia e pensava a respeito da matéria poética, desde a leitura dos poemas de Baudelaire, aos 13 anos de idade, na biblioteca de meu pai, onde me trancava para fumar cachimbo escondido. Para concluir essa resposta, gostaria de acrescentar que a minha poesia se alimenta de diversas fontes, e não apenas literárias, mas também da ópera e da música de concerto, das pinturas e mandalas tibetanas, da leitura de místicos orientais e do cinema. O resultado do que fiz até agora é a antologia Figuras Metálicas (Travessia Poética, 1983-2003), que publicarei em 2005 pela coleção Signos, da Perspectiva, com prólogo de João Alexandre Barbosa.

WB: A antologia Na virada do século, que você organizou com o também poeta Frederico Barbosa, suscitou críticas quanto à classificação de "poesia de invenção" para os trabalhos reunidos. A mesma crítica tem sido feita à antologia de contos que Nelson de Oliveira realizou, sob a rubrica da "transgressão". Quais os critérios utilizados para definir "invenção" e como tais critérios se adaptam a poéticas tão diversas como as de Donizete Galvão e Arnaldo Antunes, ou de Anelito de Oliveira e Josely Vianna Baptista?

CD: Quando Frederico Barbosa e eu resolvemos organizar a antologia Na Virada do Século, partimos de algumas pistas iniciais: queríamos mostrar o que havia de mais criativo na poesia brasileira mais recente, produzida nos anos 80 e 90, e não apenas no habitual eixo Sul-Sudeste, mas também em outras regiões do país, para dar uma abrangência nacional à mostra. Porém, não concordamos, de maneira nenhuma, com pressupostos da teoria dos gêneros. Não incluímos nenhum autor apenas por ser negro, judeu, mulher ou homossexual; julgamos textos e processos criativos, não características biológicas ou pessoais. Houve um critério rigoroso, com certeza, na avaliação dos trabalhos, que privilegiou poetas comprometidos com a experimentação estética, ainda que não filiados a uma única concepção ou escola. Há abrangência e multiplicidade em nossas escolhas, que incluem autores que partiram da Poesia Concreta, do Neobarroco, da Language Poetry e de outras vertentes estéticas, e inclusive autores independentes, como Donizete Galvão, que tem um trabalho de alta qualidade e que por vezes se aproxima da vanguarda, pela capacidade de surpresa e concisão ("Na pedra, / ele espreita: / peixe, pássaro, lua. / Seu olho-flecha / nunca fere a presa"). Nisso, aliás, inspirou-nos a coletânea Poesia Russa Moderna, que inclui alguns poetas distantes do cubo-futurismo, mas que alcançaram resultados notáveis, como Ana Akhmátova. Excluímos, sim, autores ligados a tendências conservadoras, conformistas, que estão fora de nosso campo de interesse.

Reunimos, Fred e eu, 46 poetas, e com certeza o leque poderia ser ainda mais amplo, já que muitos autores nós só viemos a conhecer depois, como Antonio Mariano, Eduardo Jorge, Virna Teixeira e Delmo Montenegro; de todo modo, essa reunião poética é suficiente para demonstrar a falácia de certas sibilas do apocalipse, que não se cansam de repetir o refrão de que não há nada de novo na poesia atual. Certamente, muitos não gostaram da escolha dos nomes, dizendo que faltaram este ou aquele, mas não é possível agradar a gregos e baianos — felizmente. Nossa antologia nunca quis ser imparcial, neutra, mas engajada e comprometida, e com vocação para interferir no cenário literário nacional. Quanto ao conceito de invenção, que tem causado tanta polêmica, certamente não usamos a definição de Ezra Pound, exposta no ABC da Literatura. Essa palavra é usada desde a Idade Média (no mínimo). Em nosso caso, usamos a palavra "invenção" para designar função poética (Jakobson), metalinguagem, o arranjo inusitado entre as palavras, a busca de novos processos e resultados, enfim, a poesia-arte, que nada tem a ver com marketing, relações-públicas ou jogos de influência com a universidade e a mídia.

WB: Como tem sido a experiência editorial do site Zunái, dedicado à poesia? A Internet ajuda na difusão da literatura?

CD: Zunái é uma revista literária criada especialmente para circular na Internet. As vantagens são inúmeras: não há custos com papel, gráfica, distribuição, e todos os leitores interessados podem acessar a revista, em qualquer ponto do planeta. Também há facilidades para sua atualização periódica, sem descartar as matérias publicadas nos números anteriores: assim, funciona como um arquivo eletrônico, que pode auxiliar a pesquisa de quem necessitar de informações disponíveis na revista. No link de Ensaios, por exemplo, há estudos sobre Augusto de Campos, Paulo Leminski, Duda Machado, Antonio Risério, Arnaldo Antunes e muitos outros poetas contemporâneos, inclusive textos que foram apresentados como teses de mestrado e doutorado, em importantes universidades, brasileiras e estrangeiras. Do mesmo modo, no link de Traduções, há pequenas antologias bilíngües de poesia cubana, uruguaia, francesa e outras. Todo esse material pode ser acessado, em poucos minutos, por um internauta em São Paulo, Tóquio ou Honolulu. Qual é a revista "de papel" que oferece tais vantagens? Acho a Internet um veículo de comunicação sem precedentes, que além de democratizar o conhecimento permite o diálogo com poetas, escritores e intelectuais, via e-mail, favorecendo o intercâmbio de idéias e de projetos culturais. Por todos esses motivos, mesmo se eu pudesse editar a Zunái em formato Guttemberg, não deixaria de manter sua versão virtual circulando na Web. Desde que comecei a editá-la, em outubro de 2003, junto com Rodrigo de Souza Leão e a nossa webmaster Ana Peluso, o índice de visitação não pára de crescer, superando a marca de 50 mil visitas mensais (sendo que metade é realizada por internautas brasileiros, e a outra metade por leitores dos EUA, Portugal, Argentina, Cuba e outros países), o que demonstra o interesse que a revista vem despertando. Para finalizar, eu só teria a acrescentar uma coisa: é muito divertido e estimulante editar essa página, que tem sido motivo de regozijo para os que a lêem e editam.

WB: Você acredita que existe uma nova literatura sendo feita nos blogues, ou estamos diante de mais um fenômeno de mídia (no caso, de uma mídia alternativa)?

CD: Quando Mallarmé publicou o Lance de Dados, no final do século XIX, ele estava à frente de seu tempo. A imaginação criadora do poeta francês exigia recursos que iam muito além do espaço bidimensional da página impressa (talvez por isso não tenha realizado o seu Livro impossível). Nos anos 50, a Poesia Concreta avançou um pouco mais nesse caminho, apontando outras possibilidades de criação poética, além do discurso, da sintaxe e da própria palavra escrita, pelo diálogo com as outras artes e com a mídia eletrônica. Hoje, temos uma situação inversa: a tecnologia oferece recursos quase ilimitados para a criação, mas a capacidade imaginativa intersemiótica dos poetas e escritores entrou em declínio. O que vemos nos blogues é a adaptação de paisagens já conhecidas, como a coluna de jornal ou revista, para o ambiente virtual. Os contos e poemas publicados nos sites e revistas eletrônicas, inclusive, não foram elaborados a partir da linguagem e das possibilidades oferecidas pelo computador; são textos escritos para edição em livro, que aparecem primeiro na Web apenas por causa da facilidade em se publicar na Internet. Acredito que este seja um momento de transição, e que em futuro não muito remoto os poetas estarão desenvolvendo projetos mais ambiciosos, levando em conta os recursos oferecidos pelas novas tecnologias.
(Entrevista publicada em 2004 no site Weblivros)

UM POEMA DE MARCELI ANDRESA BECKER

SEM TÍTULO
(09.07.2010)

1

quando o corpo todo,

túmulo inverso
de ecos e caos,

sai pelo umbigo: camaleoa, a língua é corda
de um sino imenso dentro do peito.

*

como se os ossos voltassem à infância
para crescer até abrir outra vez

*

os tecidos. se já não há linhas nas palmas
das mãos, meu amor,

*

se já não temos costuras,

*

a linguagem vaza por todos os dedos: deixa que escorra
no meio das bocas, dos túneis,

deixa que sonhe um enxerto pra morte.

2

dá-me a noite que falece, a tua escura
escavação, e eu te entrego

*

o meu Narciso ainda
de pálpebras fechadas, ainda virgem,

*

inviolado pelo espelho.

*

mas se cantar
é cantar contra ouvido e pele, tempo de fibras,

*

mas se beleza é tu contra carne,
então cantar, cantar, pra te fazer pedaços.

*

(sêmen de luas que se olham de frente
cruza a garganta: vem

pra eu tocá-la entre cordas, cortá-la,)

3

que te antifalar
é qualquer coisa antes das grutas. há uma presa

*

que em mim grita a tua entrega de Adão nu,
ferido, feito da minha fome de costelas. vê, é só perdão

*

o que hoje em ti me pede o mundo, mudo,
é só um varal a céu aberto,

ouve as roupas
contra o vento, se confessam
,

o que tens no coração.

(Confiram outros poemas da autora na Zunái, na página http://www.revistazunai.com/poemas/marceli_andresa_becker.htm)

RELENDO MÁRIO FAUSTINO (IV)

ROMANCE

Para as Festas da Agonia
Vi-te chegar, como havia
Sonhando já que chegasses:
Vinha teu vulto tão belo
Em teu cavalo amarelo,
Anjo meu, que, se me amasses,
Em teu cavalo eu partira
Sem saudade, pena, ou ira;
Teu cavalo, que amarraras
Ao tronco de minha glória
E pastava-me a memória
Feno de ouro, gramas raras.
Era tão cálido o peito
Angélico, onde meu leito
Me deixaste então fazer,
Que pude esquecer a cor
Dos olhos da Vida e a dor
Que o Sono vinha trazer.
Tão celeste foi a Festa,
Tão fino o Anjo, e a Besta
Onde montei tão serena,
Que posso, Damas, dizer-vos
E a vós, Senhores, tão servos
De outra Festa mais terrena
Não morri de mala sorte,
Morri de amor pela Morte.


SOLILÓQUIO

- Tudo o que importa é ser maravilhoso.

A maravilha: gesto de inocência.
E do aceno o milagre a renascença
de deslumbrados olhos infantil espaço
e primavera – o homem volta ao homem;
o inefável gera enfim o mal sublime
no coração deserto; e da terna doença
a rosa azul desponta e levanto-me rei.
- Eu mesmo sou o encantador do mundo!
Seres e estrelas brotam de meus lábios…
e morro deste belo sofrimento
de ser maravilhoso!

– Ah, quem pudesse
gritar à noite e ao tempo essas palavras
e partir pelo vento semeando versos
e terminando a criação da terra…

RELENDO MÁRIO FAUSTINO (III)

VIDA TODA LINGUAGEM

Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.
Vida toda linguagem
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjetivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
feto sugando em língua compassiva
o sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sêmen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajetórias
Vida toda linguagem –
como todos sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir,
homem, mulher e besta, diabo e anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem,
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que um homem jovem, nos terraços do inverno,
/ contra a chuva,
tenta fazê-la eterna – como se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
língua
eterna.

domingo, 5 de setembro de 2010

A SOMBRA DO LEOPARDO






Caros, saiu a segunda edição de meu livro A Sombra do Leopardo, publicado pela primeira vez em 2001, pela Azougue Editorial, e que recebeu o prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, oferecido pela revista CULT. A nova edição foi publicada no selo Orpheu, da editora Multifoco, e pode ser encomendada pelo site http://www.editoramultifoco.com.br/ ou pelo e-mail vendas@editoramultifoco.com.br. O telefone da editora, que fica no Rio de Janeiro, é (21) 2222-3034.

RELENDO MÁRIO FAUSTINO (II)

BALADA
(Em memória de uma poeta suicida)

Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o fato
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mais intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura),

Jogou-se contra um mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirma-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra um só delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência, mas tanta ternura!

Cruel foi teu triunfo, torpe mar.
Celebrara-te tanto, te adorava
De fundo atroz à superfície, altar
De seus deuses solares - tanto amava
Teu dorso cavalgado de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!

Envoi

Senhor, que perdão tem o meu amigo
Por tão clara aventura, mas tão dura?
Não está mais comigo. Nem conTigo.
Tanta violência. Mas tanta ternura.