domingo, 27 de outubro de 2024

DAMODARA

 



 






Onde começa

onde termina

o vento?

Onde começa

onde termina

a curva branca

da lua?

Onde começa

onde termina

a cintura divina

de Krishna?

Ele está aqui, ali,

além, em toda parte;

nenhuma corda

pode atar o Ilimitado.

Mãe Yasoda

só pode prendê-lo

com as amarras

da devoção.

Krishna Damodara

abre a sua boca

e em sua boca

está o infinito.

 

Poema de Claudio Daniel, 2024

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

ZUNÁI: VINTE ANOS DE GUERRILHA NO CIBERESPAÇO

 










Claudio Daniel

Zunái, Revista de Poesia e Debates (https://www.revistazunai.org/), comemora vinte anos de guerrilha virtual no ciberespaço. Criada em 2003 por Rodrigo de Souza Leão, Ana Peluso e por mim, a revista eletrônica publicou alguns dos mais expressivos nomes da poesia, do teatro, do romance, do ensaio e das artes visuais brasileiras. Ao longo de duas décadas, estiveram presentes nas páginas da Zunái autores como Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Arnaldo Antunes, Wilson Bueno, Milton Hatoum, Gerald Thomas, Regina Silveira, Guto Lacaz, Leda Catunda, Alex Flemming, para citarmos poucos nomes, além de muitos autores jovens. Desde o início, a revista assumiu uma posição de voluntária parcialidade crítica (seguindo a lição de Baudelaire), exteriorizando os seus critérios de escolha e interferindo de maneira desafiadora no cenário cultural brasileiro, sem fazer concessões a estéticas mumificadas. Zunái assumiu o compromisso de publicar trabalhos de maior inventividade formal, em campos como o da poesia visual, da poesia sonora, da poesia digital, do texto poético experimental, sem filiar-se, porém, a nenhuma tendência literária específica, a nenhum programa normativo redutor: sua vocação é a de ampliar diferentes graus de ruído e dissonância, para desafinar a melodia única dos contentes. Esta pluralidade de radicalismos possíveis se manifestou em nosso interesse pela poesia neobarroca de José Kozer, Reynaldo Jiménez, Victor Sosa, León Félix Batista, mas também pelo minimalismo de André Dick e Virna Teixeira e pela escrita inclassificável de Contador Borges, Abreu Paxe, Antônio Moura e Erin Moure. Nossa representação geométrica é o círculo, dentro do qual se movimentam infinitas linhas concêntricas, aproximando-se, distanciando-se, provocando colisões, ruídos e atritos criativos, em constante ebulição e metamorfose. A Zunái sempre se recusou a fazer um mapeamento convencional da poesia brasileira – tarefa sempre incompleta e efêmera das revistas e antologias – mas, ao contrário, optou por iluminar autores que ficaram à margem do cânone rumoroso promovido pela mídia, organizado por critérios poucas vezes éticos ou estéticos. Publicamos autores jovens de violenta novidade formal e temática, que estão entre as vozes mais consistentes da nova poesia, como Adriana Zapparoli, Andréia Carvalho, Mar Becker, que trazem propostas de desestruturação da lírica coloquial-cotidiana do Modernismo (tão incensada por críticos midiáticos que nada sabem de poesia) e de reorquestração das palavras e frases em outras combinações possíveis, ampliando o léxico, renovando a sintaxe, dialogando com repertórios infrequentes, num sopro de renovação e desafio.

Rompendo com o mimetismo colonizado das poéticas praticadas nos grandes centros econômicos, Zunái estabeleceu novas parcerias, divulgando poetas de Angola, Moçambique, África do Sul, Síria, Cuba, México, Peru, República Dominicana, Venezuela, entre outras nações de poesia. O link Galeria publicou mostras virtuais de alguns dos mais conceituados artistas visuais brasileiros, como Leda Catunda, Elida Tessler, Nino Cais e Eduardo Frota, enquanto o link de matérias especiais enfocou temas culturais mais amplos, envolvendo diferentes linguagens artísticas, como o teatro de Gerald Thomas, o cinema de Werner Herzog e Peter Greenaway, a prosa de Wilson Bueno, os 50 anos da Poesia Concreta e o debate sobre a crítica literária brasileira, em textos como "Muito além da academídia: poesia brasileira hoje", de Rodrigo Garcia Lopes, e "Pensando a poesia brasileira em cinco atos", de Claudio Daniel.

Os editores de Zunái nunca tiveram o propósito de estabelecer ou defender uma suposta “estética única”, o que pode ser verificado facilmente na própria revista, onde publicamos desde haicais e poemas sonoros até composições concretistas e surrealistas; a inovação, para nós, nunca foi rua de mão única ou questão teológica ou metafísica. O que recusamos no ecletismo nunca foi a diversidade, mas a concessão sem critérios a estéticas frágeis, que não apresentam nenhuma novidade temática ou formal. A defesa intransigente da pesquisa estética, do experimentalismo, da inovação, em nenhum momento foi entendido por nós como nova torre de marfim, alheia aos acontecimentos no mundo – muito ao contrário. O design da capa da Zunái, em sua primeira dentição, foi criado por Ana Peluso e por mim com o propósito de representar o conflito entre barbárie e cultura: os links, dispostos de maneira circular, incorporaram imagens de obras de arte da Antiguidade do Museu Nacional de Cabul, destruídas pelo Talebã sob a acusação de paganismo e idolatria. Na página do Expediente da revista, inserimos a imagem de uma obra de arte desaparecida do Museu de Bagdá, saqueado com a cumplicidade das tropas de ocupação norte-americanas.

Zunái sempre se posicionou contra as guerras de rapina do império estadunidense no Oriente Médio e criou, no link Opinião, os Cadernos da Palestina, onde publicamos regularmente textos e fotos de denúncia da ocupação ilegal dos territórios palestinos pela entidade sionista. Durante o Fórum Social Mundial Palestina Livre, ocorrido em 2012, em Porto Alegre, Zunái esteve presente e distribuiu a plaquete Poemas para a Palestina, com peças escritas por autores como Glauco Mattoso, Marcelo Ariel, Lígia Dabul, Andréia Carvalho, Nina Rizzi, entre outros poetas brasileiros e portugueses (o texto original da plaquete, ampliado com a inclusão de novos poemas, foi publicado em 2014, na forma de livro, pela editora Patuá, do bravo Eduardo Lacerda). A revista também colaborou na organização da exposição fotográfica dedicada aos 30 anos do massacre de Sabra e Chatila, exposta no mesmo ano na Biblioteca Alceu Amoroso Lima. Zunái sempre acreditou que o engajamento estético não se opõe ao engajamento político, mas, ao contrário, é a sua contraparte dialética, como bem sabia André Breton, ao propor unir o “mudar a vida” de Rimbaud ao “mudar o mundo” de Marx (equação em que está implícita o “mudar a arte” de Lautréamont).

O aniversário de dez anos da revista, em março de 2014, foi comemorado com um recital organizado pelo poeta Rubens Jardim, na Casa das Rosas, que contou com a participação de Frederico Barbosa, Claudio Willer, Alfredo Fressia, E. M. de Melo e Castro, Abreu Paxe, Nydia Bonetti, Andréia Carvalho, Edson Cruz, Luiz Ariston, Edson Bueno de Carvalho, Diogo Cardoso e Fabrício Slaviero. Uma festa de poesia. Em março desse mesmo ano foi publicada uma antologia impressa de poemas e textos divulgados na Zunái ao longo de seus dez primeiros anos de existência, com o apoio generoso da Lumme Editor. Agora que a publicação digital completou vinte anos, ela deixou de circular, pois nunca recebemos nenhum patrocínio público ou privado, embora tenhamos participado de diversos editais, como o da Bolsa Petrobrás (privatizada para favorecer os amigos de Carlito Azevedo) e o do Instituto Itaú Cultural. A revista é reconhecida em nível internacional, mas, infelizmente, no Brasil sempre sofreu o boicote da mídia e tudo o que conseguimos fazer foi com os nossos próprios esforços. Agradecemos a todos aqueles poucos que sempre apoiaram a revista, e em especial a Ana Peluso e Mariza Lourenço, responsáveis pelo design e atualização da “primeira dentição” da Zunái, e a Andréia Carvalho, editora de multimídia do novo site da revista.

Ave, Zunái! Palestina Livre!

 

sábado, 12 de outubro de 2024

O AZUL

 


 










Para Claude Monet

 

lago de azul-opiário-azul-equinócio azul

mais azulino azul //

azul não azul-ferrete

azul não azul-da prússia

azul em tons

de turquesa-azul

(azul em tons

de malaquita-azul)

nas folhas de galhos inclinados

nas folhas de galhos

desmanchados

em explosões de azul //

nenúfares, borrões

de azul-azul //

nas pupilas do inseto

que vê: ninfeias, ninfas

e nuvens

em borrões de rosa

e azul

em borrões de branco

e azul //

moças sentadas no barco

são moças de água

moças-flores tingidas

do mais profundo azul //

olhos, folhas, barcos e flores

em nuances de cor

olhos, barcos, folhas e flores

refletidos nas pupilas 

do mais profundo azul //

(líquida pantera subaquática

irrompe súbito na tela) //

tudo que existe afinal

são múltiplas variações cromáticas

do mais profundo azul.

 

Poema inédito de Claudio Daniel, 2024