Claudio Daniel
Daniela Pace Devisate desenvolve uma poética da brevidade, com delicada imagética, fluência melódica e sabor oriental, que revela suas leituras de poetas como o japonês Matsuo Bashô e do persa Omar Kahayyam, que cantaram a beleza e a fugacidade do amor e dos fenômenos da natureza. Assim, lemos na quadra Voa, garça vermelha, quase um flash fotográfico ou plano-detalhe de um filme de Akira Kurosawa: “ops, erro / voa uma garça / no quimono vermelho / da deusa do Sol”, em que o uso da interjeição no verso inicial adiciona à imagem um sentido de percepção de falha, engano ou indiscrição involuntária, ao mesmo tempo que permite um leve toque de humor. Em outra peça, intitulada Orquestra, ela escreve: “Astuta, a lua / tramava a móvel partitura / ela / maestrina de sapos / convidava os músicos cegos / e crianças / para o seu coral”. Neste minipoema, de sete linhas curtas, Daniela cria imagens inusitadas, como a da “maestrina de sapos”, epíteto para a sua lua de prosopopeia, e imagina um onírico coro de vozes da natureza, acompanhado por uma orquestra de câmara formada por crianças e músicos cegos. Em Faana, composição de sabor persa, em que a autora cria uma deliberada ambiguidade entre o amor erótico e o amor espiritual – tema recorrente entre os autores sufis, como Rumi e Attar – conforme leremos a seguir:
FANAA
Mais além dos rostos
na meia noite transcendente
onde os nomes flutuam
como lótus num lago
após serem unificados
no fogo de dor e amor:
um fogo alvo
fogueira de lírios que se dissolvem
no Oceano de Perfumes
composição que recorda outra gravura poética de Daniela, que utiliza símbolos e imagens próprios do imaginário dervixe, apresentado em livros como A linguagem dos pássaros e o Masnavi:
GAZAL DO VINHO RUBI
Há uma gazela ferida
no Bosque do Amor.
Dentro da longa noite,
sob uma lua em foice,
o caçador arrependido
bebe do seu sangue precioso
e embriaga-se.
Então, as portas do céu
se abrem de par em par,
e em seus olhos,
como em dois lagos,
se espelha o Paraíso.
O sufismo, corrente místico-devocional do Islã, assim como o Bakhti-Yoga dos vaishnavas hindus, representa o amor espiritual utilizando-se de referências humanas, como os jogos de sedução, a embriaguez com o vinho, o sofrimento causado pela separação do amado e outros tópicos presentes na poesia, na pintura e em canções tradicionais. Na poesia de Daniela, temos uma inversão da equação metafísica, em que os elementos pictóricos da arte sagrada são trazidos para representar o amor humano, demasiado humano. Assim, por exemplo, nestes dois poemas, em que encontramos ainda a amarga ironia de “nosso encontro eterno / adiado por engano”:
* * *
Somos
estrelas errantes
emaranhadas
de carne perecível
com flores no peito
que desabrocham
dolorosamente
gloriosamente
enquanto
a ária dos pássaros
distrai a aridez
da fome
e aguardamos a noite
essa espécie
de abrigo provisório
porque a vida
é uma coisa muito precária
* * *
Oh amado
como anseio
teu rosto reluzente
camuflado
nas coisas do mundo
nuvens irisadas
se precipitarão
em chuva
que se mistura à saliva
no céu da minha boca
enquanto você acende estrelas
nas palmas
das minhas mãos noturnas
vê esses sinais?
aqui está marcado
nosso encontro eterno
adiado por engano