quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

BREVIÁRIO DA TRAGÉDIA BRASILEIRA
















RETRATO IV

Pedras queimadas
na crueza
do abandono
tuas disformes formas
marcadas
a cutelo.
Pele dispersa
arroxeada
de corpo inânime
esfiapada
entremostrada
em febras
de açougue.
Despejada
na lama,
como detrito:
um aviso
do quebra-ossos
para que ninguém
reclame.
Mundo
desmundo
de mortes
emudecidas
onde olhos
se fecham
para o flagelo
mais cegos
que a noite
mais cegos
que a morte
de indistintas
estrelas —
apenas os corvos
crocitam,
apenas os corvos
— cachorros do céu —
desenham,
com suas vozes
desconexas
a cena do mais
absoluto
horror.

 PORTRAIT IV
 Scorched stones
in the cruelty rawness
of abandonment
your shapeless figure
marked
by the chopper.
Scattered skin
      purplish
inanimate body
shredded
appears
in the butcher’s
cuts.
Dumped
in the mud,
like garbage debris:
a warning
from the bearded vulture
so that no one
protests.
Underworld
of muted deaths
where eyes
close on themselves
to the scourge
more blind
than the night
more blind
than the death
of indistinct
stars —
only the crows
crow,
only the crows
— dogs of the sky —
depict
incoherently
with their voices
the scene of the most
absolute horror.
        

 RETRATO V

Entranhados no terror.
Estirados na terra.
Suas mãos terrosas.
Suas bocas aterradas.
Seus olhos, fundas covas.
Seus olhos, gritos óticos. 
Abatidos como feras
pelos furiosos.
Abatidos como párias
pelos paranoicos.
Porque nascem da terra.
Porque vivem da terra.
Porque se multiplicam,
tumultuários, e sua voz
é a voz vermelha da terra.


PORTRAIT V

Deeply rooted in terror.
Stretched on the ground.
Their earth-colored hands.
Their mouths covered with dirt.
Their eyes, deep caverns.
Their eyes, optical screams.
Slaughtered like beasts
by the furious.
Slaughtered like pariahs
by the paranoid.  
Because they are born from the earth.
Because they survive from the soil.
Because they multiply,
Tumultuous, and his voice
Is the red voice of the earth.

RETRATO VII
Dezenove cabeças de ninguém:
cabeças-
de-corvo,
de noite-
desnoite,
de lua-
nanquim.
Abatidos a tiros:
noite
negra-
vermelha,
noite
muda-
estridente  
— extermínio.
carmim.
Linhas móveis
multiplicam
luzes:
indistintas
estrelas
no desfazimento
do breu.
Os que somem
sem deixar
vestígios;
os que calam
sobre mortes
anônimas.
Sim:
vivemos
no tempo
dos invisíveis,
no tempo
descolorido
dos surdos-mudos.
A mutabilidade
dos corpos,
reconfiguráveis.
As estruturas
de poder
mimetizadas
em abismo.
A indiferença
ante os dezenove
desalinhados
corpos
em Barueri
e Osasco.
Limo recobre
qualquer hipótese
de legalidade.
Sim, houve
um massacre:
todos nós
somos culpados.


  
PORTRAIT VII

Nineteen heads of noone:
heads-
of-raven
at night-
night,
Indian ink
moon
shotdown:
night
black-
red,
night
mute-
strident
— extermination.
crimson.
Free lines
increase
lights:
indistinct
stars
in the dissolving
pitch.
Those that disappear
without leaving
traces;
those who keep quiet
about anonymous
deaths.
Yes:
we live
in time
with the invisible,
in time
discolored
by the deaf and dumb.
The mutability
of the bodies,
reconfigured.
The structures
of power
mimicked
in abyss.
Indifference
before the nineteen
misaligned
bodies
in Barueri
and Osasco.
Pond scum
Recovers
Any legal
Hypothesis.
Yes, there was
a massacre:
all of us
are guilty 
                    

 RETRATO X

E todos os sentidos foram amputados

Luís Carlos Patraquim

entretanto a aranha entretece sua teia expele os fios de fiandeira gotas de seda convertidas em amarras nos entornos das paredes uma jornada pela noite manuscrita sem temor ao desengano à desmesura uma jornada na curvatura do ambíguo até a lenta corrosão de tudo enquanto buscamos entrestrelas entrevértebras uma saída da insanidade um escape desse alcácer de ínferos onde bolsonazis esfolam fêmeas e hordas de hunos urram de ira nas ruas rubras turbas das trevas zumbis das telas de plasma espancam negros espancam travecos espancam putas viaturas expandindo luzes multiplicando mocambos e mortos expostos em vitrines para as festas tanáticas de hitler para as festas tanáticas de obama para as festas tanáticas de israel celebram falos celebram falos com pontas de agulha num desfile carnavalesco da morte caveira neanderthal essa marcha de insanos leitores do globo esses insanos leitores da veja esses insanos leitores da folha esses insanos leitores do völkischer beobachter há um céu de pureza eu sei em alguma dimensão da mente há alguma dimensão de pureza eu sei no sutra no tantra no veda mas aqui legiões de dobermans saúdam o coronel brilhante ustra descerebrados acumulam-se nas igrejas para louvarem o santo dólar o santo dízimo a santa estrela de david caveira neanderthal este espaço tétrico onde queimam gárgulas linhas retorcidas de um metálico esqueleto talvez um anjo extraterrestre chacinado por ter seis dedos em cada pé não há saída na viagem noturna do corcunda não há saída neste circo dark de lesmas liberais lobotomizadas pela mídia então eu caminho entre a alcateia com um maço de cigarros no bolso e dez moedas de cinco centavos e sigo e persigo uma rota que não existe uma rota rota uma trilha para fora dessa cova onde talvez quem sabe seja possível desescrever-me anular-me excluir-me para sempre dessa página.



PORTRAIT X

And all of the senses were amputated

Luís Carlos Patraquim

however the spider weaves its web expelling its spinneret threads of dropped silk converted into moorings in the surrounding walls spilling a journey into the handwritten night without fear of disillusionment of the immense journey in ambiguous curvatures to the slow corrosion of everything we search between stars and vértebras for a way out of the insanity an escape from this inferior fortress where Trump-Nazis skinned females and hordes of Huns roar with rage in the ruby streets mobs of dark zombies of the plasma television screens battered blacks battered trans battered whores vehicle lights expanding multiplying shanties and the dead exposed in showcases for hitler’s tantric parties for obama’s tantric parties for israel’s tantric parties they celebrate phalluses they celebrate phalluses with needlepoint in a carnival parade of Neanderthal skull death this march of insane readers of the New York Times these solitary insane readers these insane readers of the newspaper these insane readers of völkischer beobachter there is a pure heaven i know in some dimension of mind some pure dimension i know in the sutra in the tantra in the veda but here legions of dobermans salute the brilliant colonel ustra brainlessly congregate in churches to praise the holy dollar the holy tithe the holy star of david neanderthal skull this tetric space where burning gargoyles twisted from a metallic skeleton maybe an extraterrestrial angel slaughtered for having six toes on each foot there is no way out from the hunchback’s night trip there is no way out of being in this dark circus of liberal slugs lobotomized by the media so i walk between the pack with a packet of cigarettes in my pocket and ten nickels and i follow and i pursue a route that does not exist a route a trail out of that pit where maybe who knows maybe it is possible to extricate myself to null myself forever preclude myself from that page.

 
ANTILABIRINTO

éstos mis alarmados compañones.

César Vallejo

À desordem de pensamentos escuros —
figuras foscas, restos roídos
nos escaninhos
da memória.
Este é o meu braço esquerdo
que por sua conta
recusou ser treva.
Este é o meu braço direito
avesso a considerações
indelineável como um pesadelo.

Absurdidade, minha fêmea
entulhada em meu desterro.
Tudo são retalhos,
figuras em folhas-de-flandres
refratadas em meu próprio minério.
Morde-se, minha memória.
Nenhuma similitude
com o lameiro do cotidiano.
Estamos quites. Ensarilhados
em nosso nevoeiro.

Absurdidade, minha fêmea
reverbera em meus ossos:
estas quinas sem remate;
estas quinas de um antilabirinto
que sozinho percorro.
Esta é a minha clavícula;
esta é a carantonha com que insulto
as febres no espelho. Porque nada
faz sentido. Estamos quites.
Ensarilhados em nosso nevoeiro.

Absurdidade, minha fêmea
esta é a minha língua deformante,
meus jogos dissuasórios.
Porque nada faz sentido, nada.
Anjos pictóricos de estranhas asas
anunciam o próximo massacre:
corpos carbonizados numa aldeia
da Nigéria. Dois mil mortos.
Nenhuma repercussão na mídia.
São apenas negros: quem se importa?


ANTILABYRINTH

these are my alarmed companions

César Vallejo

The disorder of dark thoughts —
dull figures, gnawed remains
in the pigeonhole
of memory.
This is my left arm
that on its own account
has refused to be dark.
This is my right arm
averse to consideration
indecipherable as a nightmare.

Absurdity, my female
crammed in my exile
everything is remnants
figures in tinplate
refracted in my own ore
my memory bites itself.
Dissimilar to the quagmire of daily life.
We are equal.  Troubled
In our fog.

Absurdity, my female
reverberates in my bones:
these edges without end
these edges of an antilabyrinth
that all alone I traverse
this is my clavicle
this is my horrible appearance with which I insult
the fevers in the mirror. Because nothing
makes sense. We are free.
Troubled in our fog.

Absurdity, my female
this is my deformed tongue
my deformed games.
Because nothing makes sense, nothing.
Strange wings of pictorial angels
announce the next massacre
charred bodies in a Nigerian
village.  Two thousand dead.
Not one repercussion in the media.
They are only black: who cares?

Translated by Sean Negus, and edited by Scheila D. Sondré

NOTA SOBRE OS POEMAS
 Horácio, em sua Arte poética, escreveu o conhecido adágio ut pictura poiesis, que a partir da mímese aristotélica aproxima as técnicas da pintura às da poesia. O conceito será recorrente no barroco, especialmente no gênero poético conhecido como retrato, praticado por poetas como Don Francisco de Quevedo, em composições como A un retrato de don Pedro de Girón, duque de Osuna. Na presente coleção de poemas, que integra uma trilogia de plaquetes, futuramente reunidas em um único volume, adotamos o retrato como forma poética, abordada de modo bastante livre, sem nos atermos aos tratados dos preceptistas clássicos.

O que as peças incluídas nesta série guardam em comum com o retrato barroco é a descrição, ainda que elíptica, alusiva, fragmentária, metafórica, alegórica, de fatos e personagens reais, situados em anos recentes, que a nosso ver são exemplos trágicos dos acontecimentos recentes em nosso país. Os três volumes dos Cadernos bestiais se propõem exatamente a registrar, por meio da poesia, um momento da história nacional, iniciado em 2013 e ainda não concluído, de destruição da democracia, do estado de direito e das liberdades civis. Sendo assim, muitos dos poemas deste volume remetem a atos de violência cometidos contra a população:

Retrato IV refere-se a Francisca das Chagas Silva, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Miranda do Norte, no Maranhão, assassinada a mando de fazendeiros da região, com
requintes de crueldade: seu corpo foi encontrado nu, com sinais de estupro, estrangulamento e perfurações. “O simbolismo desta imagem, é do escárnio de como são tratadas as reivindicações e a luta das mulheres para serem vistas, tratadas e respeitadas na lei e na vida como seres humanos”, comentou Isis Tavares Neves, presidenta da CTB-MA.

Retrato V foi escrito em homenagem aos trabalhadores rurais sem terras assassinados em abril de 2016 no Acampamento Dom Tomás Balduíno, no Paraná.

Retrato VI foi inspirado em um morador de rua da Avenida Paulista, na cidade de São Paulo.

Retrato VII recorda o massacre de 19 jovens pobres e negros ocorrido em agosto de 2015 em Barueri e Osasco, no estado de São Paulo, por policiais militares.

Retrato VIII celebra os estudantes secundaristas que ocuparam mais de mil escolas públicas no país, em 2016, em protesto contra a aprovação da PEC 55 no Senado, que congela por vinte anos os investimentos públicos na educação e na saúde. Antilabirinto, por sua vez, recorda o massacre de duas mil pessoas na Nigéria, por um grupo fundamentalista, que não
obteve repercussão similar ao de atentados na França ou na Alemanha, por se tratar de um país africano, logo, distante dos centros de poder que alimentam a mídia.

Nosso propósito, em todas essas composições, não foi o de realizar jornalismo, historiografia ou crônica de época, mas poesia – suja, impura, manchada de história, mas que em nenhum momento abdica do artesanato de linguagem, da inventividade verbal que define a poesia como arte. 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

CURSO 'A POESIA E O CINEMA"















Bibliografia:


ANDRADE, Oswald. Pau Brasil. São Paulo: Editora Globo, 2011.

________. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Editora Globo, 2012.

ASSUNÇÃO, Ademir. Zona branca. Curitiba: Travessa dos editores, 2006.

­­­­­________. Cinemitologias. Londrina: Atrito Art, 2000. 

BARBOSA, Frederico. Rarefato. São Paulo: Iluminuras, 1990.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2014.

BERNADET, Jean Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2011.

CAMPOS, Haroldo. Ideograma. Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo: Edusp, 2000.

CORONA, Ricardo. Cinemaginário. São Paulo: Iluminuras, 1999.

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

MACIEL, Maria Esther, e SEDLMAYER, Sabrina (org.). Textos à flor da tela. Editora da Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

________. O cinema enciclopédico de Peter Greenaway. São Paulo: Editora da Unimarco, 2004. 


MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Belo Horizonte: Itatiaia, s/d.

MAIAKOVSKI, Vladimir. Poemas. Tradução: Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2017.

LOPES, Rodrigo Garcia. Nômada. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 1990.

SCHNAIDERMAN, Boris. A poética de Maiakovski. São Paulo: Perspectiva, 1978.



Filmografia:

A greve, de Eisenstein

Outubro, de Eisenstein

Cine-Olho, de Dziga-Vertov

M, O vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang

O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais

O cão andaluz, de Luís Buñuel e Salvador Dali

O livro de cabeceira, de Peter Greenaway


UM POEMA DE JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES



HORIZONTE          

a janela enquadra
quase ao pé
um jardim
uma faixa de areia
e adiante
um lance de mar
e ainda além
um trecho de terra
que antecipa
uma linha de montanhas

a janela (não) enquadra
o ar maculado
(escórias escárnios)
o estertor dos músculos
acionado pelo trânsito dos ruídos
a tensão de ofensas ascos
lacerações (acúmulo
de escombros)

entre o que a janela
e o que não
toda uma vida (oculta)
relances limites
algumas disposições
nesgas de perspectivas
traços de razão

sim o que insistente
degrada o quadro
é tudo tudo
menos
este crespo cansaço e talvez
a música de sua imaginação 

UM POEMA DE DONIZETE GALVÃO



LIVRO DE CABECEIRA

Rói as unhas,
os cantos dos dedos
e os nós da mão
até que doer
seja uma forma
de esquecimento.
Lanha-se com
caco de vidro
cada pedaço da pele
para que se auto-revele
a urdidura de cicatrizes,
incunábulo, xilogravura,
esgar de máscara:
a dor como escritura.



UM POEMA DE CLAUDIA ROQUETTE-PINTO


NO ÉDEN

peça a ela que se desnude
começa pelos cílios
segue-se ao arame dos
utensílios diários
(insônia alinhavando-se
de tiros,
a infância       seus disfarces)
é preciso
que se arranque toda a face
deixar que os olhos descansem
lado a lado com os sapatos
na camurça oscilante
de um quarto
isso, se quer (sequer desconfia)
tocar o que se fia (um par
de presas, topázios)
entre os vãos das costelas
abra o fecho ela desfecha
no escuro o quadrante onde vaza

a luz e suas arestas

UM POEMA DE ADEMIR ASSUNÇÃO



OS LEÕES ESTÃO BRINCANDO  NO JARDIM


Dentes gelados, unhas à mostra

o leão arranha levemente

a pele de puro gesso: estátua branca

Peônias farfalham mudas

ante a imaginação selvagem e furiosa

vento vento vento

na tarde de abismos, constelações

de leões, centauros prontos para o bote,

o amor perigoso, atado ao tudo

ou nada: um par de olhos diante


de sua máscara de oxigênio