Claudio Daniel
Domenico Losurdo, em sua recente visita a São
Paulo, realizou palestra no Sindicato dos Engenheiros sobre o centenário da
revolução russa. Losurdo, professor de História da Filosofia na Universidade de
Urbino, na Itália, e um dos mais conceituados intelectuais marxistas da
atualidade, com vários livros publicados no Brasil (entre eles, Fuga da história?), apresentou a ideia,
para alguns controversa, de que a democracia, tal como a conhecemos no
Ocidente, não seria possível sem o comunismo.
Como assim, perguntará, perplexo, o coxinha brasileiro? A democracia não
é obra do capitalismo? Não exatamente, responderia\ o autor italiano. Quando
Marx e Engels publicaram o Manifesto Comunista, em 1848, a grande maioria da
população, na Europa e nos Estados Unidos, não desfrutava de nenhum dos
direitos civis e políticos básicos que, hoje em dia, identificamos com a
democracia: as mulheres, os negros e os trabalhadores assalariados não tinham o
direito de voto, que era masculino, branco e censitário. A grande maioria da
população, portanto, estava excluída de qualquer tipo de participação política
institucional, era submetida a jornadas de trabalho extenuantes, sem direitos
trabalhistas, e praticamente não gozava do acesso a serviços públicos de
qualidade em educação e saúde.
Os negros norte-americanos eram proibidos de
casar ou ter relações sexuais com mulheres brancas, conforme uma legislação que
recordava, em muitos aspectos, as Leis de Nuremberg, do III Reich nazista, não
participavam das eleições, recebiam salários menores que os trabalhadores
brancos, não tinham acesso à universidade e eram vítimas frequentes de
linchamentos, que nos EUA tinham o caráter de atração pública: a tortura e
assassinato de negros eram vistos por centenas de pessoas, inclusive mulheres e
crianças, como se fosse um programa de entretenimento de televisão dos dias de
hoje. Conforme escreve Losurdo no artigo Revolução
de outubro e democracia no mundo, publicado no livro 100 anos de revolução russa: legados e lições (São Paulo: Anita
Garibaldi, 2017): “Para assistirem ao linchamento, as crianças podiam gozar de
um dia livre nas escolas. O espetáculo podia incluir a castração, o escalpelamento,
as queimaduras, o enforcamento, os disparos de armas de fogo. Os souvenirs para os adquirentes podiam
incluir os dedos das mãos e dos pés, os dentes, os ossos e até os órgãos
genitais das vítimas, assim como postais coloridos do evento”. Em meados da
década de 1960, os negros norte-americanos ainda estavam confinados a um regime
de segregação racial similar ao do apartheid
na África do Sul, sentavam-se em um lado do ônibus só para eles, afastados dos
bancos reservados aos brancos, usavam banheiros diferentes e eram vítimas
frequentes de ataques terroristas da organização Ku Klux Klan. Até hoje, os negros
norte-americanos não conquistaram a plena igualdade de condições em relação aos
brancos, sendo o grupo social mais atingido pela miséria e pela violência
policial nas cidades norte-americanas e ocupam a maior porcentagem entre os
presos nos EUA, estimada em 2,5 milhões de pessoas (a maior população
carcerária do mundo, dez vezes maior que a da Coreia do Norte, de acordo
informe divulgado pela ONU).
Na periferia dos países capitalistas
hegemônicos, por outro lado – na Ásia, África e América Latina – as populações
locais sofreram, ao longo do século XIX (quando foi publicado o Manifesto Comunista) até metade do
século XX, todos os horrores da ocupação
colonial ou semicolonial: saque das fontes de matérias-primas e outras riquezas
naturais como o petróleo, gás, ouro, pedras preciosas, carvão vegetal etc. --,
exploração brutal da mão-de-obra nativa, ausência de qualquer resquício de
soberania ou autodeterminação nacional, discriminação racial, genocídio (como o
praticado pelo rei Leopoldo II da Bélgica no Congo ou pelo governo britânico
chefiado por Winston Churchill na Índia).
Esta situação se manteve praticamente
inalterada até 1917, quando acontece a Revolução de Outubro, na velha Rússia
czarista, liderada pelo Partido Bolchevique de Lênin, que provoca a maior
mudança política, econômica, social e cultural do século XX. Já nos primeiros
anos do poder soviético, as mulheres conquistam o direito ao sufrágio
universal, participam do mercado de trabalho em igualdade de condições e de
direitos com os homens, ingressam nas universidades, conquistam o casamento
civil, o direito ao divórcio e ao aborto e participam ativamente da
administração pública: a primeira mulher a exercer o cargo de ministra no mundo
foi a soviética Alessandra Kolontai, no governo de Lênin. Os trabalhadores não
apenas conquistam o direito ao sufrágio universal, sem nenhuma restrição de
gênero, escolaridade ou de renda (algo inédito na Europa até então), como
passam a eleger os diretores de fábricas e fazendas e a controlar a
administração das empresas, por meio das equipes do Controle Operário, que
tinham autonomia para examinar todos os documentos de uma empresa, para
fiscalizar a gestão. O governo soviético promulgou uma nova Constituição em
1936, durante o governo de Stalin, que garantia
a plena igualdade de direitos entre homens e mulheres, brancos e negros, vetando qualquer prática racista, antissemita
ou xenofóbica. Os direitos conquistados pelas mulheres, trabalhadores e
comunidades étnicas na União Soviética só foram estendidos aos países da Europa
Ocidental a partir do final da Segunda Guerra Mundial, ou seja, trinta anos após
a Revolução de Outubro, e, em alguns casos, como nos Estados Unidos, os negros
só obtiveram plenos direitos civis a partir do final da década de 1960. A
conquista de direitos democráticos no Ocidente não aconteceu de forma tranquila,
pacífica, mas foi o resultado de greves, manifestações e lutas políticas,
muitas delas lideradas pelos comunistas. O estado de “bem estar social”
europeu, por sua vez, surgiu também no segundo pós-guerra, como resultado dos
investimentos do Plano Marshall para a reconstrução dos países europeus e
sobretudo do medo capitalista da insatisfação popular e do possível avanço da
revolução socialista na Europa Ocidental, após o seu êxito na metade oriental
do continente: tratava-se de ceder os anéis para não se perder os dedos.
A democracia burguesa e o “estado de bem
estar social”, portanto, são fatos recentes na história ocidental, têm pouco
mais de 70 anos e nada indica que sobrevivam por muito mais tempo: hoje, a democracia, tal como a conhecemos, começa a ser um
entrave para os interesses do grande capital financeiro, não apenas no Brasil e
na América Latina, mas também na Europa e nos EUA. Se antes a democracia era
condição para o desenvolvimento e estabilidade do sistema capitalista, agora
ela deixa de ser imprescindível a esse mesmo desenvolvimento, pelas crescentes
reivindicações da maioria da população, incompatíveis com a desejada
concentração de renda pelos grandes grupos erconômicos . É possível que surjam
novos sistemas autoritários, como acontece na Ucrânia, em que os interesses do
capital se sobreponham a direitos sociais históricos da juventude, dos
trabalhadores, mulheres, negros e outras camadas populares. Não será um retorno
ao fascismo clássico, da década de 1930, mas um novo fascismo high tech, baseado no modelo de economia
neoliberal, na incorporação de novas tecnologias, na destruição das políticas
públicas, na remoção dos últimos vestígios keynesianos e
social-democratas, no crescimento da desigualdade e
da exclusão social e na redução crescente dos direitos sociais, em nome do
combate ao terrorismo ou a qualquer outro “vilão” criado pelo discurso único da
mídia hegemônica, que fortalece o preconceito racista e xenofóbico contra as
comunidades muçulmanas para justificar as guerras de rapina no Oriente
Médio e a ocupação ilegal da Palestina pelas forças sionistas. Sinais preocupantes nesse sentido podem ser registrados
desde a queda da União Soviética e do bloco socialista europeu, entre
1989 e início da década de 1990: nós assistimos a uma escalada contínua de
agressões imperialistas – no Iraque, Afeganistão, Iugoslávia, Somália, Líbia,
Síria, para citarmos poucos países --, golpes de estado, como aconteceram no
Paraguai, Honduras, Ucrânia, Brasil, e a uma onda conservadora que se aproxima,
cada vez mais, do novo fascismo, como podemos verificar nas recentes eleições
nos Estados Unidos, França e Alemanha. O mundo
unipolar, regido pela lógica de mercado e pelo discurso único da mídia, é um
lugar cada vez mais perigoso e o século XXI promete ser um período de
acirramento da luta de classes, com consequências totalmente imprevisíveis.