Claudio Daniel
Leonardo da
Vinci pintou o afresco A santa ceia (ou
A última ceia) entre 1495 e 1498, em
Milão. A obra representa a última reunião de Jesus com os seus discípulos,
antes de ser preso, julgado e crucificado, conforme relata o texto bíblico. Gostaria
de propor uma paródia da famosa pintura do artista italiano, em que Jesus divide
o pão e o vinho com outros convidados: Marx, Engels, Lênin, Stalin, Mao, Gramsci,
Rosa Luxemburgo, Fidel Castro, Carlos Marighella, Ho Chi Minh. Claro: esse quadro,
que reúne revolucionários de diferentes época e países, é alegórico, sendo a alegoria, conforme definição do retórico romano
Quintiliano, do século III d.C., uma figura de linguagem em que o pensamento é
construído por uma série de metáforas. Ou ainda: alegoria é a formulação de
ideias abstratas por meio de imagens concretas. No caso do presente artigo, o
quadro alegórico representa o tema que discutiremos a seguir: é possível
conciliar espiritualidade e militância política, ou, mais precisamente,
marxismo e religião?
Sem dúvida, o tema é polêmico e pode suscitar inúmeras respostas, sendo a mais superficial a seguinte: não, não é possível a conciliação, porque o marxismo é ateu e inimigo da religião. Sem dúvida, a filosofia de Marx é materialista, ou seja, considera o universo, a natureza e a sociedade como resultados da interação de diferentes energias, fenômenos e agentes materiais, e não como criação mágica de uma entidade sobrenatural, como lemos no livro do Gênese; também considera que os fatos da vida social decorrem das relações de poder entre as classes sociais, e não da vontade divina. Nesse aspecto, há uma divergência radical entre o pensamento dialético marxista e a metafísica judaico-cristã. Porém, não é a especulação filosófica abstrata que afasta ou aproxima as duas doutrinas, e sim a atuação política e social das instituições religiosas.
As igrejas católica, anglicana, ortodoxa, luterana, para citar poucos exemplos, no âmbito do cristianismo, mantiveram, por séculos, estreitos vínculos com a aristocracia europeia, com o regime monárquico, com a propriedade feudal, e posteriormente com a moderna burguesia, o regime republicano democrático-burguês e a livre iniciativa da sociedade industrial. Por conta desses vínculos, que garantiram às igrejas inúmeros privilégios – desde a posse de terras até a isenção de impostos, a posse de emissoras de rádio e televisão e a participação acionária em grandes bancos privados –, o discurso religioso convencional busca convencer os mais pobres de que a sua situação material precária é fruto da vontade divina, e que uma possível mudança em sua qualidade de vida viria, também, dessa mesma vontade sobrenatural, representada na Terra por determinada instituição religiosa, com a sua hierarquia eclesiástica, livros canônicos, liturgias, sacramentos, dogmas, práticas devocionais e concepção de vida e de mundo. Caso o crente deseje obter sucesso material, deve fazer promessas aos santos, submeter-se a penitências, rezar muito ou simplesmente doar altos valores à igreja, em troca da intermediação que o padre ou bispo fará a seu favor junto à divindade. Por conta de tais práticas, Marx declarou que “a religião é o ópio do povo”, pois em sua época o que ele verificou foi a aliança entre os clérigos e os poderosos para iludir o povo, explorar a sua capacidade de trabalho e subtrair as suas posses, quando não para justificar a escravização de povos ameríndios ou africanos e as guerras para conquista de colônias, onde as metrópoles iriam explorar riquezas como ouro, prata, especiarias e pedras preciosas, sob o pretexto da missão evangelizadora e civilizatória (nos tempos atuais, os Estados Unidos agridem outros países em nome da “liberdade” e da “democracia”, como fizeram na ex-Iugoslávia, Iraque, Líbia, Síria e Afeganistão).
Na Idade Média, a teologia cristã considerava que os reis tinham direito ao poder por um plano divino, sendo a monarquia a realização temporal do plano traçado pelo Altíssimo. Essa doutrina não esteve em vigor apenas no pensamento católico, mas também no anglicano – o soberano do trono inglês é também o sumo-pontífice, mesmo nos dias atuais – e ortodoxo – basta lembrarmos do caso da Rússia, onde a Igreja Ortodoxa esteve ao lado do czar Nicolau II até a sua queda, com a revolução de 1917, declarando-o santo após a sua morte.
Se fossemos fazer uma lista com exemplos contemporâneos da relação íntima entre as instituições religiosas e os privilégios das elites ela seria imensa, basta lembrarmos o apoio de igrejas cristãs aos golpes militares na América Latina, nas décadas de 1960-1970, o alinhamento de rabinos e pastores neopentecostais com o regime sionista de Israel, responsável pelo genocídio humano e cultural do povo palestino, a participação dos “bispos” (?) como Silas Malafaia e Marcos Feliciano nas marchas fascistas que resultaram na deposição da presidenta legítima do Brasil, Dilma Rousseff, ou a bênção do cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, à “ração” para pobres proposta pelo alcaide João Dória Jr. (P$DB), a partir de resíduos alimentares próximos à sua data de vencimento. Podemos recordar também o obscurantismo das seitas neopentecostais, como a Assembleia de Deus, Renascer em Cristo, Igreja Universal do Reino de Deus, entre muitas outras, que defendem o fechamento de museus, a censura artística, a “cura gay”, a proibição total do aborto (mesmo em casos de estupro ou de risco de vida para a gestante), a perseguição aos cultos afro-brasileiros, como a umbanda e o candomblé, a discriminação de mulheres, homoafetivos ou afrodescendentes, entre outros absurdos que ferem a democracia, a liberdade individual e o estado laico. No Congresso Nacional brasileiro, a Bancada Evangélica tem apoiado a aprovação dos projetos mais retrógrados, como as reformas previdenciária, trabalhista e a “flexibilização” do conceito de trabalho escravo, para dificultar as ações de fiscalização nas grandes propriedades rurais, onde ainda existe esse triste resquício do período colonial.
Todos esses fatos revelam o caráter profundamente conservador de inúmeras igrejas, tradicionais ou recém-inventadas, porém, isso não significa que TODOS os religiosos sejam reacionários: para que a nossa análise seja justa, precisamos recordar também a participação política de padres e freiras na resistência à ditadura militar no Brasil, na defesa da anistia e pela volta das eleições diretas, o quer só aconteceu em 1989, e ainda a criação das Comunidades Eclesiais de Base, inspiradas na Teologia da Libertação, na década de 1980, com o objetivo de organizar e conscientizar a população mais pobre para a luta em defesa de seus direitos. Religiosos como Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga, Frei Leonardo Boff e Frei Beto, para citarmos apenas quatro nomes bem conhecidos, destacaram-se nas lutas democráticas, e inúmeras lideranças eclesiásticas sofreram prisões e torturas nos “anos de chumbo” do regime militar. A Pastoral da Terra, ligada também à Igreja Católica, realiza até hoje importantes ações de solidariedade junto aos trabalhadores rurais, denuncia os assassinatos de lideranças camponesas por jagunços a mando do latifúndio e coleta dados importantes para a compreensão do problema agrário no Brasil. Lideranças católicas identificadas com as causas sociais estiveram ao lado dos metalúrgicos que realizaram grandes greves no ABC paulista, no final da década de 1970, e impulsionaram a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e, mais tarde, da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Após o golpe de estado de 2016 e o início da mais violenta ofensiva contra os direitos sociais já registrada no Brasil, setores progressistas das igrejas tradicionais – católicas, luteranas, metodistas, da umbanda e do candomblé, entre outras – tem estado presentes nas manifestações em defesa da volta da democracia e da manutenção dos direitos ameaçados pelo governo ilegítimo de Michel Temer. Isso sem falarmos dos pronunciamentos de autoridades como o Papa Francisco, que tem buscado recuperar a “opção preferencial pelos pobres”, deixada de lado por seus antecessores, João Paulo II e Bento XIII. Assim como há contradições na Igreja Católica entre setores progressistas e reacionários, o mesmo acontece em outras religiões, o que apenas evidencia a polarização entre pobres e ricos que caracteriza o sistema capitalista.
A resposta à pergunta que dá título ao presente artigo, portanto, é: sim, é possível alguém ser socialista e cristão, ou budista, ou espírita, ou muçulmano, ou adepto de qualquer outra denominação religiosa, desde que apoie a luta da classe trabalhadora em defesa de seus direitos. A questão aqui não é metafísica, mas ética e política. O próprio fundador do cristianismo, aliás – aquele que chicoteou mercadores no templo, desafiava autoridades romanas e rabínicas, distribuía pão e peixe para os pobres e impediu o apedrejamento de uma mulher acusada de adultério –, é autor da célebre frase: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no céu”. Jesus Cristo, o palestino, tem a minha total admiração.
NOTA: o autor do presente artigo nasceu em família católica, foi ateu por quase toda a vida, depois frequentou templos hindus, de umbanda e de candomblé. Hoje, considera-se zen-budista, e em nenhum momento essa escolha por um caminho espiritual entrou em conflito com a sua militância no Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Sem dúvida, o tema é polêmico e pode suscitar inúmeras respostas, sendo a mais superficial a seguinte: não, não é possível a conciliação, porque o marxismo é ateu e inimigo da religião. Sem dúvida, a filosofia de Marx é materialista, ou seja, considera o universo, a natureza e a sociedade como resultados da interação de diferentes energias, fenômenos e agentes materiais, e não como criação mágica de uma entidade sobrenatural, como lemos no livro do Gênese; também considera que os fatos da vida social decorrem das relações de poder entre as classes sociais, e não da vontade divina. Nesse aspecto, há uma divergência radical entre o pensamento dialético marxista e a metafísica judaico-cristã. Porém, não é a especulação filosófica abstrata que afasta ou aproxima as duas doutrinas, e sim a atuação política e social das instituições religiosas.
As igrejas católica, anglicana, ortodoxa, luterana, para citar poucos exemplos, no âmbito do cristianismo, mantiveram, por séculos, estreitos vínculos com a aristocracia europeia, com o regime monárquico, com a propriedade feudal, e posteriormente com a moderna burguesia, o regime republicano democrático-burguês e a livre iniciativa da sociedade industrial. Por conta desses vínculos, que garantiram às igrejas inúmeros privilégios – desde a posse de terras até a isenção de impostos, a posse de emissoras de rádio e televisão e a participação acionária em grandes bancos privados –, o discurso religioso convencional busca convencer os mais pobres de que a sua situação material precária é fruto da vontade divina, e que uma possível mudança em sua qualidade de vida viria, também, dessa mesma vontade sobrenatural, representada na Terra por determinada instituição religiosa, com a sua hierarquia eclesiástica, livros canônicos, liturgias, sacramentos, dogmas, práticas devocionais e concepção de vida e de mundo. Caso o crente deseje obter sucesso material, deve fazer promessas aos santos, submeter-se a penitências, rezar muito ou simplesmente doar altos valores à igreja, em troca da intermediação que o padre ou bispo fará a seu favor junto à divindade. Por conta de tais práticas, Marx declarou que “a religião é o ópio do povo”, pois em sua época o que ele verificou foi a aliança entre os clérigos e os poderosos para iludir o povo, explorar a sua capacidade de trabalho e subtrair as suas posses, quando não para justificar a escravização de povos ameríndios ou africanos e as guerras para conquista de colônias, onde as metrópoles iriam explorar riquezas como ouro, prata, especiarias e pedras preciosas, sob o pretexto da missão evangelizadora e civilizatória (nos tempos atuais, os Estados Unidos agridem outros países em nome da “liberdade” e da “democracia”, como fizeram na ex-Iugoslávia, Iraque, Líbia, Síria e Afeganistão).
Na Idade Média, a teologia cristã considerava que os reis tinham direito ao poder por um plano divino, sendo a monarquia a realização temporal do plano traçado pelo Altíssimo. Essa doutrina não esteve em vigor apenas no pensamento católico, mas também no anglicano – o soberano do trono inglês é também o sumo-pontífice, mesmo nos dias atuais – e ortodoxo – basta lembrarmos do caso da Rússia, onde a Igreja Ortodoxa esteve ao lado do czar Nicolau II até a sua queda, com a revolução de 1917, declarando-o santo após a sua morte.
Se fossemos fazer uma lista com exemplos contemporâneos da relação íntima entre as instituições religiosas e os privilégios das elites ela seria imensa, basta lembrarmos o apoio de igrejas cristãs aos golpes militares na América Latina, nas décadas de 1960-1970, o alinhamento de rabinos e pastores neopentecostais com o regime sionista de Israel, responsável pelo genocídio humano e cultural do povo palestino, a participação dos “bispos” (?) como Silas Malafaia e Marcos Feliciano nas marchas fascistas que resultaram na deposição da presidenta legítima do Brasil, Dilma Rousseff, ou a bênção do cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, à “ração” para pobres proposta pelo alcaide João Dória Jr. (P$DB), a partir de resíduos alimentares próximos à sua data de vencimento. Podemos recordar também o obscurantismo das seitas neopentecostais, como a Assembleia de Deus, Renascer em Cristo, Igreja Universal do Reino de Deus, entre muitas outras, que defendem o fechamento de museus, a censura artística, a “cura gay”, a proibição total do aborto (mesmo em casos de estupro ou de risco de vida para a gestante), a perseguição aos cultos afro-brasileiros, como a umbanda e o candomblé, a discriminação de mulheres, homoafetivos ou afrodescendentes, entre outros absurdos que ferem a democracia, a liberdade individual e o estado laico. No Congresso Nacional brasileiro, a Bancada Evangélica tem apoiado a aprovação dos projetos mais retrógrados, como as reformas previdenciária, trabalhista e a “flexibilização” do conceito de trabalho escravo, para dificultar as ações de fiscalização nas grandes propriedades rurais, onde ainda existe esse triste resquício do período colonial.
Todos esses fatos revelam o caráter profundamente conservador de inúmeras igrejas, tradicionais ou recém-inventadas, porém, isso não significa que TODOS os religiosos sejam reacionários: para que a nossa análise seja justa, precisamos recordar também a participação política de padres e freiras na resistência à ditadura militar no Brasil, na defesa da anistia e pela volta das eleições diretas, o quer só aconteceu em 1989, e ainda a criação das Comunidades Eclesiais de Base, inspiradas na Teologia da Libertação, na década de 1980, com o objetivo de organizar e conscientizar a população mais pobre para a luta em defesa de seus direitos. Religiosos como Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga, Frei Leonardo Boff e Frei Beto, para citarmos apenas quatro nomes bem conhecidos, destacaram-se nas lutas democráticas, e inúmeras lideranças eclesiásticas sofreram prisões e torturas nos “anos de chumbo” do regime militar. A Pastoral da Terra, ligada também à Igreja Católica, realiza até hoje importantes ações de solidariedade junto aos trabalhadores rurais, denuncia os assassinatos de lideranças camponesas por jagunços a mando do latifúndio e coleta dados importantes para a compreensão do problema agrário no Brasil. Lideranças católicas identificadas com as causas sociais estiveram ao lado dos metalúrgicos que realizaram grandes greves no ABC paulista, no final da década de 1970, e impulsionaram a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e, mais tarde, da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Após o golpe de estado de 2016 e o início da mais violenta ofensiva contra os direitos sociais já registrada no Brasil, setores progressistas das igrejas tradicionais – católicas, luteranas, metodistas, da umbanda e do candomblé, entre outras – tem estado presentes nas manifestações em defesa da volta da democracia e da manutenção dos direitos ameaçados pelo governo ilegítimo de Michel Temer. Isso sem falarmos dos pronunciamentos de autoridades como o Papa Francisco, que tem buscado recuperar a “opção preferencial pelos pobres”, deixada de lado por seus antecessores, João Paulo II e Bento XIII. Assim como há contradições na Igreja Católica entre setores progressistas e reacionários, o mesmo acontece em outras religiões, o que apenas evidencia a polarização entre pobres e ricos que caracteriza o sistema capitalista.
A resposta à pergunta que dá título ao presente artigo, portanto, é: sim, é possível alguém ser socialista e cristão, ou budista, ou espírita, ou muçulmano, ou adepto de qualquer outra denominação religiosa, desde que apoie a luta da classe trabalhadora em defesa de seus direitos. A questão aqui não é metafísica, mas ética e política. O próprio fundador do cristianismo, aliás – aquele que chicoteou mercadores no templo, desafiava autoridades romanas e rabínicas, distribuía pão e peixe para os pobres e impediu o apedrejamento de uma mulher acusada de adultério –, é autor da célebre frase: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no céu”. Jesus Cristo, o palestino, tem a minha total admiração.
NOTA: o autor do presente artigo nasceu em família católica, foi ateu por quase toda a vida, depois frequentou templos hindus, de umbanda e de candomblé. Hoje, considera-se zen-budista, e em nenhum momento essa escolha por um caminho espiritual entrou em conflito com a sua militância no Partido Comunista do Brasil (PCdoB).