Claudio Daniel
Criaturas de corpos
deformados, olhos esbranquiçados e totalmente insanas, que se arrastam pelas
ruas em bandos à procura de carne humana para se alimentarem, os zumbis foram
popularizados pelas histórias em quadrinhos e pelo cinema norte-americano, em
especial os filmes de George Romero, como A
noite dos mortos-vivos e O despertar
dos mortos. Conforme as convenções do gênero, o zumbi é um ser humano que,
após o falecimento, é reanimado por
meios mágicos, mas, devido à lesão cerebral, locomove-se em estado catatônico, de
maneira instintiva, sem discernimento do que faz, sendo por isso mesmo manipulável
por um feiticeiro poderoso. Os zumbis
também podem surgir como consequência da
guerra biológica, contaminação de vírus ou experimentos científicos, conforme
filmes como The walking dead. A crença em zumbis surgiu no Haiti, onde se
pratica um culto religioso de origem africana conhecido como Sèvis Gine
(“Serviço de Guiné”) ou simplesmente Vodu, similar em alguns aspectos à
Santeria cubana, ao Hodu norte-americano e ao Candomblé brasileiro, mas com
ênfase maior nas práticas de magia e necromancia, ou evocação dos mortos para a
predição do futuro. No Brasil, a palavra zumbi tem sido utilizada com maior
frequência para designar o típico militante da extrema-direita, que vota em
Bolsonaro, defende a pena de morte, a “cura gay”, a censura, o fechamento de
museus, a agressão a filósofos, o fim dos cursos de história e geografia nas
escolas, o linchamento de moradores de rua e, claro, a intervenção militar.
Assim como as criaturas deformadas dos filmes de Hollywood, nossos zumbis têm pouca
inteligência e informação cultural, exibem gestos e expressões faciais caricaturais,
caráter agressivo, quadro psicológico perturbado e agem em grupos, sob o
comando não de um necromante, mas de uma emissora de televisão com capital
acionário norte-americano.
Um exemplo típico de
ataque zumbi no Brasil pós-golpe de estado aconteceu durante a palestra da
filósofa norte-americana Judith Butler no Sesc Pompeia, em São Paulo, quando ativistas
de extrema-direita do chamado “Movimento Brasil Livre” (MBL), financiados pelos
bilionários Irmãos Koch, fizeram um ato de protesto, na tentativa de impedir o
evento. Exibindo bíblias e um boneco da pensadora, conhecida por suas opiniões
a respeito das questões de gênero, da liberdade de orientação sexual e por sua
crítica ao sionismo, os nazis-zumbis gritavam “Queimem a bruxa!”, como nos
antigos filmes de terror da Universal Pictures, com ecos do Tribunal do Santo
Ofício. Apesar da provocação, que contou com a participação do grotesco
Alexandre Frota, ex-ator de filmes pornográficos e atual ícone do fascismo
tupiniquim, a palestra aconteceu conforme a programação. Ao embarcar no
Aeroporto de Congonhas para voltar a sua casa, porém, Butler e sua companheira Wendy
Brown foram agredidas pela manifestante Celene
Carvalho, que gritava insultos à intelectual norte-americana, como “pedófila”,
“nojenta”, “você não é bem-vinda ao Brasil”. A agressora, que apresenta
evidentes sinais de transtornos psiquiátricos, ficou conhecida em outro
episódio de agressão, dessa vez ao ex-deputado federal Eduardo Suplicy, do
Partido dos Trabalhadores, quando este visitava a Livraria Cultura, também em
São Paulo. Em ambas as ocorrências, Celene Carvalho, ex-candidata à prefeitura
de São Lourenço (MG) pelo PSOL, não sofreu qualquer ação policial ou judicial, e
suas ações permanecem impunes.
Este caso, que alcançou grande repercussão nas redes
sociais, aconteceu na mesma semana em que se destacaram alguns outros fatos,
que terão gravíssimas consequências sociais no país: a entrada em vigor da reforma trabalhista,
aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo “presidente” ilegítimo
Michel Temer (PMDB), que eleva as jornadas de trabalho, reduz salários e tempo
de férias, entre outros ataques às conquistas históricas dos trabalhadores; e a
aprovação no Congresso da PEC 181/15, que criminaliza a prática do aborto em
casos de estupro, contrariando legislação anterior. Proposta pela “Bancada da
Bíblia”, formada por pastores neoevangélicos da Igreja Universal do Reino de
Deus, Renascer em Cristo, Assembleia de Deus e outras seitas fajutas milionárias,
a PEC anula na prática a separação entre Igreja e Estado, que remonta ao
Iluminismo do século XVIII, e criminaliza as mulheres que desejem interromper a
gestação consequente de agressão sexual, o que no Brasil representa um problema
social de proporções alarmantes: apenas em 2016, cerca de 500 mil mulheres
foram vítimas de estupro, sendo 70% delas menores de idade, segundo dados
divulgados pela revista Carta Capital. A aprovação da PEC significa imenso
sofrimento para as mulheres, especialmente as mais pobres, que além da
violência física e psicológica poderão ser processadas, presas, padecerem
mutilação ou morte caso abortem ilegalmente em precárias clínicas clandestinas,
uma vez que não poderão mais contar com os serviços públicos de saúde para a
interrupção da gestação. A misoginia no Brasil agora é política de estado.
A influência neoevangélica na definição de políticas
públicas, após o golpe de estado de 2016, é visível inclusive no Ministério da
Cultura (MinC): o atual ministro ilegítimo da pasta, Sérgio Sá Leitão, propõe
uma nova minuta à Lei Rouanet, vetando propostas que “vilipendiem a fé
religiosa, promovam a sexualização precoce de crianças e adolescentes ou façam
apologia a crimes ou atividades criminosas”. Conforme essa minuta, obras como “Hamlet”,
de Shakespeare, ou “Crime e castigo”, de Dostoiévski, jamais receberiam financiamento
do MinC. A cruzada contra as artes avança no Brasil de maneira assustadora,
como não se via desde o golpe militar de 1964: por pressão dos zumbis do “Movimento Brasil
Livre”, o Santander Cultural de Porto Alegre retirou a mostra Queermuseu, por
suposta apologia da “pedofilia”, o Museu de Arte Moderna de São Paulo impõe restrição por faixa etária para uma
exposição sobre sexualidade e cerca de 600 mil zumbis assinam abaixo-assinado
exigindo o fechamento do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, por
apresentar a performance de um artista que se apresentava nu. “Meu filho jamais
pisará em um museu”, declarou mulher zumbi em entrevista transmitida à Rede
Goebbels de Televisão.
A loucura, porém, não para por aqui. Nesta mesma fatídica semana, em que
assistimos a violentos ataques contra os direitos das mulheres, dos
trabalhadores e da liberdade de pensamento e de expressão, o colunista Mário Vítor
Rodrigues, da revista golpista IstoÉ, escreve a seguinte insanidade: “Pelo
bem do País, Lula deve morrer. Eis uma verdade incontestável. Digo, se Luiz
Inácio ainda é encarado por boa parte da sociedade como o prócer a ser seguido,
se continua sendo capaz de liderar pesquisas e inspirar militantes Brasil
afora, então Lula precisa morrer” (https://istoe.com.br/lula-deve-morrer/).
Temos aqui mais uma “pérola” que nos faz refletir sobre o caráter fascista da
imprensa brasileira, que em vez de noticiar os fatos com isenção e promover o
pluralismo e o debate de ideias, incentiva golpes de estado, defende processos
judiciais grotescos, típicos de Franz Kafka, calunia, difama e persegue
opositores políticos e agora também propõe, abertamente, o assassinato de Lula,
sem sofrer qualquer tipo de sanção. De onde vem tanto ódio ao ex-presidente,
que retirou 30 milhões de brasileiros da situação de miséria absoluta, tirou o
Brasil do mapa da fome da ONU e ampliou direitos sociais e trabalhistas sem
fazer uma revolução social violenta? Sem
dúvida, há fortes motivações envolvidas na aversão doentia a Lula promovida
pela imprensa brasileira, em especial os interesses do grande capital
internacional, que deseja se apropriar das áreas de pré-sal, dos minérios (como
o nióbio), reservas florestais e outras riquezas naturais brasileiras, mas há
também o componente irracional, que não pode ser minimizado: os seculares
preconceitos da elite brasileira contra os pobres, nordestinos, negros,
mulheres, homoafetivos, considerados seres “inferiores”, que devem ser humilhados
e submetidos à “raça pura” dos senhores de engenho, homens brancos, ricos, cristãos
e heterossexuais. Preconceitos que vêm desde as capitanias hereditárias e que
nos dias atuais são reproduzidos diariamente pela imprensa golpista, fazendo
circular o ódio que produz legiões insanas de zumbis prontos para matar.
P.S. 1: em 2016, cerca de 61 mil brasileiros foram
assassinados, cerca de 7 por hora, número que nos faz pensar que já vivemos
numa guerra civil. Não uma guerra religiosa, social ou ideológica, mas uma
guerra zumbi.
P.S. 2: há poucos dias, os jornais golpistas noticiaram o
leilão de campos de pré-sal em benefício de companhias internacionais como a
Shell, que arremataram por 6 bilhões reservas estimadas em mais de vinte
trilhões de reais.