sábado, 21 de junho de 2014

CLAUDIO WILLER: A JORNADA EM BUSCA DO ENCANTATÓRIO


Poesia como vertigem, experiência visionária no limite entre vida e linguagem. A escritura não como reflexo do cotidiano imediato, mas como construção de uma realidade com sua própria morfologia do desejo. A poesia surrealista é um território onde a lógica habitual, no campo do discurso e da ação, cede lugar à multiplicidade de outras formas possíveis de composição de cor, som, idéia, forma e movimento, símiles ao sonho, aos estados alterados da consciência ou às práticas ancestrais de busca do êxtase. A jornada criativa de Claudio Willer, iniciada há 50 anos, com a publicação de Anotações para um apocalipse (1964), é embebida pela tradição dos “poetas malditos” – Blake, Rimbaud, Artaud, Lautréamont –, dos autores beats norte-americanos – especialmente Allan Ginsberg e Jack Kerouac –, mas não se resume à mera intertextualidade. Já em seu livro de estreia, publicado quando tinha apenas 24 anos de idade, o autor revela originalidade simbólica e semântica, apresentando um conjunto de poemas em prosa que mesclam referências a viagens, encontros com amigos e vivências a um imaginário pessoal que recombina e transforma cenários e situações em imagens como estas: “O rio e seus afluentes de tóxicos, seus igarapés de cocaína, sua tumultuosa visão de serpentes. (...) Assim foi que se dissociaram as partes do meu corpo: as vísceras emaranhadas na copa de um coqueiro, as mãos despenhadas em crateras, os pés calcados em um formigueiro em planície árida, a cabeça congelada e fixa em uma encosta, os olhos vidrados para sempre fitando o poente, os genitais perdidos na correnteza de algum rio que nunca chegará ao oceano”. Podemos recordar, aqui, o conceito de Paul Reverdy a respeito da imagem poética“não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais as relações das duas realidades forem distantes e justas, tanto mais a imagem será forte, mais força emotiva e realidade poética ela terá”. Este princípio, um dos mantras do surrealismo (antecipado por Lautréamont na conhecida sentença: “o encontro fortuito de uma máquina de costura com um guarda-chuva sobre uma mesa cirúrgica”), é aplicado por Claudio Willer a uma paisagem tropical, brasileira, em que o movimento das águas é associado a entorpecentes e animais míticos, como a serpente (em outros poemas do livro, todos eles compostos via escrita automática, o autor menciona pântanos, gaviões, mangues, musgo, lagos, folhagens e outros flashes de uma floresta imaginária).

A mitologia, aliás, é uma das obsessões do poeta, que no fragmentado citado faz alusão ao desmembramento de Osíris (episódio que pode ser comparado ao assassinato de Orfeu pelas Mênades, que fragmentaram seu corpo, entre outros paralelos mitológicos, incluindo o curioso episódio chinês de Pan Ku). O interesse por xamanismo, ecologia, tradições iniciáticas, gnosticismo e religiões comparadas é algo que distingue a poesia de Claudio Willer e de seus companheiros de geração, como Dora Ferreira da Silva, Roberto Piva e Rodrigo de Haro, dos poetas da geração anterior, mais atentos à tradição formalista e construtivista das vanguardas históricas. É conhecida a frase de Roberto Piva: “não acredito em poeta experimental que não leve uma vida experimental”. A visão utópica dessa geração, porosa a outras formas de conhecimento e de sensibilidade, contrasta com o momento histórico da década de 1960, marcado pelo regime militar, repressão e censura. É possível fazermos outro paralelo aqui, desta vez com a geração beat, contemporânea da primeira Guerra Fria, do racismo e do macarthismo (não por acaso, Claudio Willer e Roberto Piva serão os divulgadores da poesia beat no Brasil, via tradução, artigos e diálogo intertextual).

Dias circulares, publicado em 1976 pela editora de Massao Ohno (que também editou Anotações para um apocalipse) é um livro que reúne poemas em prosa e outros de forma variada, com as linhas dispostas de maneira geométrica na página, numa representação visual do ritmo das palavras e linhas, com o espaço em branco indicando as pausas. O título do volume remete, possivelmente, à ideia de tempo circular, cíclico, dos povos pré-colombianos (ideia compartilhada pelos gregos, chineses e hindus, em contraposição ao conceito retilíneo da história formulado pelo cristianismo e mantido na cultura ocidental); as imagens da natureza permanecem, associadas a conceitos alquímicos ou cabalísticos (“Chesed / geburah / Binah / A Grande Obra”), mas há um elemento novo aqui: a cidade. 

A cidade transfigurada

O modo como Claudio Willer observa (e transforma) a paisagem urbana, porém, nada tem a ver com o realismo de um Cesário Verde: remete, antes, ao olhar alucinado de um Lautréamont, como na peça intitulada Cenas da vida urbana: “A mulher das tatuagens balinesas estende a mão negra na minha direção (...). A mulher das mãos verdes mastigando pedaços de vidro, a mulher dona das harpas, a mulher das antenas de radar, dispõe-se em círculos. Uma aurora boreal afugenta os pigmeus”.  Em outras passagens da composição, o poeta irá misturar estalactites com helicópteros, “rodovias fálicas” com secreções, bicicletas com “palavras côncavas” e “pára-quedas sonolentos”. Tudo é linguagem, parece nos dizer Claudio Willer, ao dissolver o sentido rotineiro das palavras em bizarras composições plásticas. Tudo é encantamento: pois é disso que se trata, nesta poesia – o reencantamento da palavra, da vida e do mundo. Jardins da provocação (1981) é um divisor de águas na obra poética de Claudio Willer, que apresenta poemas de sintaxe mais discursiva, com o ritmo prosódico da linguagem falada. É o livro com mais referências autobiográficas (“Casa de Heloísa”, por exemplo) e traz um manifesto em que o poeta invoca o poder mágico da palavra, com o enfoque da semiologia e da teoria literária. Dos poemas elencados no volume, um dos mais impactantes é a Homenagem a Dashiell Hammett: “uma geração pulou no abismo / mas você foi adiante / ou saltou mais fundo / levantou a tampa da vida / para ver o que havia por baixo / para ver que não havia nada embaixo”.

Estranhas experiências e outros poemas, publicado em 2004, reúne os títulos anteriores, acrescidos de textos inéditos – poemas em prosa, composições com linhas espacejadas, peças híbridas – que têm como leitmotiv o tema da viagem (“a Terra respira / formigas transitam por suas nervuras / arabescos de pássaros / pontuam o pausado discurso das nuvens”). Há diálogos com a tradição literária (“Ruínas romanas”), com o hermetismo, poemas sobre o amor (“É PRECISO QUE SEJAMOS MODERNOS COMO O AMOR”), a cidade, a memória, a loucura (“sua loucura galáxia de disponibilidade / sua loucura cuja história é o avesso da história que estou contando”), todos eles concebidos de acordo com uma peculiar poética em que “TUDO ESTÁ GRAVADO NO AR / e não o fazemos por vontade própria / mas por atavismo”.


 (Artigo publicado na edição de junho da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)