Poesia como vertigem, experiência visionária no limite entre vida e
linguagem. A escritura não como reflexo do cotidiano imediato, mas como
construção de uma realidade com sua própria morfologia do desejo. A poesia
surrealista é um território onde a lógica habitual, no campo do discurso e da
ação, cede lugar à multiplicidade de outras formas possíveis de composição de
cor, som, idéia, forma e movimento, símiles ao sonho, aos estados alterados da
consciência ou às práticas ancestrais de busca do êxtase. A jornada criativa de
Claudio Willer, iniciada há 50 anos, com a publicação de Anotações para um apocalipse (1964), é embebida pela tradição dos “poetas malditos” – Blake,
Rimbaud, Artaud, Lautréamont –, dos autores beats norte-americanos –
especialmente Allan Ginsberg e Jack Kerouac –, mas não se resume à mera
intertextualidade. Já em seu livro de estreia, publicado quando tinha apenas 24
anos de idade, o autor revela originalidade simbólica e semântica, apresentando
um conjunto de poemas em prosa que mesclam referências a viagens, encontros com
amigos e vivências a um imaginário pessoal que recombina e transforma cenários
e situações em imagens como estas: “O rio e seus afluentes de tóxicos, seus
igarapés de cocaína, sua tumultuosa visão de serpentes. (...) Assim foi que se
dissociaram as partes do meu corpo: as vísceras emaranhadas na copa de um
coqueiro, as mãos despenhadas em crateras, os pés calcados em um formigueiro em
planície árida, a cabeça congelada e fixa em uma encosta, os olhos vidrados
para sempre fitando o poente, os genitais perdidos na correnteza de algum rio
que nunca chegará ao oceano”. Podemos recordar, aqui, o conceito de Paul
Reverdy a respeito da imagem
poética – “não pode nascer de uma
comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas.
Quanto mais as relações das duas realidades forem distantes e justas, tanto
mais a imagem será forte, mais força emotiva e realidade poética ela terá”.
Este princípio, um dos mantras do
surrealismo (antecipado por Lautréamont na conhecida sentença: “o encontro
fortuito de uma máquina de costura com um guarda-chuva sobre uma mesa
cirúrgica”), é aplicado por Claudio Willer a uma paisagem tropical, brasileira,
em que o movimento das águas é associado a entorpecentes e animais míticos, como
a serpente (em outros poemas do livro, todos eles compostos via escrita
automática, o autor menciona pântanos, gaviões, mangues, musgo, lagos,
folhagens e outros flashes de uma
floresta imaginária).
A mitologia, aliás, é uma das obsessões
do poeta, que no fragmentado citado faz alusão ao desmembramento de Osíris
(episódio que pode ser comparado ao assassinato de Orfeu pelas Mênades, que
fragmentaram seu corpo, entre outros paralelos mitológicos, incluindo o curioso
episódio chinês de Pan Ku). O interesse por xamanismo, ecologia, tradições
iniciáticas, gnosticismo e religiões comparadas é algo que distingue a poesia
de Claudio Willer e de seus companheiros de geração, como Dora Ferreira da
Silva, Roberto Piva e Rodrigo de Haro, dos poetas da geração anterior, mais
atentos à tradição formalista e construtivista das vanguardas históricas. É
conhecida a frase de Roberto Piva: “não acredito em poeta experimental que não
leve uma vida experimental”. A visão utópica dessa geração, porosa a outras
formas de conhecimento e de sensibilidade, contrasta com o momento histórico da
década de 1960, marcado pelo regime militar, repressão e censura. É possível
fazermos outro paralelo aqui, desta vez com a geração beat, contemporânea da primeira Guerra Fria, do racismo e do
macarthismo (não por acaso, Claudio Willer e Roberto Piva serão os divulgadores
da poesia beat no Brasil, via
tradução, artigos e diálogo intertextual).
Dias circulares, publicado em 1976 pela
editora de Massao Ohno (que também editou Anotações
para um apocalipse) é um livro que reúne poemas em prosa e outros de forma variada, com as linhas
dispostas de maneira geométrica na página, numa representação visual do ritmo
das palavras e linhas, com o espaço em branco indicando as pausas. O título do
volume remete, possivelmente, à ideia de tempo circular, cíclico, dos povos
pré-colombianos (ideia compartilhada pelos gregos, chineses e hindus, em
contraposição ao conceito retilíneo da história formulado pelo cristianismo e
mantido na cultura ocidental); as imagens da natureza permanecem, associadas a
conceitos alquímicos ou cabalísticos (“Chesed / geburah / Binah / A Grande
Obra”), mas há um elemento novo aqui: a cidade.
A cidade transfigurada
O modo como Claudio Willer observa (e
transforma) a paisagem urbana, porém, nada tem a ver com o realismo de um
Cesário Verde: remete, antes, ao olhar alucinado de um Lautréamont, como na
peça intitulada Cenas da vida urbana:
“A mulher das tatuagens balinesas estende a mão negra na minha direção (...). A
mulher das mãos verdes mastigando pedaços de vidro, a mulher dona das harpas, a
mulher das antenas de radar, dispõe-se em círculos. Uma aurora
boreal afugenta os pigmeus”. Em outras
passagens da composição, o poeta irá misturar estalactites com helicópteros,
“rodovias fálicas” com secreções, bicicletas com “palavras côncavas” e
“pára-quedas sonolentos”. Tudo é linguagem, parece nos dizer Claudio Willer, ao
dissolver o sentido rotineiro das palavras em bizarras composições plásticas.
Tudo é encantamento: pois é disso que se trata, nesta poesia – o reencantamento
da palavra, da vida e do mundo. Jardins
da provocação (1981) é um divisor de águas na obra poética de Claudio
Willer, que apresenta poemas de sintaxe mais discursiva, com o ritmo prosódico
da linguagem falada. É o livro com mais referências autobiográficas (“Casa de
Heloísa”, por exemplo) e traz um manifesto em que o poeta invoca o poder mágico
da palavra, com o enfoque da semiologia e da teoria literária. Dos poemas
elencados no volume, um dos mais impactantes é a Homenagem a Dashiell Hammett:
“uma geração pulou no abismo / mas você foi adiante / ou saltou mais fundo /
levantou a tampa da vida / para ver o que havia por baixo / para ver que não
havia nada embaixo”.
Estranhas
experiências e outros poemas, publicado em 2004, reúne os títulos
anteriores, acrescidos de textos inéditos – poemas em prosa, composições com
linhas espacejadas, peças híbridas – que têm como leitmotiv o tema da viagem (“a Terra respira / formigas transitam
por suas nervuras / arabescos de pássaros / pontuam o pausado discurso das
nuvens”). Há diálogos com a tradição literária (“Ruínas romanas”), com o
hermetismo, poemas sobre o amor (“É PRECISO QUE SEJAMOS MODERNOS COMO O AMOR”),
a cidade, a memória, a loucura (“sua loucura galáxia de disponibilidade / sua
loucura cuja história é o avesso da história que estou contando”), todos eles
concebidos de acordo com uma peculiar poética em que “TUDO ESTÁ GRAVADO NO AR /
e não o fazemos por vontade própria / mas por atavismo”.
(Artigo publicado na edição de junho da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)