2. 4 Herberto Helder e o princípio da estranheza
Herberto Helder (1930),
companheiro de geração de Casimiro de Brito e participante do movimento da
Poesia Experimental Portuguesa (PO-EX)[1],
publicou no Jornal de Letras e Artes
de Lisboa, em janeiro de 1963, artigos sobre a poesia clássica japonesa, e
posteriormente dedicou-se à tradução de haicais de Bashô e seus discípulos para
o português, que reuniria mais tarde na antologia O bebedor nocturno, lançada em 1968, que teve sucessivas edições,
sendo a mais recente a de 2010. Conforme Maria Estela Guedes, o fascínio de
Herberto Helder por diferentes discursos étnicos – dos haicais à poesia
esquimó, dos textos orais dos peles-vermelhas aos hieróglifos egípcios, dos cantos
mitológicos pré-colombianos ao Cântico
dos cânticos do Antigo Testamento
– acompanha o escritor desde o início de seu trabalho literário e se manifesta
em diversos outros livros, como As magias,
Oulof e Poemas ameríndios. “Ao verter para o português textos próprios das
culturas e mesmo das liturgias de outros povos”, escreve Maria Estela Guedes,
“HHelder busca uma ancestralidade literária, uma parentela que não pertence ao
foro do DNA, e sim ao da imaginação criadora, ou do sonho, como lhe chama
Alexandrian” (GUEDES, 2010: 53).
Fascinado pelo aspecto mágico ou encantatório das línguas antigas, realçado
pelos jogos sonoros aliterativos, pelas repetições e permutações de vocábulos, Helder
irá pesquisar o artesanato semântico de várias literaturas, para incorporar
procedimentos em seu próprio fazer poético. Conforme Maria Estela Guedes, “as
sonoridades das línguas estranhas, por vezes apreendidas independentemente de
significado, contando mais com o ritmo e a surpresa provocados pelos sons,
aproximam-se da música” (idem, 44) e também dos “jogos infantis” (idem, 45),
próximos a certas experiências dadaístas e surrealistas, como as praticadas por
Antonin Artaud. “Glossolalias e fenômenos fonéticos com o mesmo impacto estão
presentes n’As magias, em títulos de obras, como Eloi Lelia Doura e Oulof,
e até em textos jornalísticos”, observa a autora (idem, 44). Em Photomathon & vox (1979), por
exemplo, Helder cria insólitas palavras abstratas como LGOGERYCHWYRNDROBWLLLLANTYSILIOGOGOGOCH
(idem). Poeta obscuro[2]
como Heráclito, Helder se relaciona “com o misterioso, o mágico, a Esfinge que,
às portas de Tebas...” (idem, 45) e faz da tradução uma forma de máscara
dramática ou heteronímia. Ou ainda, como diz Maria Estela Guedes: “O poeta,
mediante a tradução, participa diretamente na cultura a que pertence o poema
tribal, apropriando-se dela. Essa apropriação tem consequências intelectuais e
estéticas” (idem, 52) que são diferentes do enfoque colonialista, que banaliza
ou descaracteriza a cultura do Outro, seja ele africano, oriental ou ameríndio,
para dominá-lo. O diálogo estabelecido por Herberto Helder com as culturas
não-ocidentais vai em sentido diverso: “No momento em que o poeta assimila o
elemento exótico, hibridando-o com o endótico, contraria a tendência
colonialista e simultaneamente cria algo de novo, no plano artístico” (idem,
52-53).
Os textos japoneses traduzidos
por Herberto Helder em O bebedor noturno
estão divididos em três seções: Poemas
zen, conjunto de 16 dísticos sem informação sobre autoria ou procedência; Canções de camponeses do Japão, quatro
peças breves traduzidas na forma do quarteto; e Quinze haikus japoneses, seleção de poemas de Bashô, Kikaku,
Kyorai, Shikô, Buson, Issa e Ransetsu. Conforme observa Maria Estela Guedes, “uma
vez que raramente identifica as suas fontes, vamos partir do princípio que
verte do castelhano, do francês e do inglês” (idem, 50). Helder não reivindica
a tradução como transposição rigorosa do sentido de uma língua para a outra,
não adiciona notas explicativas, referências bibliográficas ou ensaios críticos
para expor o seu método tradutório; o seu diálogo com a poesia japonesa não é o
trabalho de um erudito, mas de um poeta acredita na capacidade imaginativa, na
intertextualidade e na mestiçagem para evocar rutilâncias dos textos originais.
Em seus “poemas mudados para o português” (subtítulo de O bebedor nocturno), Helder realiza “uma apropriação da cultura
transportada no texto étnico, e seguidamente uma recriação de tais elementos na
língua-mãe. Quer isso dizer que o resultado é sempre um texto mestiço” (idem).
A prática tradutória de Helder afasta-se da historicidade e da busca de uma
pureza original, da tentação ilusória de restabelecer uma suposta verdade de um determinado passado,
sugerindo mesmo “a impossibilidade de resgatar o passado acumulado”, conforme
diz Izabela Leal no ensaio Da memória à tradução: o erro das musas distraídas (in JACOTO, 2011: 32). Segundo a autora, “no caso da tradução, há de
fato uma limitação, que é a impossibilidade de recuperar o que está dito no
texto original. A tradução nos faz ver o caráter fragmentário da linguagem, já
que as línguas se diferenciam entre si ao mesmo tempo em que são aparentadas”
(idem). A tradução literária, de acordo com a autora, revela não apenas “a
distância entre aquilo que é visado e o que se atinge de fato” mas também o
fato de que “não há incompletude apenas na relação entre texto original e texto traduzido”, porque “o próprio original
já é portador de um princípio de estranheza, pois apresenta uma dessemelhança
em relação a si próprio” (idem).
A partir destas considerações, Izabela
Leal define a arte tradutória de Herberto Helder como “prática deformadora e
violadora da língua materna” e como “desvio”, uma vez que recusa ser
“reprodução do original” para se firmar como “vitalidade e esplendor” (idem). O
ponto de partida da recriação helderiana é o “erro”, mas um erro criativo, que
se converte em “erro feliz”, que “transforma o lugar do erro por meio de uma
‘invenção de movimento’, de passos em volta, e então ‘acerta (...) com a
potência natural da poesia’” (idem, 33). O signo do erro, da errância, do
deslocamento rege toda a poética helderiana, e em particular a sua poética da
tradução, mas nem por isso devemos deduzir que o poeta, em suas criativas
versões dos haicais japoneses para o português, cai no puro espontaneísmo, na
variação aleatória ou em intuições divorciadas do espírito da cultura com que
dialoga. Podemos observar o extremo cuidado com que Helder recria em português
a concisão, visualidade e imaginário da poética japonesa nestes dois poemas,
também “reimaginados” por Casimiro de Brito em seu livro Poemas Orientais:
Libélula vermelha.
Tira-lhe
as asas:
um pimentão.
Kikaku
(1661-1707)
Pimentão
vermelho.
Põe-lhe
umas asas:
Libélula
Bashô
(1644-1694)
Tradução: Herberto Helder
A réplica de Bashô ao poema de
seu discípulo Kikaku não é apenas um exercício imaginativo ou estético, mas é uma
afirmação da piedade budista, que se manifesta por todos os seres vivos,
inclusive a libélula. Em vez de mutilar o inseto para transformá-lo em um
objeto semelhante ao pimentão, Bashô faz a operação inversa, para transformar o
pimentão em símile da libélula. Casimiro de Brito assim traduziu estes poemas:
Uma
libélula vermelha.
Tirai-lhe
as asas:
Oh!
Um pimento!...
(Kikaku)
Um
pimento vermelho.
Daí-lhe
umas asas:
Oh!
Uma libélula!...
(Bashô)
Tradução: Casimiro de Brito
As versões criativas de Herberto
Helder obtêm força e consistência no idioma português pela extrema economia
sintática, elemento essencial da arte poética japonesa, e pela espacialização
das linhas, que dão mobilidade aos poemas e mimetizam a visualidade da escrita
caligráfica. Casimiro de Brito, por sua vez, introduz interjeições e
reticências que enfatizam de maneira exagerada o sentido da surpresa, já contido
na própria referencialidade, e utiliza um vocábulo de uso pouco corrente (pimento) em vez da forma mais popular (pimentão). Coloquialidade, jogos
verbais, compaixão budista e imaginário do universo infantil são recorrentes na
poesia de Kobayashi Issa, também traduzido por Helder em seu pequeno caderno
japonês:
Caracol,
lento, lento, lento – sobe
o Fuji.
Um
cuco
cuja
voz se arrasta
sobre
as águas.
Tradução: Herberto Helder
O primeiro poema acentua ainda
mais a visualidade como elemento essencial para a construção do sentido, com a
palavra “caracol” isolada na primeira linha, sugerindo solidão, e a tripla ocorrência da palavra
“lento” na linha seguinte, a mais longa do poema, indicando na própria
fisionomia semântica a vagarosa caminhada até o monte Fuji. O segundo poema, de
construção sintática e visual mais simples, materializa a força metafórica pela
extrema concisão, em medidas métricas ainda mais condensadas – Helder usou
versos de 2-5-3 sílabas, em vez de 5-7-5, frequentes no haicai tradicional. A
escolha dos poemas japoneses “mudados para o português” em O bebedor nocturno
favoreceu as composições de caráter fanopaico, talvez por afinidade eletiva do
tradutor, ele próprio um cultor da imagem rara, insólita, herdeiro da tradição
de Lautréamont e Reverdy. Assim, encontramos haicais com imagens de alto
impacto, como estes:
Crescente lunar.
O
tubarão esconde a cabeça
debaixo das vagas.
(Shikô)
A
lua deitou sobre as coisas
uma toalha de prata.
Azáleas brancas.
(Shikô)
Casa
sob as flores brancas.
Onde
bater?
Mancha
sombria da porta
(Kyorai)
Ao mudar poemas japoneses para o
português, Helder veste a máscara dramática de um autor clássico do século
XVII, desenvolvendo temas e técnicas presentes em sua própria poesia – imagens
desmesuradas, metáforas imprevistas – e recursos quase ausentes em sua lírica,
como a escrita concisa, substantiva, com alta resolução e precisão de
contornos. Ao contrário de Casimiro de Brito, não escreveu haicais, mas
encontramos em sua escrita criativa a presença do koan, tipo de fábula transmitido pela escola zen-budista que perturba a lógica rotineira
pela ação inesperada e inusitada. O espírito do koan está presente numa notável composição de Helder publicada
inicialmente nos Cadernos de Poesia
Experimental e incluída posteriormente em seu único livro de prosa
ficcional, Os passos em volta (1963):
TEORIA DAS CORES
Era uma vez um pintor que
tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe
tranqüilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando a certa altura
começou a tornar-se negro a partir – digamos – de dentro. Era um nó negro por
detrás da cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora,
alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor
assistia surpreendido à chegada do novo peixe.
O problema do artista era
este: obrigado a interromper o quadro que pintava e onde estava a aparecer o
vermelho do seu peixe, não sabia agora o que fazer da cor preta que o peixe lhe
ensinava. Assim, os elementos do problema constituíam-se na própria observação
dos fatos e punham-se por uma ordem, a saber:
1)peixe, cor vermelha,
pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro,
através do pintor;
2)peixe, cor preta, pintor,
em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva
fidelidade do pintor.
Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá dentro do aquário, o peixe, realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer notar que existia apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo.
(HELDER, 2004: 21)
[1]
Herberto Helder participou do primeiro número dos Cadernos de Poesia Experimental com um fragmento de A máquina de emaranhar paisagens. Posteriormente,
afastou-se do grupo.
[2]
“Vamos relembrar: algures, n’Os passos em
volta, o poeta suspira: Meu Deus, faz
com que eu seja sempre um poeta
obscuro.” (GUEDES, 2010: 46)
O Herberto traduzia habitualmente do francês. Muitos dos poemas do Bebedor Nocturno podem-se encontrar em "Trésors de la poésie universelle" do Roger Caillois.
ResponderExcluirParabéns pelo excelente trabalho em curso.
Jorge Sousa Braga
Minhas as palavras do Jorge. Passa aí um pouco da organização mental e da clareza...
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