terça-feira, 17 de dezembro de 2024

DÉCIMA SEGUNDA CANÇÃO IMPRONUNCIÁVEL

 

Árvores corcundas

em um jardim

de escuros.

Onde os dedos;

não, onde os olhos;

não, onde os lábios;

não, onde o onde

sereias ou morteiros

bruxas desenterradas

ou jaspeados cogumelos.

Tatuagem esse indistinto

idioma desconexo;

nauri nauri nauen nauá

nauri nauri nauen nauen

medos meio mortos

ou não, medos dedos

num monólogo a duas

vozes; a três vozes;

a quatro ou nenhuma.

Hidra, melro, drone, apicum:

qual é a minha voz?

Tatuagem esse indistinto

idioma, desconexo;

nauri nauri nauen nauá

nauri nauri nauen nauen

qual é a minha voz?

Favos, grânulos, aroeira

aroeira, aroeira, erva-picão.

A palavra: corte, incisão

on sense? Qual é a minha

língua? Qual é o meu eu?

O que eu sei:

Pato Donald foi a Cuba

cansado do American Reich

e abriu um pequeno comércio

de tralhas e bugigangas

na Praça da Revolução.

 

Poema inédito de Claudio Daniel, 2024

QUINTA CANÇÃO IMPRONUNCIÁVEL

 

Why is the name changed

Gertrude Stein

 

A memória é um verme

que rói a carne

e as sombras.

 

É sempre

a extrema

cicatriz;

 

mundo

desmundo

 

sempre

a excessiva

 

intensidade

da voz.

 

* **

 

Luz, ou

reflexo

do inferno?

 

Lilabi, biéli lilabi azel miol gliá luvi.

 

* **

 

Acende

palavras

num tempo

de esqueletos.

 

Que sentido

nessa

irrisão?

Só desertos

dentro.

 

* **

 

Pele

é um livro

escrito

 

em língua

de sombra.

 

Cada palavra

um seco

urro.

 

Lilabi, biéli lilabi azel miol gliá luvi.

 

* **

 

Este

é tempo

de esqueletos;

tempo

de crianças

queimadas.

 

Sua história

é contada

no Livro

da Carne.

 

* **

 

O dedo

do vento

vira as páginas

 

do livro

e a história

se desfaz.

 

Como os fios

da tenda

árabe

incinerada

por bombas

de fósforo

branco.

 

* **

 

A história se derrama

como um rio

que transborda.

 

* **

 

(A Casa Branca

dinamitada

por rebeldes

de outro Oriente.)

 

* **

 

(A cabeça

de Elon Musk

pendurada

em um poste.)

 

* **

 

A memória é um verme

que rói a carne

e as sombras

intermitentemente.

 

Poema inédito de Claudio Daniel, 2024

TERCEIRA CANÇÃO IMPRONUNCIÁAVEL

 

Penso em teu sexo

em tua caveira aberta

repousada na mão esquerda

de um paleontólogo louco.

Penso em tuas pernas abertas

mais claras ou mais escuras

do que em todos os mundos possíveis.

Penso com o corpo, a mente

os testículos, o esqueleto

com meus olhos que crocitam como corvos.

O Homem Mais Velho do Mundo

encontrou-me numa ponte de pedra

e disse a mais terrível de todas as palavras:

amor.

Por que estas flores cobertas de sombras

e esquadros?

Por que estas flores cobertas de peles

de homens queimados?

Aqui nós estamos em um longo poço sem fundo

e apesar de tudo nós dançamos.

 

Poema inédito de Claudio Daniel, 2024 

PRIMEIRA CANÇÃO IMPRONUNCIÁVEL

 

Para Horácio Costa

 

Eu morei muito tempo em uma casa estranha

casa-coruja, casa-caracol

casa-ouriço-do-mar

situada  a dois passos

do beco-do-nunca-visto

perto do parque da caveira

onde os relógios são mudos.

Lá, onde os ventos são vidro

e as pedras podem ser palavras

que podem ser estrelas

que podem ser os gritos de um surdo.

No Salão da Afetividade

nesta casa-coruja, casa-caracol

casa-ouriço-do-mar

viveiros de orquídeas, azaleias, damas-da-noite

servem de cenário para o retrato

em que a mulher de pele dourada

exibe os seus três seios.

Em cada mamilo, uma argola de prata.

Em seus tornozelos, correntinhas de prata.

Em seu umbigo, um anel de prata.

Senhora da prata

senhora de mim, senhora do alfenim.

No Salão da Invisibilidade

nesta casa-coruja, casa-caracol

casa-ouriço-do-mar

escrevi poemas para ninguém

escritos com a tinta de pequenas mortes

em páginas oceânicas do asperamente.

Poemas com o aroma do sal marinho

do mar noturno de São Salvador.

No Salão da Imparcialidade

nesta casa-coruja, casa-caracol

casa-ouriço-do-mar

ficaram as minhas coleções

de pensamentos rotos, adágios

provérbios, alumbramentos

sentenças de oradores romanos

 e mestres de sânscrito

que visitei nas horas de agonia

em busca de algo que me aliviasse

da simples dor do existir.

Esta casa estranha em que morei

e que ainda está em mim

casa-coruja, casa-caracol

casa-ouriço-do-mar

situa-se numa cidade sobreposta

a outra cidade

que flutua no escuro

de outra cidade

numa região inabitável

onde talvez encontrareis meu nome

essa abstração em que disfarço

(talvez) a mera inexistência.

 

Poema inédito de Claudio Daniel, 2024

PALO DE LA LUNA

 Existes tão fundo em mim

Lobo Antunes

 

Ojos de mi amor

ojos que se multiplican

como olas y pájaros

 

Manos de mi amor:

manos interminables

en mis cabelos

 

Senos de mi amor:

senos incomprensibles

hacia el más allá de mí.

 

Bailaora de la luna

danza en mi cuerpo

con su colar de peces.

 

Bailaora de la luna 

danza en mi cuerpo

con su cinturón de luces.

 

Amor de la noche marina

cuya boca es mi laberinto.

Amor de la noche marina

 

cuya piel es mi único jardín.

 

Sólo existe el palo

que nace de tus pies.

 

Sólo existe el palo

de tus pies em mi boca.

 

Sólo existe la noche

de tu lengua en la mía.

 

Ojos de mi amor:

ojos que se multiplican

en las manos, pies y senos.

 

Manos de mi amor:

manos interminables

como la danza de la luna.

 

Senos de mi amor:

senos incomprensibles

de mi sed infinita.

 

Poema inédito de Claudio Daniel, 2024

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

GOVARDHANA

 












Menino azul

ergue a colina

com o dedo 

mínimo

de uma só 

māo.

Nuvens 

de chuva

nāo podem 

molhar

nem um 

punhado

de areia

nem a 

cabeça

de um 

alfinete

nem a pegada

do macaco. 

Indra, 

o orgulhoso

deus da chuva

que venceu 

o dragāo celeste

retorna

à Terra

como formiga.


Claudio Daniel, 2024

domingo, 27 de outubro de 2024

DAMODARA

 



 






Onde começa

onde termina

o vento?

Onde começa

onde termina

a curva branca

da lua?

Onde começa

onde termina

a cintura divina

de Krishna?

Ele está aqui, ali,

além, em toda parte;

nenhuma corda

pode atar o Ilimitado.

Mãe Yasoda

só pode prendê-lo

com as amarras

da devoção.

Krishna Damodara

abre a sua boca

e em sua boca

está o infinito.

 

Poema de Claudio Daniel, 2024

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

ZUNÁI: VINTE ANOS DE GUERRILHA NO CIBERESPAÇO

 










Claudio Daniel

Zunái, Revista de Poesia e Debates (https://www.revistazunai.org/), comemora vinte anos de guerrilha virtual no ciberespaço. Criada em 2003 por Rodrigo de Souza Leão, Ana Peluso e por mim, a revista eletrônica publicou alguns dos mais expressivos nomes da poesia, do teatro, do romance, do ensaio e das artes visuais brasileiras. Ao longo de duas décadas, estiveram presentes nas páginas da Zunái autores como Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Arnaldo Antunes, Wilson Bueno, Milton Hatoum, Gerald Thomas, Regina Silveira, Guto Lacaz, Leda Catunda, Alex Flemming, para citarmos poucos nomes, além de muitos autores jovens. Desde o início, a revista assumiu uma posição de voluntária parcialidade crítica (seguindo a lição de Baudelaire), exteriorizando os seus critérios de escolha e interferindo de maneira desafiadora no cenário cultural brasileiro, sem fazer concessões a estéticas mumificadas. Zunái assumiu o compromisso de publicar trabalhos de maior inventividade formal, em campos como o da poesia visual, da poesia sonora, da poesia digital, do texto poético experimental, sem filiar-se, porém, a nenhuma tendência literária específica, a nenhum programa normativo redutor: sua vocação é a de ampliar diferentes graus de ruído e dissonância, para desafinar a melodia única dos contentes. Esta pluralidade de radicalismos possíveis se manifestou em nosso interesse pela poesia neobarroca de José Kozer, Reynaldo Jiménez, Victor Sosa, León Félix Batista, mas também pelo minimalismo de André Dick e Virna Teixeira e pela escrita inclassificável de Contador Borges, Abreu Paxe, Antônio Moura e Erin Moure. Nossa representação geométrica é o círculo, dentro do qual se movimentam infinitas linhas concêntricas, aproximando-se, distanciando-se, provocando colisões, ruídos e atritos criativos, em constante ebulição e metamorfose. A Zunái sempre se recusou a fazer um mapeamento convencional da poesia brasileira – tarefa sempre incompleta e efêmera das revistas e antologias – mas, ao contrário, optou por iluminar autores que ficaram à margem do cânone rumoroso promovido pela mídia, organizado por critérios poucas vezes éticos ou estéticos. Publicamos autores jovens de violenta novidade formal e temática, que estão entre as vozes mais consistentes da nova poesia, como Adriana Zapparoli, Andréia Carvalho, Mar Becker, que trazem propostas de desestruturação da lírica coloquial-cotidiana do Modernismo (tão incensada por críticos midiáticos que nada sabem de poesia) e de reorquestração das palavras e frases em outras combinações possíveis, ampliando o léxico, renovando a sintaxe, dialogando com repertórios infrequentes, num sopro de renovação e desafio.

Rompendo com o mimetismo colonizado das poéticas praticadas nos grandes centros econômicos, Zunái estabeleceu novas parcerias, divulgando poetas de Angola, Moçambique, África do Sul, Síria, Cuba, México, Peru, República Dominicana, Venezuela, entre outras nações de poesia. O link Galeria publicou mostras virtuais de alguns dos mais conceituados artistas visuais brasileiros, como Leda Catunda, Elida Tessler, Nino Cais e Eduardo Frota, enquanto o link de matérias especiais enfocou temas culturais mais amplos, envolvendo diferentes linguagens artísticas, como o teatro de Gerald Thomas, o cinema de Werner Herzog e Peter Greenaway, a prosa de Wilson Bueno, os 50 anos da Poesia Concreta e o debate sobre a crítica literária brasileira, em textos como "Muito além da academídia: poesia brasileira hoje", de Rodrigo Garcia Lopes, e "Pensando a poesia brasileira em cinco atos", de Claudio Daniel.

Os editores de Zunái nunca tiveram o propósito de estabelecer ou defender uma suposta “estética única”, o que pode ser verificado facilmente na própria revista, onde publicamos desde haicais e poemas sonoros até composições concretistas e surrealistas; a inovação, para nós, nunca foi rua de mão única ou questão teológica ou metafísica. O que recusamos no ecletismo nunca foi a diversidade, mas a concessão sem critérios a estéticas frágeis, que não apresentam nenhuma novidade temática ou formal. A defesa intransigente da pesquisa estética, do experimentalismo, da inovação, em nenhum momento foi entendido por nós como nova torre de marfim, alheia aos acontecimentos no mundo – muito ao contrário. O design da capa da Zunái, em sua primeira dentição, foi criado por Ana Peluso e por mim com o propósito de representar o conflito entre barbárie e cultura: os links, dispostos de maneira circular, incorporaram imagens de obras de arte da Antiguidade do Museu Nacional de Cabul, destruídas pelo Talebã sob a acusação de paganismo e idolatria. Na página do Expediente da revista, inserimos a imagem de uma obra de arte desaparecida do Museu de Bagdá, saqueado com a cumplicidade das tropas de ocupação norte-americanas.

Zunái sempre se posicionou contra as guerras de rapina do império estadunidense no Oriente Médio e criou, no link Opinião, os Cadernos da Palestina, onde publicamos regularmente textos e fotos de denúncia da ocupação ilegal dos territórios palestinos pela entidade sionista. Durante o Fórum Social Mundial Palestina Livre, ocorrido em 2012, em Porto Alegre, Zunái esteve presente e distribuiu a plaquete Poemas para a Palestina, com peças escritas por autores como Glauco Mattoso, Marcelo Ariel, Lígia Dabul, Andréia Carvalho, Nina Rizzi, entre outros poetas brasileiros e portugueses (o texto original da plaquete, ampliado com a inclusão de novos poemas, foi publicado em 2014, na forma de livro, pela editora Patuá, do bravo Eduardo Lacerda). A revista também colaborou na organização da exposição fotográfica dedicada aos 30 anos do massacre de Sabra e Chatila, exposta no mesmo ano na Biblioteca Alceu Amoroso Lima. Zunái sempre acreditou que o engajamento estético não se opõe ao engajamento político, mas, ao contrário, é a sua contraparte dialética, como bem sabia André Breton, ao propor unir o “mudar a vida” de Rimbaud ao “mudar o mundo” de Marx (equação em que está implícita o “mudar a arte” de Lautréamont).

O aniversário de dez anos da revista, em março de 2014, foi comemorado com um recital organizado pelo poeta Rubens Jardim, na Casa das Rosas, que contou com a participação de Frederico Barbosa, Claudio Willer, Alfredo Fressia, E. M. de Melo e Castro, Abreu Paxe, Nydia Bonetti, Andréia Carvalho, Edson Cruz, Luiz Ariston, Edson Bueno de Carvalho, Diogo Cardoso e Fabrício Slaviero. Uma festa de poesia. Em março desse mesmo ano foi publicada uma antologia impressa de poemas e textos divulgados na Zunái ao longo de seus dez primeiros anos de existência, com o apoio generoso da Lumme Editor. Agora que a publicação digital completou vinte anos, ela deixou de circular, pois nunca recebemos nenhum patrocínio público ou privado, embora tenhamos participado de diversos editais, como o da Bolsa Petrobrás (privatizada para favorecer os amigos de Carlito Azevedo) e o do Instituto Itaú Cultural. A revista é reconhecida em nível internacional, mas, infelizmente, no Brasil sempre sofreu o boicote da mídia e tudo o que conseguimos fazer foi com os nossos próprios esforços. Agradecemos a todos aqueles poucos que sempre apoiaram a revista, e em especial a Ana Peluso e Mariza Lourenço, responsáveis pelo design e atualização da “primeira dentição” da Zunái, e a Andréia Carvalho, editora de multimídia do novo site da revista.

Ave, Zunái! Palestina Livre!

 

sábado, 12 de outubro de 2024

O AZUL

 


 










Para Claude Monet

 

lago de azul-opiário-azul-equinócio azul

mais azulino azul //

azul não azul-ferrete

azul não azul-da prússia

azul em tons

de turquesa-azul

(azul em tons

de malaquita-azul)

nas folhas de galhos inclinados

nas folhas de galhos

desmanchados

em explosões de azul //

nenúfares, borrões

de azul-azul //

nas pupilas do inseto

que vê: ninfeias, ninfas

e nuvens

em borrões de rosa

e azul

em borrões de branco

e azul //

moças sentadas no barco

são moças de água

moças-flores tingidas

do mais profundo azul //

olhos, folhas, barcos e flores

em nuances de cor

olhos, barcos, folhas e flores

refletidos nas pupilas 

do mais profundo azul //

(líquida pantera subaquática

irrompe súbito na tela) //

tudo que existe afinal

são múltiplas variações cromáticas

do mais profundo azul.

 

Poema inédito de Claudio Daniel, 2024

 

 

terça-feira, 13 de agosto de 2024

BALARAMA

 











Jade-

branco-alvíssima

pele lunar

luz de clara luna

olhos negros

como a noite

dos tempos

noite negro-azul.

Ele, o branco negro

branco azul

infinito azul sem cor

do infinito breu

tem tudo de tudo

e não se apega

a nada;

porque todas as coisas

valem menos

do que o vento;

valem menos

do que a curva

do rio;

valem menos

do que o olho

direito

do pavão-

de-plumas

que dança

em Vrindavana.

O Mestre

dos Mundos

o Esquecido-

de-Si

pensa apenas

em Krishna

e Radha.

Ele,

o Mestre de Tudo

traz sempre

consigo

um arado

para cultivar

os duros campos

do coração dos seres

que habitam

os nove mundos.

Ele cultiva a semente

do amor divino

o amor de amor.

Quem recebeu as bênçãos

do supremo guru

ouvirá a música celeste

da flauta de Krishna;

enlouquecerá de amor

com a música

da flauta de Krishna;

sairá de si mesmo

desse pobre mundo material

para dançar ao som

da flauta de Krishna.

Senhor Balarama,

irmão mais velho

do flautista supremo

receba as minhas reverências!  

 

Poema inédito de Claudio Daniel, 2024

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

À MANEIRA DE KLIMT

 

A mulher é infinita

Yasunari Kawabata


I

 Meia-lua para iniciar um poema;

letra v entre as coxas

erguendo relâmpagos.

 

II

 Considere esta mulher deitada,

a mão direita

entre os joelhos

e o antebraço (esquerdo)

na altura das pupilas,

Ariadne em Naxos.

Logo inverte a posição,

estica os tornozelos

e desenha pequenos círculos

imprecisos

com os pés,

mapa de um labirinto?

(Dríade, convoca a mitologia dos lábios

para abolir a noite.)

Súbito, sua mão escorrega

até a pirâmide invertida,

após acariciar o umbigo,

como se violasse

o silêncio

de uma pétala.

Anoitecer em ti,

percorrê-la

em cada poro

mínimo:

de uma estrela

a outra estrela

de teu céu

indecifrável.

s/d


Poema de Claudio Daniel