quarta-feira, 7 de julho de 2010

UMA CONVERSA COM HORÁCIO COSTA (II)

CD: Em Satori (1989), você apresenta poemas narrativos com fortes imagens metafóricas, que se aproximam de um barroco alucinado. Nestas peças, que dissolvem os limites entre prosa e poesia, há uma mescla de diferentes repertórios simbólicos e culturais. Essa lírica mestiça corresponde à visão de um mundo multipolar, sem fronteiras?

Horácio: O livro Satori tem um prólogo de Severo Sarduy, o grande teórico do barroco no universo hispano-americano contemporâneo. Este é um detalhe que convém frisar. O Severo foi generoso comigo, mas para que esta generosidade se desse, havia um terreno comum, o do sentimento do barroco, entre nós dois. Além de, claro está, o fato de ambos levarmos nossa homossexualidade muito a sério, e de que gostávamos — digo isso, porque já faz tempo que ele morreu — de ir a bares e cafés, em resumo, de estar na cidade. O "barroco alucinado" — gosto muito da expressão com que você fala de Satori —, sim, se dá. É um livro de abertura, de poeta-que-viaja, de homo viator. Mas que barrocamente vive em labirintos, que não vê o mundo pelo qual passa como uma sucessão de "fenômenos culturais", mas de "estações labirínticas". Uma coisa teria sido eu me encantar pela sucessão de países e culturas nas quais sucessivamente me perdia e me achava; outra foi o ter desenvolvido, ou procurado desenvolver, uma ótica própria sobre o homem e a história, que dá a pedra-de-toque à operação poética. Não saí por aí consumindo o mundo, mas observando-o.

CD: Você cria paisagens verbais com veia taumatúrgica, explorando o poder encantatório da palavra. No poema O Bar da Senhora Olvido, lemos: “ossos de ar esqueleto inflável em álcool / aquarelas noturnas dolorosas olhares anfíbios / a cidade é um mapa do céu”. Essa busca de novas realidades semânticas vem de uma leitura pessoal da tradição surrealista?

Horácio: O poema O Bar da Senhora Olvido foi escrito em Barcelona, em 1980, e o fato de, diante da magnificência da cultura espanhola que eu descobria — e da abundância que eu notava na sociedade catalã —, eu ter preferido escrever sobre os bêbados do Bairro Gótico, quer dizer algo. Aliás, o bar existia mesmo, e já não existe mais. No ano passado voltei àquele canto do Bairro Gótico, e àquela zona medieval, sórdida e lírica, que era um cruzamento de pessoas do mar do mundo todo, tinha dado origem a uma simpática, anódina pracinha pós-moderna. Eu ia às noites beber com os bêbados, com o meu amigo Rafael Bernis, um fotógrafo catalão. Muitos dos versos se referem às falas alucinadas daquelas personagens que desapareceram do mapa, na burguesíssima Barcelona de hoje. Foi um pouco procurar preservar aquelas falas o que dá este tom que parece surrealista ao poema.

Eu morava no bairro de Gracia, num grande apartamento sem mobília, e forrei todas as paredes de papel kraft e escrevia em pedaços de papel, frases, versos, montagens, e ia fazendo colagens pelo corredor, pela sala, etc. numa atitude própria de um ex-arquiteto, não? Senti freqüentes epifanias enquanto escrevia, sempre de noite. Por isso o poema é muito fragmentário. Eu tinha começado a escrevê-lo em São Paulo, mas foi nesse período barcelonês que ele veio à luz, e te garanto que foi em Barcelona, em 1980, aos 25 anos, que de mim para mim mesmo me assumi como poeta. Em resumo. O livro não tem nada que ver com surrealismo. Tem a ver com a postura documentacional do escritor naturalista, se você quiser, com o catador de papéis ou de palavras, com o filólogo itinerante que juntava lendas e fonemas em Trás-os-Montes ou Minas Gerais, com um Guerra Junqueiro ou um Guimarães Rosa, não com um surrealista de salão, e ainda por cima de segunda mão, que alguém afeto ao surrealismo necessariamente seria em 1980, a cinqüenta anos da fundação do movimento. Aliás, eu não gosto do surrealismo. Tenho bronca dele porque falseia o delírio e porque Breton nunca acreditou no amor homossexual. E bem, já que estou falando nisso, pois os hispano-americanos e os brasileiros aqui temos uma de nossas maiores diferenças, já que muitos hispanos adoram o surrealismo, e nós somos mais dadaístas, ou como dizia o Oswald, et pour cause, "concretistas".

CD: O Livro dos Fracta (1990) é um monólogo em fragmentos onde notamos a forte visualidade dos versos, que recordam planos de cinema, e a busca de sonoridades pela insólita associação de palavras (“veste-me a tua presença ao íbis bisonte jaguar”), com um humor sutil, mais próximo da ironia que da sátira. Como foi o processo de criação deste poemário?

Horácio: O Livro dos Fracta nasceu de uma inquietação minha diante do computador e da ciência contemporânea, especialmente a cosmologia. Ainda aqui, a presença de Severo: ele foi quem me ensinou que literatura e cosmologia se tocam na pós-modernidade. Por isso o livro está dedicado a ele e a François Wahl, o seu marido. Pois bem, eu tinha comprado um Apple Macintosh Classic e estava apaixonado pela máquina, e sempre fui um leitor amador de revistas científicas. Foi através delas que eu estabeleci contacto com a teoria da geometria fractal, de Benoît Mandelbrot, então resolvi duas coisas: uma, que ia me inventar uma "métrica" nova, isto é, uma regra perfeitamente informática para contar uma história, e que ia observar certas relações de simpatia para com a teoria de Mandelbrot. Então, resolvi comprimir os fragmentos a três linhas do visor do computador Apple, utilizando-se do tipo Times New Roman, e que ia repetir aleatoriamente os títulos de alguns dos fragmentos, para recordar o leitor que havia uma história que estava sendo des-contada lá. Acresce-se a isso o fato de que eu inventei uma personagem, o Legionário, um romano que atravessa os tempos e os espaços, e mesmo o cosmos, do Big Bang até hoje, e vê, no sentido de "ver" como alucinar ou de presenciar, coisas, relativas ou não ao mim, ao Brasil e ao mundo do final do século XX. Então, também há um narrador, que diz que a natureza e a história obedecem a um princípio de similaridade, de homotetia ("O alvéolo imita a árvore,/ em Bangui, Bokassa a Napoleão./ Isto é uma novela", diz o Fracta nº I), e o resto, pois, o resto é bem fragmentado mesmo, irrecuperável, não tem uma "maquete" à qual se remeter, não tem como reconstruir a "verdadeira" — final, precisa, certa, teleologicamente única e uma — história de O Livro dos Fracta.
O título parodia muitos outros, a começar pelo Livro dos Provérbios da Bíblia. Eu avanço milimetricamente, e sim, com um milimétrico uso da ironia, botando (quase) tudo no avesso. A operação retórica central dos fracta e das Very Short Stories é a alegoria sem fim, a alegorésis, um termo que eu tomei a liberdade de tomar emprestado e mutado aos estudos da retórica. Não se esqueça de que em Yale eu tive aulas ou estive próximo a gente muito boa, em termos literário-críticos: Bloom, Derrida, Hillis Miller. Pois bem, algorésis, como o meu alter ego Ernesto de León fala nas VSS. Para dar conta deste recado literário-crítico, inventei uma palavra invariável —"fracta"— que não tem plural nem gênero. Um pouco, em resumo, como o poeta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário