DO LIVRO POETA EM NOVA YORK (XVI)

IGREJA ABANDONADA
(BALADA DA GRANDE GUERRA)

Eu tinha um filho que se chamava João.
Eu tinha um filho.
Perdeu-se pelos arcos numa sexta-feira de todos os mortos.
Eu o vi brincar nos últimos degraus da missa
e jogava um cubinho de folha-de-flandres no coração do sacerdote.
Golpeei os ataúdes. Meu filho! Meu filho! Meu filho!
Saquei uma pata de galinha por trás da lua e logo
comprendi que minha menina era um peixe
por onde se afastam as carretas.
Eu tinha uma menina.
Eu tinha um peixe morto sob a cinza dos incensários.
Eu tinha um mar. De quê? Meu Deus! Um mar!
Subi a tocar os sinos, mas as frutas tinham vermes
e os fósforos apagados
comiam os trigos da primavera.
Eu vi a transparente cegonha de álcool
aparar as negras cabeças dos soldados agonizantes
e vi as cabanas de borracha
onde giravam as taças cheias de lágrimas.
Nas anêmonas do ofertório te encontrarei, meu coração!,
quando o sacerdote levanta a mula e o boi com seus fortes braços,
para espantar os sapos noturnos que rondam as paisagens geladas do cálice.

Eu tinha um filho que era um gigante,
mas os mortos são mais fortes e sabem devorar pedaços de céu.
Se me filho tivesse sido um urso,
eu não temeria o sigilo dos caimães,
nem teria visto o mar amarrado às árvores
para ser ferido e fodido pelo tropel dos regimentos.
Se meu menino tivesse sido um urso!
Me cobrirei com esta lona dura para não sentir o frio dos musgos.

Sei muito bem que me darão uma manga ou a gravata;
mas no centro da missa eu quebrarei o timão e depois
virá até a pedra a loucura de pinguins e gaviotas,
que dirão aos que dormem e aos que cantam pelas esquinas:
ele tinha um filho.Um filho! Um filho! Um filho
que não era mais que seu, porque era seu filho!
Seu filho! Seu filho! Seu filho!

Tradução: Claudio Daniel

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

DOIS POEMAS DE FIGURAS METÁLICAS

FORMIGA

Pequeno dragão
doméstico.

Cabeça grávida
de hibisco.

Rústico abdome-
cogumelo.

Escava o incerto
dos dias,

para a trilha
vertical

de farelo,
fúria e folhas.

Carrega seus mortos
nas costas,

com precisa
geometria

de fábrica
fúnebre.

CABEÇAS DE FORMIGA

Como este breve sentimento de decomposição, falanges
à maneira do escuro.
Linha tênue de folhas recortadas
e cabeças
de formiga.
Pétalas roxas,
um tipo de bolor.
Passos escuros
no jardim.
Ritmos podres
de cadela.
Fumo branco,
idéias pesadas
e algo que se desdobra no espaço
curvo
em aromas
de tantálico
negrume.

— Nenhuma música, ali; nada além da carne
dos cogumelos
e seu escarro.

(Do livro Figuras Metálicas, de Claudio Daniel. São Paulo: Perspectiva, 2005)

sábado, 26 de dezembro de 2009

UMA RESENHA DE FERA BIFRONTE







André Dick


O barroco – ou neobarroco – é conhecido por sua pretensa ilegibilidade, e E. M. de Melo e Castro, autor do posfácio do mais recente livro de Claudio, Fera bifronte, texto publicado também na antologia do poeta em Portugal, Escrito em osso, escreve:

“A poética do escritor, ou do autor, é a mais remota e obscura. A problemática que leva o autor a escrever o seu texto é fechada e só acessível ao leitor através de hipotéticas tentativas de penetração naquilo a que muitos chamaram “o mistério da criação”. Essa poética é muitas vezes também pouco clara para o próprio autor, no momento mesmo da criação.”

Lendo este fragmento do posfácio – que traz, por outro lado, dados muito interessantes para se entender a obra de Claudio Daniel –, há um elemento a ser debatido: o de o crítico considerar que a poética do autor, caracterizada pelo chamado barroco, é remota, obscura, fechada, pouco acessível ao leitor. A argumentação está de acordo também com aquela utilizada por Hugo Friedrich para caracterizar a lírica moderna. Mais estranho ainda seria essa poética ser pouco clara para o próprio autor. Não me parece adequada essa argumentação tanto no caso da poesia moderna quanto no caso de Claudio Daniel. Sua poesia é elaborada e baseada, por sua própria formação, como leitor da poesia concreta, de poetas simbolistas, da tradição oriental, por exemplo – que não nublam a linguagem, a não ser que se considere que a utilização de signos em uma sintaxe mais entrecortada seja inacessível ao leitor – na linguagem. Mais adequado parece ser entender que na poesia de Claudio haja uma “cadeia de significantes”.

Para Severo Sarduy, o barroco “consiste em obliterar o significante de um significado dado, substituindo-o não por outro, por distante que este se encontre, mas por uma cadeia de significantes que progride metonicamente e que termina circunscrevendo o significante ausente, traçando uma órbita ao redor dele, órbita de cuja leitura – que chamaríamos leitura radial – podemos interferi-lo”. O neobarroco, segundo Claudio Daniel, em sua introdução à antologia Jardim de camaleões, não é uma vanguarda stricto sensu – ou seja, não é um movimento considerado apenas possível no “primeiro mundo” ou um movimento a ser copiado por autores de uma tradição pobre –, à medida que “não se preocupa em ser novidade”: “ele se apropria de fórmulas anteriores, remodelando-as, como argila, para compor o seu discurso: dá um novo sentido a estruturas consolidadas, como o soneto, a novela, o romance, perturbando-as”. A restrição da obra do poeta ao neobarroco parece equivocada – isso porque essas características acima podem ser vistas em qualquer poesia construtiva, com influência ou não do barroco, o que pouco importa para seu entendimento no sentido mais amplo, e encobrem seu diálogo com autores como Herberto Helder, citado na epígrafe.

O fato é que Fera bifronte expande uma poética que vinha se delineando mais sintática desde A sombra do leopardo, ou seja, mais voltada à construção de um verso contínuo, que vai se construindo tanto por enumerações (característica de certo poema moderno) quanto por idéias que adotam vários discursos.

“Tudo é cinema mental”, escreve Claudio em Estudos de anti-realidade. De certo modo, esse “cinema mental” corresponde-se com sua narrativa poética Romanceiro de Dona Virgo, que parece ser antecessora do poema Anticabeça II e da série Gabinetes de curiosidades, em que o poeta lança uma visão extremamente crítica sobre o universo contemporâneo, enfocando três ambientes: o sex shop, o pet shop e o coffe shopp, nos quais visualiza uma certa decomposição do sujeito moderno: “Aceitamos todos os cartões de crédito e os animais, como os seus donos, devem ser castrados” ou “Cabeças de executivos são caixas registradoras com um número limitado de palavras”. Essa paisagem humana ligada a um universo animal está presente também no poema Fera, que encerra a obra – a “fera” como uma metáfora que configura, sobretudo, a violência, com gestos ríspidos, desde o poema Muro. O ser humano parece se transformar exatamente nessa “fera”: “Em branco aniquilar / sua mandíbula, / aberta como fenda sexual / interrogante” (Fera). Esse ambiente de violência capta, ao mesmo tempo, um universo de animais: “palavras desventradas / da cadela” (“Escrito em osso”), “ambivalência do inseto / que se desenha íbis, / amêijoa, escaravelho, / folhas ou fíbulas, fúrias ou órbitas” (Anticabeça I), “Peixe branco, gris ou amarelo / desgarrado de sua gueldra, / no desvio das águas” (Desvio) – até a figura do corvo, presente em vários poemas.

Se há, em Partitura, referências a “raios de um sol / que redesenha seu centro; / essa matéria tão delicada, / ferozes epitélios da flor”, o certo é que na poética de Claudio predomina uma paisagem desolada, em que surge um “céu abortado” (Betty Blue), a paisagem é feita de “dissoluções” (A memória), corpos passam por um contínuo sofrimento, não só no poema “Fera” final, com sua imagética violenta, mas em outras peças igualmente fortes: “mordendo os próprios pulsos / movimenta-se, / desorientado” (Anticabeça IV); “Até consumir todo o olhar / e desfazer a pele / obsoleta” (Muro); “Paraíso clorofórmio: / inscrever o exílio / dos lábios na pele, / mentalizada e muda” (Betty Blue); “escura caligrafia / rasurando crânios”; “órgãos retirados / de corpos sem autópsia” (Escrito em osso); “Desabitar os fêmures, / os tendões / do que obceca” (A memória); “Vozes multiplicam-se; / lanhadas peles / vociferam, guturais”; “cicatrizes alinhadas / nos pulsos, em desenhos / de fetos inanes” (Paisagem-vértebra). Não há nenhuma linha da tranqüilidade mais remota encontrada em Sutra ou Yumê, seus primeiros livros, mais voltados a imagens da cultura oriental, nem também uma sonoridade mais voltada a imagens que focalizam o zen, embora em Anticabeça I haja o Lao Tzu “rumando ao Sul”.

No plano da interferência simbolista na escrita de Claudio, ao mesmo tempo, há referência a cores – numa espécie de referência a Georg Trakl – como em Escrito em flor, no qual há uma paisagem musical “onde o amarelo / dá sentido ao vermelho”, um “lábio (pétala) / submerge / em topázio-tigre”, “violetas indagam” e “cada abelha sonha / uma rosa imantada”; em Rapto, no qual “[...] a expansão do branco / bifurca-se, espraia-se / esqualidamente / do lábio ao umbigo”; em Estudos de anti-realidade, há um “vago perfume de papoulas, / até dessangrar / as pétalas / do canto”, “cristal negro, / praia negra, / papoula enegrecida”; em Anticabeça II, há um “verde-prata, verde escuro, verde panther, na boca do dragão” e o tempo é sombrio em razão do “branco mesclado ao amarelo”; em Fera”, há “passos súbitos / num deslocamento de vermelhos”, em Paisagem-vértebra, há “unhas negras, / peitos brancos”.
(Excertos de O cinema mental de Claudio Daniel, de André Dick. Leiam o texto na íntegra na revista Germina.)

ZUNÁI, REVISTA DE POESIA E DEBATES

Ano VI, n. XIX, dezembro de 2009

Opiário-escaravelho: 90 anos de poesia surrealista

Apontamentos de leitura: Helder e Celan, de Claudio Daniel

A poética dionisíaca de Al Berto, de Rodrigo da Costa Araújo

João Cabral, Irmãos Campos, Leminski, de André Dick

Coordenadas poéticas de uma China especial, de Mônica Simas

A língua é um animal em metamorfose: uma conversa com Jorge Melícias

Alguna poesía brasileña, de Rodolfo Mata

Galeria: exposição virtual de Ramón Antopolski

Cartas de despedida: seis escritoras suicidas, antologia organizada por Silvana Guimarães

Traduções de Allen Ginsberg, André Breton, Paul Éluard, Robert Desnos, Benjamin Péret, Aimé Césaire

Poetas da Colômbia, República Tcheca, Finlândia, Portugal, França, Brasil, Argentina, México, Uruguai

Zunái, Revista de Poesia & Debates (www.revistazunai.com).

Preço: Inefável; inconcebível.

Onde encontrar: no ciberespaço, essa “Gran Cualquierparte” (Vallejo).

DOIS POEMAS DE WILSON BUENO

17

Lancinantes os bicos-pássaros
Com que vos fura o túmido ventre
Já cadáver de nós e de nossa víscera
O que chamamos Amor, suas anáguas,
Festim de lírios, zumbir de abelhas
O que de Amor foi enlevo e até cansaço
– Mesmo o açoite e as costas em brasa? –
Se fomos um no Amor consorte
E hoje somos, Amor, retalhos de nós mesmos,
Pobres panos, chita, organdi, seda rala
E foi Amor, sim, que nos fez tão inimigos!

28

Cai-me ao colo Amor de súbito
Um susto, um esgar, um bramido.
Estertor de tudo – desamor Amor ao avesso?
Quero-vos lúmpen, maltrapilha, campesina
Quero-vos riacho e manso açude.
Amor, entanto, vocifera pontiagudo
Mural de rochas e lascas e espelhos e cardumes
A fingir do Amor – casta figura? –
O Desamor em pêlo, às turras,
Aos vozeios, facas, murros, unhas
A alvoroçar o silêncio de agulhas.

(Do livro inédito 35 Poemas de Amor.)

2009 TAMBÉM TEVE POESIA...

Entremilênios, de Haroldo de Campos. São Paulo, Perspectiva.

Lar, de Armando Freitas Filho. São Paulo: Companhia das Letras.

Paisagem II, de Horácio Costa. São Paulo: Demônio Negro.

Quando este meu generoso coração falhar, de Horácio Costa. São Paulo: Arqueria.

Trânsitos, de Virna Teixeira. Bauru: Lumme Editor.

Prática do azul, de Jorge Lúcio de Campos. Bauru: Lumme Editor.

Fronteiras da pele, de Ana Maria Ramiro. Bauru: Lumme Editor.

O sexo vegetal, de Sérgio Medeiros. São Paulo: Iluminuras.

A densidade do céu sobre a demolição, de Casé Lontra Marques. Rio de Janeiro: Confraria.

Caga-regras, de Rodrigo de Souza Leão. Rio de Janeiro: Virtual Books.

2009: ESTE ANO FOI FODA

Caros, eu não vou escrever um balanço deste ano que se aproxima do fim (e cá entre nós, não vejo a hora que termine). Estou mais interessado em planejar ações para 2010, como o lançamento de Letra Negra na Casa das Rosas, em janeiro, entre vários outros projetos literários e pessoais. Porém, não resisto a fazer um breve comentário sobre o pior ano de minha vida. É verdade, também aconteceram coisas boas; escrevi minha dissertação de mestrado sobre Ana Hatherly, fiz a defesa em junho e recebi o título de mestre em Literatura Portuguesa pela USP (agora, preparo-me para ingressar no doutorado, em 2010); obtive a faixa amarela no Aikidô (em março, farei exame para a roxa), continuei praticando Tai Chi Chuan e Espada de Tai Chi, publiquei Fera Bifronte, talvez o meu melhor livro de poesia até agora, escrevi artigos para revistas universitárias do Brasil e de Portugal, criei o Laboratório de Criação Poética, organizei o evento Artimanhas Poéticas, no Rio de Janeiro, participei da antologia Alguna Poesía Brasileña, organizada por Rodolfo Mata, que saiu no México, pela UNAM, entre muitas outras realizações no campo literário (e aqui vou abrir um parêntesis para citar a coleção Caixa Preta, que organizo para a Lumme Editor, que publicou mais três títulos neste ano, de autoria de Virna Teixeira, Jorge Lúcio de Campos e Ana Maria Ramiro). Meu filho Iúri cresce inteligente, saudável e feliz; com certeza, ele é a minha obra-prima (realizada em parceria com Regina, my wife). Estive em Recife, participando da Bienal Internacional do Livro, e aproveitei a ocasião para rever amigos queridos e revisitar igrejas barrocas (pela arquitetura, já que não tenho vínculos com o cristianismo). Completei um ano inteiro sem fumar, o que não é pequeno desafio (quem já tentou largar o cigarro sabe do que estou falando). Porém, cheguei a uma situação de completa falência financeira, sem nenhuma perspectiva imediata para a resolução desse problema. Cheguei ao fundo do poço, endividado até o último fio de cabelo. Faço votos que em 2010 as coisas mudem, ou terei de fazer as malas e mudar-me para Saturno.

Besos,

Cld.
P.S.: a Zunái está diagramada e revisada; tão logo nossa webmaster conclua as correções, a revista entrará on line.

UM POEMA DE HENRIQUE RISQUES PEREIRA

UM GATO PARTIU À AVENTURA

As palavras de vidro que tu depões em teus seios, para me ofereceres, raspam estridentes na camada inacessível dos meus olhos;
Caem e eu sonho para espalhar plumas nos espaços;
Trago na mão esquerda, hermética, fechada duramente, as delicadas linhas epidérmicas,
Leio nesse rendilhado de sensações o roteiro da minha viagem livre, o meu voo solitário, que eu inicio saltando dos telhados para as janelas;
É na abstracção hipnótica do rosa íris que eu te vejo acompanhar a estranha aventura dum albatroz,
E é ao cair da noite que eu aceno longamente os meus braços;
É na harmoniosa vibração azul que eu transmito o Sol vermelho do poente e da tristeza, e , quando as minhas mãos se transformam em pérolas puras, os teus olhos gelam para serem os gigantes da noite;

Livre um gato desliza pela goteira escura da cidade,
livre uma pequena ilha nasce no ponto ignorado do Oceano,
livres as ondas escorregam na superfície marinha,
livres os pássaros e os cavalos na noite da lua encarnada,
livre eu chamo-te dos cumes das serras,
livres as ondas os cavalos e os pássaros;

Abandono a terra da ilha para viver nos abismos, nas cidades que crescem, nos beijos que enchem o vento,
E oiço a imensa máquina que esmaga o ferro da estrada construída, a cortina sedosa dos teus cabelos, eu e tu,
e vejo o cego que avança com os braços levantados para o mundo incompreensível,
e liberta os corpos visíveis: os teus lábios, os teus seios, o teu sexo; e mães batem às janelas e imploram: LAMA!,

A um canto morre em agonia o primeiro grito;

O gato parte à aventura pelos telhados, pelos vales e pelos sonhos.

(A Zunái está diagramada e em fase de revisão, ufa...)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

DOIS POEMAS DE MÁRIO CESARINY

POEMA

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco


O GATO DITO DOMÉSTICO OU DE LINEU

Primo em linha recta do Gato Legível, uma nem sempre fundada tradição de abandalho pesa sobre a origem egípcia, eminentemente cruel e aristocrática, dos da sua espécie. O GATO urina com êxito nos objectos de lar, e quando a angina estala enfim os peitos da patroa que julgou poder fretá-lo para pequenas voltas, O GATO esfrega os olhos, abre uma janela, e voa toda a noite, de barriga para cima. Nestas surtidas voantes encontra-se por vezes com os seus camaradas libertários, e então acendem fogos que, uma vez por ano, formam cortejo em direcção à Lua, onde um gato já cego os devolve aos espaços, transformados em cinza e em máquinas de luar.

(Sim, a Zunái está atrasada, eu sei, mas logo estará on line, com mais poemas de Mário Cesariny...)

DOIS POEMAS DE PEDRO OOM

O HOMEM BISADO

Alegra-me ser todas as coisas e as sombras que elas projectam
ser a sombra dos teus seios e da tua boca
o criado de smoking branco que te agita os cabelos
para um cocktail estimulante e fresco
a mesa onde passo a ferro o teu corpo
as espáduas as coxas a curva macia dos joelhos
alegra-me ser o contorno da tua nuca e o binário motor dos teus braços
embora mais pequeno do que um corpúsculo celeste
sou os milhões de astros microrganismos estrelas
a rota de todos os navios perdidos
a angústia síntese de todos os suicidas
a forma de todos os animais conhecidos
o desenho rigoroso de toda a flora existente

Ontem em Paris hoje em Lisboa amanhã em Júpiter
caminho para a resolução de todos os problemas
sem a certeza de resolver qualquer deles
como se fosse uma máquina de somar parcelas
quatro vezes quatro oito vezes dez oitenta
sabe-me a vida ao que É
esta progressão assustadora de crocodilos bebendo limonada
Ontem fui a prostituta a quem paguei a noite
hoje serei talvez o inocente violentador frustrado
Sutmil é a cidade para onde me evado todas as noites à aventura
e «os anéis de Saturno são a força centrífuga-centrípeta que me
agita os braços no espasmo amoroso»
a cabeça em Marte os pés na Terra
vindo «lá do fundo do horizonte lívido»

O comboio está na gare o comboio vai partir
apressemos o passo o momento é solene
somos o automóvel que sobe a avenida
a pulsação acelerada dos maquinismos
taxímetro de uma cidade de província
satélites de um satélite lunar
Tu és o aeroporto eu o avião que parte
e muito mais calmos entre éter e fogo
percorremos os sonhos de planeta em planeta desfolhando o futuro a flor sempre rara
e marcamos nos astros o nosso roteiro DEZ QUILÓMETROS

amanhã tirarei o curso de sonhador especializado
* * *
O COELHINHO QUE NASCEU NUMA COUVE

Era uma vez um coelhinho que nasceu numa couve. Como os pais do coelhinho nunca mais aparecessem a couve passou a cuidar dele como se do seu próprio filho se tratasse. Com ervinhas tenras que cresciam ao seu redor a couve foi criando o coelhinho dentro do seu seio até que este passou a procurar a sua própria alimentação. O coelhinho, que tinha um coração muito bondoso, retribuindo o afecto que a couve lhe dedicava considerava-a como sua verdadeira mãe. A mãe couve e o seu filhinho adoptivo foram vivendo muito felizes até que um dia uma praga de gafanhotos se abateu sobre aquelas terras. O coelhinho ao ver que aqueles insectos vorazes devoravam tudo o que era verde cobriu com o seu próprio corpo o corpo da mãe couve e assim conseguiu que os gafanhotos pouco dano lhe fizessem. Quando aqueles insectos daninhos levantaram voo os campos em volta passaram a ser um imenso deserto de areias e pedra. O pobre coelhinho, que sempre tinha vivido nas proximidades da sua mãe couve, teve de deslocar-se para muitos quilómetros de distância a fim de procurar comida. Mas já nada havia que se pudesse mastigar naquelas terras. Passaram muitos dias e o pobre coelhinho estava cada vez mais magro mais magro e faminto. Então a mãe couve disse-lhe assim: “Ouve meu filho: é a lei da vida que os velhos têm de dar o lugar aos novos, por isso só vejo uma solução: assim como tu viveste durante algum tempo no meu seio, passarei a ser eu agora a viver dentro do teu. Compreendes, meu filho, o que eu quero dizer?” O pobre coelhinho compreendeu e, embora com grande tristeza na alma não teve outro remédio, comeu a mãe.
(Leiam outros poemas de Pedro Oom na Zunái de dezembro, está atrasada, mas já vai sair...)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

UM POEMA DE ALEXANDRE O'NEILL


A NOITE-VIÚVA

Uma pequena angústia sentida nos joelhos
Como o bater do próprio coração
E é a noite que chega
Não a noite-diamante
Mas a noite-viúva a noite
Sete vezes mais impura do que eu
Em passo obsceno em obscena força
Minúscula perversa venenosa

Escrevo o teu nome
Noite de amor que de longe me defendes
Escrevo o teu nome contra a noite obscena
Que a meu lado espera seduzir-me
Levar-me consigo
À porca solidão onde trabalho
À insónia sem margens ao vinho solitário
Duma pequena angústia
Escrevo todos os teus nomes
Puxo-os para mim tapo-me com eles
Na noite da surpresa
Noite feroz da surpresa
Noite do amor atacado de perto e conseguido
Alto e convulsivo
Noite dos amantes deslumbrados
Iluminados pelo demónio mais puro
Noite como uma punhalada ritual no invisível
Noite da vítima-triunfante

Escrevo o teu nome a meu favor e contra
Esta noite este murmúrio esta invenção atroz
A que chamam o dia-a-dia
Estas quatro minúsculas patas
Venenosas da angústia
Escrevo o teu nome cruel
Puro e definitivo.

(Leiam mais poemas de Alexandre O'Neill na Zunái de agosto, que terá, no caderno dedicado ao surrealismo, uma antologia de autores portugueses organizada por Izabela Leal.)

UM ENSAIO DE SHEYLA MAUÉS


O primeiro poema visual de que se tem notícia no mundo ocidental data de 300 a. C., no reinado de Ptolomeu I. Em uma pequena ilha chamada Simi, a nordeste de Rodes, o poeta Simmias de Rodes construiu um poema em forma de ovo cuja leitura imprime simultaneidade à mensagem poética (O 1º verso é a primeira linha, mas o 2º é a última linha e o 4º, a antepenúltima, sendo que o último verso ocupa o eixo central do poema). O poema foi chamado de O Ovo, o texto fala do nascimento de Eros a partir de um ovo primordial, o Caos. O Ovo é o primeiro poema cuja forma atinge o significado, causando uma curiosa sensação de simultaneidade. O que chama atenção é a concepção visual e experimental da palavra poética, o desafio do jogo, do movimento e do conceito. Do mesmo poeta há uma sequência de poemas em forma de “coisa”, como os poemas Asas de Eros e O Machado. Nesses poemas se conjugam forma, palavra, ritmo e poesia.

Ainda na antiguidade grega há dois poetas que experimentaram com a visualidade da palavra, Julius Vestinus, Dosíadas, Teócrito.

No século IV, Porfyrius Optatianus cria um órgão de palavras, um poema que mimeticamente recria um órgão hidráulico. Em relação à estrutura, bem ao gosto dos futuros concretistas o texto é projetado minuciosamente tendo 26 linhas verticais, sendo que cada verso é acrescido de uma letra no topo, atingindo, desse modo, o último verso o dobro do tamanho do primeiro. Simulando o teclado, um verso horizontal transpassa o poema, logo abaixo, 26 versos menores simulam a base do instrumento. Essa disposição dita um ritmo poético diferente interferindo no tempo de leitura e no espaço do poema no papel.

Os poemas, dos primeiros séculos cristãos, exploram as formas (asas, corações, altares, instrumentos, cruzes, anjos, garrafas etc.). Eles estabelecem o modelo básico para a maior parte da poesia figurada que se produziu ao longo da Idade Média e Renascimento, quando a cultura ocidental revive o pensamento da antiguidade grega. Esses poemas miméticos de origem grega ficaram conhecidos como carmen figuratum ou carmina figurata. A ousadia visual desses textos esteve desde sua origem ligada a temas sublimes religiosos e de caráter místico.

No começo da Idade Média, Venâncio Fortunato, do século VI d.C. introduz em seus textos, conceitos de simetria e geometria, ao dar ao poema a forma de cruz, símbolo de cristandade e reconciliação com Deus.

Sob influência de Venâncio Fortunato, a produção do monge beneditino germânico Hrabanus Maurus se notabiliza por tratar a temática da criação divina de forma muito particular. Seu conjunto de 28 poemas, intitulados de De Laudibus Sanctae Crucis é enigmaticamente cifrado como em disposição geométrica mesclando imagem e texto verbal. Suas possibilidades de leitura são múltiplas porque os versos são inseridos de modo independente, se pode ler o texto como um todo ou em quadros separados que, por sua vez, encerram poemas a parte. Ele construiu um sistema de código de 36 versos que continham 36 letras espacializadas uniformemente em quadrantes. Sua linguagem era simples e logo se tornou popular. Alguns estudos sobre as HQs apontam o poeta como iniciador da técnica de comunicar em quadros. O modelo de Hrabanus é diferente do carmina figurata porque amplia a utilização da palavra figurada para a palavra que se quer icônica cujos signos de diferentes signagens se possam fundir. A poética do monge germânico aproxima-se das transgressões renascentistas, em especial do ludismo e do labirinto verbal barroco além do geometrismo dos concretos. Contemporâneos de Hrabanus ainda praticam a carmina figurata como o visigótico Teodolfo e o provavelmente africano Publins O. Phorphyrius. Do início do século XVI até meados do século XVIII, momento que corresponde esteticamente ao Maneirismo e ao Barroco, depois de um período de certa desvalorização do visual na poesia consequência da repetição exaustiva e banal de recursos figurativos dá-se a redescoberta daquela poesia, revestida de exuberante inventividade pictural exercendo efeito mágico e encantatório pela instabilidade tipicamente maneirista/barroca. A contextura paradoxal da poesia visual barroca funde numa mesma peça poética, ludismo e rigor matemático-combinatório, num arranjo visual que aceita todas as colaborações possíveis do acaso, antes mesmo de Mallarmé e John Cage. Desse modo, a poesia maneirista/barroca estabelece diálogo prodigioso com Oswald de Andrade, os Concretos e com a Poesia Experimental contemporânea uma vez que usa a visualidade, que herda de sua tradição cultural, como artifício do ofício poético, como forma de recusa de descontinuidade e não de repetição, a prova disso é que recursos já desgastados como anagramas, acrósticos, textos-amuleto são oxigenados criativamente dando lugar a verdadeiros labirintos poéticos que se multiabrem em possibilidades significativas. Uma vasta antologia, em língua portuguesa, dessa visualidade pode ser verificada em A Experiência do Prodígio de Ana Hartherly onde figuram o corpus visual do seiscentismo português. Como no barroco português, no barroco baiano percebe-se a tentativa de acordar o leitor para uma forma de leitura mais livre, uma reformulação do olhar para a apreciação do objeto literário.

(Leiam o texto integral de Percurso visual da poesia ou a diacronia do moderno poético na próxima edição da Zunái.)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

COME-SE O BOI EM AZIMUTE


Eu caminhava tensamente sob o céu.

La existencia son dos noches que crees consecutivas.

A rainha ensanguentada entre as espadas e o ouro do baralho.

A forma que diz: cá estou, pronta.

Esta cidade sempre lhe foi hostil

E seu projeto mais ousado era pedir, dentro daquele estranho idioma, um copo com água.

De noite corpo quente abraçando cinza, de dia deriva

Tras el atuendo el sable aún se afila oh samurai

O cassetete atesta a tecla do corpo.

Lambendo a vértebra dos metais copulava com tudo o que do dia para a noite se mudasse para outra cidade

Pé ante pé na estepe o silêncio não fisga a tempestade nos lábios do sossego

Ele colhia e re-colhia os diamantes do asfalto.

Quem confere fere com fera será conferido.

Poema de amigo meu pra mim é prosa.

Miragens cravadas em luas cores e ventos

É sopa a excessiva colher queimada sem concha no metal dos lábios sintoma de dedos

Come-se o boi em azimute (omoplata-úbere): minotauroencéfalofagia

E corria por dentro das veias uma dispersão de venenos e vidros.

De ahí el sombrero hongo y la amanita en diestra alzada en haz de Zeus o de electrones.

Um barulho dentro de mim que não cessa de se cansar.

O pomar veste duas faces - paraíso e queda

Las yiyis de la tripefrontera están cansadas de fingir orgasmo...

Não me ofereça o paraíso — preciso de uma sombra


Setembro / outubro de 2009

Editorial da edição de dezembro da Zunái: cadáver delicado composto com a colaboração de Leonardo Gandolfi, León Félix Batista, Antônio Moura, Lígia Dabul, Donizete Galvão, Eduardo Jorge, Sérgio Cohn, Reynaldo Jiménez, Armando Freitas Filho, Márcio-André, Ricardo Corona, Micheliny Verunschk, Ademir Assunção, Rodrigo Garcia Lopes, Lau Siqueira, Abreu Paxe, Delmo Montenegro, Izabela Leal, Victor Sosa, Fabíola Ramon, Andréa Catrópa, Douglas Diegues e José Geraldo Neres.

DOIS POEMAS DE PAUL ÉLUARD

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Quem de nós inventou o outro ?

x
Rosto furador de muralhas.

x

Tua cabeleira de laranjas no vazio do mundo
No vazio dos vitrais pesados de silêncio
E de sombra onde minhas mãos nuas buscam todos os teus reflexos.

A forma do teu coração é quimérica
E teu amor se assemelha a meu desejo perdido.
Ó suspiros de âmbar, sonhos, olhares.

Mas tu não estiveste sempre comigo. Minha memória
Ainda está obscurecida por tê-la visto chegar
E partir. O tempo se serve das palavras como o amor.

Fechei-me em meu amor, sonho


NÃO MAIS PARTILHAR

à G.

Na noite da loucura, nu e claro,
O espaço entre as coisas possui a forma de minhas palavras,
A forma das palavras de um desconhecido,
De um vagabundo que desata a cintura de sua garganta
E pega os ecos pelo laço.

Entre árvores e barreiras,
Entre muros e mandíbulas,
Entre essa grande ave trêmula
E a colina que a oprime,
O espaço possui a forma de meus olhares.

Meus olhos são inúteis,
O reino do pó acabou,
A cabeleira da estrada pôs seu manto rígido,
Ela não foge mais, não me mexo mais,
Todas as pontes estão cortadas, o céu nelas não passará mais,
Posso então não ver mais nelas.
O mundo se destaca de meu universo
E, bem no cume das batalhas,
Quando a estação do sangue murcha em meu cérebro,
Distingo o dia dessa claridade de homem
Que é a minha,
Distingo a vertigem da liberdade,
A morte da embriaguez,
O sono do sonho.

Ô reflexos sobre mim mesmo ! Ô meus reflexos sangrentos !

Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho

(Mais poemas de Éluard, Breton, Artaud, Péret e outros surrealistas na Zunái de dezembro...)

QUATRO POEMAS DE FABRÍCIO CLEMENTE


APRISCO DE TARAS

1
canção de gume engastado
na guelra das galáxias
brinca de abrir brechas
no corpo da manhã

2
arquipélago pulsante perambula pelo poeta
mútua marcha de morangos

ACOSSADO

as gengivas do céu
inflamam
sete cestos de lapso

CAVALO DO CAOS

este que desfia tais demências
é meu hóspede, um demônio perdulário
ou serei eu, vapor de virulência
seu hóspede inconcluso
argamassa de medo amando morsas
gritaria gozando em sóis-fracassos
numa esquina, soberbo multiplica
espasmo outrora entrave e correnteza
subterrânea seringa que me singra
e sorve naufrágios frutificando fratricídios

AS FENDAS DO MURO

Seus cabelos são uma matilha de casarões entre os ventos de meus dedos
Um lago fita infâncias nos seus lábios
Todas as janelas foragidas
Vejo um tango de icebergs nos carrilhões dos seus olhos
Aí certamente adormecem os nômades do basalto
Aí saltam girassóis de cachecol chamejante
Um martírio de morangos em suas orelhas
Os pedestres gritam greves azuis pelos seus poros
Uma lâmina estende mesquitas de néon pela explosão da avenida
Persiste um planeta de puro amor
Nos gestos de seu colar ancestral
Na máscara prismática do imprevisto
Na pele incandescente, na surdez das planícies
Este dia desliza pelo clamor sem raízes
Seu rosto é um pomar de tigres
Duas fontes de mãos dadas descem a calçada
Crivando as rotas com ritmo de rinoceronte
Há um jardim que afirma no fim de cada teu gesto
Que o ferrolho do infinito
Outorga-nos horóscopos
De puro orvalho

(Leiam mais poemas do Fabrício na próxima edição da Zunái, saindo do forno...)

UM (ANTI-) ENSAIO DE CLAUDIO WILLER

1. A IMAGINAÇÃO

BRETON:

Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares. [...] Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar (como se fosse possível enganar-se mais ainda). (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, em Manifestos do Surrealismo, Brasiliense, 1985, pgs. 34-35)

BAUDELAIRE:

Que misteriosa faculdade é essa rainha das faculdades! (...) A imaginação é a rainha do verdadeiro, e o possível é uma das esferas do verdadeiro. Positivamente, ela é aparentada com o infinito. (...) ...todo o universo visível é apenas um lugar de imagens e de signos aos quais a imaginação deverá atribuir um lugar e um valor relativos; é uma espécie de alimento que a imaginação deve digerir e transformar. (Baudelaire, em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos tradutores, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995, pgs. 804-809)

ÉLIPHAS LÉVI:

Mas a inteligência e a vontade têm por auxiliar e por instrumento uma faculdade muito pouco conhecida e cuja onipotência pertence exclusivamente ao domínio da magia: quero falar da imaginação, que os cabalistas chamam o diáfano ou o translúcido. Efetivamente, a imaginação é como que o olho da alma, e é nela que as formas se desenham e se conservam, é por ela que vemos os reflexos do mundo invisível, ela é o espelho das visões e o aparelho da vida mágica: é por ela que curamos as doenças, que influímos sobre as estações, que afastamos a morte dos vivos e que ressuscitamos os mortos, porque é ela que exalta a vontade e que lhe dá domínio sobre o agente universal. (...) A imaginação é o instrumento da adaptação do verbo. A imaginação aplicada à razão é o gênio. (Éliphas Lévi, em Dogma e Ritual da Alta Magia, Pensamento, São Paulo, 2002, pgs. 78-79)

NOVALIS:

A imaginação é o sentido maravilhoso que pode substituir para nós todos os sentidos – e que já é tão dirigido por nossa vontade. Se os sentidos externos parecem ser inteiramente governados por leis mecânicas – então a imaginação obviamente não é subordinada ao presente e ao contato com estímulos. (Novalis, Philosophical Writings, translated and edited by Margaret Mahony Stoljar, State University of New York Press, Albany, NY, 1997, pg. 118)


2. A CRÍTICA AO REALISMO:

BRETON:

[...] a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op. cit. pg. 36)

BAUDELAIRE:

Acho inútil e fastidioso representar aquilo que é, porque nada daquilo que existe me satisfaz. A natureza é feita, e prefiro os monstros da minha fantasia à trivialidade concreta. (Baudelaire, op. cit. pg. 803-804)

BAUDELAIRE:

O que me entedia na França é que todo mundo se parece com Voltaire (Baudelaire, Escritos íntimos, op. cit. pg. 535)

HUYSMANS:

Não recrimino o naturalismo nem por seus termos de barcaça, nem por seu vocabulário de latrinas e de hospícios... [...] Querer confinar-se aos lavadouros da carne, rejeitar o supra-sensível, negar o sonho, nem mesmo compreender que a curiosidade da arte começa lá onde os sentidos deixam de servir! (Huysmans, J. K, La-bas, Plon, 1961, pg.5)

WILLIAM BLAKE:

A Imaginação não é um Estado: é a própria Existência Humana.
Afeição ou Amor tornam-se um Estado quando divididos da Imaginação.
A Memória é um Estado sempre, & a Razão é um Estado
Criado para ser Aniquilado e uma nova razão ser Criada.
Tudo o que pode ser Criado pode ser Aniquilado: Formas não podem:
O Carvalho é abatido pelo Machado, o Cordeiro cai pela Faca,
Mas suas Formas Eternas Existem Para-sempre. Amem. Aleluia! (Blake, William, Complete Writings, editado por Geoffrey Keynes, Oxford University Press, London, 1972, pg. 522)

3. SONHO

BRETON:
Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit, pg. 45)

NERVAL:

O sonho é uma segunda vida. [...] Começa aqui para mim o que chamarei de efusão do sonho na vida real. (Nerval, Gérad de, Aurélia, tradução e prefácio de Contador Borges, Iluminuras, São Paulo, 1991, pgs. 35 e 39)

4. LOUCURA

BRETON:

Fica a loucura, “a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. [...] E, de fato, alucinações, ilusões, etc, são fonte de gozo nada desprezível. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit, pg. 53)

NERVAL:

O que são as coisas deslocadas! Não me acham louco na Alemanha. [...] ...a imaginação trazia-me delícias infinitas. Recobrando o que os homens chama de razão, não deveria eu lamentar tê-las perdido? (Nerval, op. cit, pgs. 28 e 35)

NOVALIS:

A loucura comunal deixa de ser loucura e torna-se mágica. Loucura governada por leis e em plena consciência.
Todas as artes e ciências repousam em harmonias parciais.
Poetas, loucos, santos, profetas. (Novalis, Philosophical Writings, pg. 61)
(Leiam o texto integral de A Poesia Surrealista e Outras Poesias: Algumas Considerações, de Claudio Willer, no caderno sobre os 90 anos da poesis surrealista na próxima edição da Zunái.)

UM ENSAIO DE ANDRÉ DICK

Em O ocaso da vanguarda, Octavio Paz percebe e aponta semelhanças entre o romantismo e a vanguarda, considerando ambos “movimentos juvenis”, “rebeliões contra a razão, suas construções e seus valores”, além de afirmarem que “o corpo, suas paixões e suas visões – erotismo, sonho, inspiração – ocupam lugar primordial” e de serem “tentativas de destruir a realidade visível para achar ou inventar outra – mágica, sobrenatural, super-real”.[1] Além disso, em ambos a modernidade se afirma e, ao mesmo tempo, busca sua anulação. Conforme Paz, futuristas, dadaístas e surrealistas sabiam que a negação que faziam do romantismo era um ato romântico que se inscrevia na mesma tradição que concebera o até então visto como inimigo.

A principal semelhança entre os dois movimentos é sua pretensão de unir vida e arte, com a ambição de transformar a realidade, nem que para isso desvirtuar a política vigente e a percepção de mundo generalizada. E ambos o fazem através, sobretudo, da ironia, o que vai reverberar significativamente na poesia francesa que se inicia com Charles Baudelaire, autor do clássico As flores do mal. O fim do tempo linear se estabelece ainda mais com a inclusão de Arthur Rimbaud, que “quer mudar a poesia para mudar a vida”, e do mestre Stéphane Mallarmé. Sem eles, não existiriam Guillaume Apollinaire ou Paul Valéry. As Iluminuras e Uma temporada no inferno, ambos de Rimbaud, mostram essa “alquimia do verbo” que encantava tanto a geração romântica quanto a geração simbolista, sua continuação no plano literário, já às portas da modernidade e das vanguardas.

A resposta moderna ao extremo não viria com Rimbaud, que se reservou ao próprio silêncio, depois de perambular por desertos africanos traficando armas, mas com Mallarmé, que busca, nas palavras de Paz, a “convergência de todos os momentos em que possa desprender-se um ato puro: o poema”.[2] Este poema é Un coup de dés jamais n'abolira le hasard, com os “dados lançados em circunstâncias eternas”, que oferece uma “realidade contraditória porque, sendo um ato, é também um não-ato”.[3]

A partir deste ponto, pode-se concordar ainda mais com a proposição de Paz, de que “a vanguarda é uma intensificação da estética de mudança, inaugurada pelo Romantismo”. As primeiras manifestações da vanguarda foram, como observa Paz, cosmopolitas e poliglotas.[4] Thomas F. Marinetti, criador do futurismo, por exemplo, escreveu seus manifestos em francês e foi polemizar em Moscou e em São Petersburgo com os cubofuturistas russos.[5]

Alguns dos autores, no Brasil, ligados ao conceito de vanguarda tem datas significativas em 2009: João Cabral (1920-1999) e Paulo Leminski (1944-1989) se fazem ausentes 10 e 20 anos, respectivamente; Haroldo de Campos (1929-2003) completaria 80 anos; e Augusto de Campos (1931) tem a comemoração dos 30 anos de Viva vaia: poesia 1949-1979. Para Antoine Compagnon, adições como qual a pertinência da literatura para a vida ou qual sua força, “não somente de prazer, mas também de conhecimento, não somente de evasão, mas também de ação” se “tornaram mais imperiosas depois das vanguardas, quando a fé no progresso fez uma pausa”. Afirma ele: “Que se tenha sido a favor ou contra ela, essa fé determinou o movimento da modernidade: a literatura era conduzida pelo projeto de ir sempre além, seguindo um impulso que, com as vanguardas, tomou a forma do ‘sempre menos’: purificação do romance e da poesia, concentração de cada gênero em si mesmo, redução de cada medium à sua essência”.[6] Esses autores foram cercados por essa idéia de impulso, que tomou a forma do “sempre menos”, ou da “poesia menos”, como a de Augusto de Campos. E esses autores também tiveram contato entre si, apesar de mútuas discordâncias, mostrando a ligação da vida com a obra.

Se João Cabral representou um exemplo para os irmãos Campos, no sentido de uma poesia rigorosa, sobretudo esses foram exemplo para Paulo Leminski. Obviamente distanciados por uma geração (entre Cabral e irmãos Campos e irmãos Campos e Leminski), esses autores tiveram em comum o rótulo de vanguardistas. Talvez o único que tenha se mantido mais próximo de vanguarda seja Augusto de Campos: Haroldo falaria, a partir dos anos 1980, numa poesia pós-utópica, aproximando-se de um “neobarroco concreto”, mas afastado um tanto da utopia vanguardista do seu irmão “siamesmo” – que veria no irmão o “arco-íris solar”; Leminski se mostraria desconfiado com os conceitos de vanguarda, a partir dos anos 1970; e João Cabral mesmo escreveria a Augusto que não pôde ser “de seu lado”. João Cabral, como diplomata, trabalhou em algumas capitais pelo planeta, e Haroldo também foi um viajante, no sentido mais acadêmico (tendo dado aulas no exterior, como nos Estados Unidos). Augusto e Leminski, por sua vez, eram mais arraigados em suas cidades; Augusto em São Paulo; Leminski, em Curitiba, depois em São Paulo. Cosmopolitas e provincianos ao mesmo tempo, os irmãos Campos viajaram, em matéria de línguas, muito mais do que João Cabral, e Leminski seguiu viagem sobretudo à mitologia greco-latina e aos Estados Unidos de Ferlinghetti e romancistas. Como os irmãos Campos, traduziu Joyce e admirava sobretudo Mallarmé, além de Rimbaud – ambos com menos eco em João Cabral, mais afeito a uma poesia estruturada em quadras, de Guillén e Valéry, menos voltada ao cubofuturismo e à tradição de som e palavra mesclados.

Augusto e Haroldo de Campos trocariam cartas com João Cabral logo após a eclosão da poesia concreta, insinuando uma aproximação a Cabral, demonstrada através de seus textos iniciais, tomando-o como precursor do que faziam. Em um texto sobre o João Cabral, “O geômetra engajado”, Haroldo de Campos diz que ele tinha um “lugar privilegiado: o lugar cartesiano da lucidez mais extrema”.[7] No entanto, Cabral não pode ser visto como antecessor do poema objetivo, conciso e matemático, próprio da poesia concreta, embora tenha pontos de contato exemplares: o desejo de compor uma poesia crítica, ligando-a aos campos da arquitetura e da pintura. A poesia de João Cabral, ao mesmo tempo em que concentra a matéria em seus versos, em cada palavra de seus poemas, dá a sensação de fixar rótulos às coisas que a cercam – para o matemático Ludwig Wittgenstein, rotular é dar nome às coisas – consegue afastá-las: as palavras se realizam não por uma sintaxe analógica (própria da poesia concreta) nem por uma concisão, mas por uma sintaxe continuada pela quebra constante do verso e do pensamento, para retomá-lo em outra direção e pela expansão objetiva. A poesia concreta ortodoxa, inserindo os signos numa ordem plástica, não adentrava no imaginário de cada objeto como faz Cabral. Para João Alexandre Barbosa, a abstração cabralina não seria o contrário do concreto, “mas a estratégia por intermédio da qual é possível retornar, pela linguagem, ao núcleo, ao concreto, das coisas e do homem”.[8] Por isso, embora seja vista, pelo próprio poeta, como uma poesia antimusical, dura, suas raízes crescem exatamente da musicalidade, marcada, então, pela concretude da escritura. Em carta de 22 de janeiro de 1957, em resposta a uma carta de Augusto (resposta esta dirigida a todo grupo Noigandres), Cabral, como lembra Haroldo de Campos, “depois de manifestar seu apreço pelo movimento da poesia concreta e de fazer considerações sobre a predileção pelo ideograma-quadro, que lhe parecia existir da parte do grupo concreto”, escreveu: “Não participo da aversão que vocês sentem pelo verso: isto é, pela frase, pelo discurso. Não creio que a retórica, por pior que seja, tenha o poder de corromper este aspecto da linguagem e do uso possível: o discursivo. O que é possível é introduzir no discurso a preocupação com a estrutura”[9] (observação parecida àquela que Octavio Paz faria do movimento, em carta a Haroldo). Diante dessas observações, os preceitos para a inclusão cabralina nos nomes da teoria concretista – “linguagem direta, economia e arquitetura funcional do verso” – não acompanham, pelo menos como aparenta na poesia concreta, o objetivo do poeta.

(Leiam o ensaio João Cabral, Irmãos Campos, Leminski: Diálogos, de André Dick, na íntegra, na próxima edição da Zunái.)

[1] PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 133.

[2] Ibidem, p. 144.

[3] Ibidem, p. 144.

[4] Ibidem, p. 148.

[5] Ibidem, p. 148.

[6] COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê?, Trad. Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009, p. 24-25.

[7] CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras metas. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 88.

[8] BARBOSA, João Alexandre. A imitação da forma: uma leitura de João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Duas Cidades, 1975, p. 185.

[9] MELO NETO, João Cabral de apud CAMPOS, Haroldo de. João Cabral: un testimonio. Continente Sul/Sur (Revista do Instituto Estadual do Livro). Porto Alegre, n. 3, dez. 1996, p. 127-128.

POEMAS DE VICTOR DA ROSA

para sérgio medeiros

sintaxe serpente interminável,
que pende mole
ou molhada
de uma árvore muito alta: tronco de água
ou um córrego que escorre da calha
não escolhe
cai espessa,
se espalha
e nada

para cláudio trindade

um copo cheio de água fria
transborda, diáfano
com palavras de vidro quebrado

é fio de luz: recortada faca,
agudo golpe
na manhã branca.

para virna teixeira

luz fraca na boca
e branco, tudo
muito branco: os objetos,
a cortina, o céu, as mãos brancas
esticavam a saliva
- nunca estive tão perto, espere -
agulha mole na pele mas --- nenhuma dor
a pele morre aguda após
a primeira pergunta: nós dois
vamos para o céu quando acabar tudo isso?

quando me perco em uma cidade estrangeira
e olho para o mapa que é também uma cidade
inteira no bolso da calça
é como se a imagem do instante em que me perco
ficasse presa para sempre no papel

3, escrituras.

I –

linhas de luz
escritos no ar

II –

palavras de arame
o peso de um poema
pendurado
no papel

III –

a última carta
esta página úmida
seu nome
em branco

(Leiam mais poemas do Victor na próxima edição da Zunái.)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

RAVE CULTURAL NA CASA DAS ROSAS

A Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, comemora os seus cinco anos de existência promovendo uma Rave Cultural, que acontecerá neste final de semana (a programação completa está disponível no Blog da Zunái). No sábado, dia 05 de dezembro, a partir das 18h15, estarei lá participando do recital "Poeta em Voz Alta", juntamente com Ademir Assunção, Carlito Azevedo, Claudio Willer, Donny Correia, Edson Cruz, Frederico Barbosa, Marcelo Ariel, Márcio-André, Micheliny Verunschk, Virna Teixeira e outros poetas, quem puder, apareça!

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

SOBRE ÍTALO CALVINO

Bruna Fontes Ferraz
Italo Calvino é conhecido por livros que pendem para o fantástico, como As cidades invisíveis e O castelo dos destinos cruzados. No entanto, qualquer efeito ou fato estranho, como o fantástico, o realismo mágico ou o real maravilhoso, surgiriam como algo espontâneo na estruturação da narrativa calviniana. O escritor italiano tece a sua narrativa privilegiando a combinatória, a ordem, as simetrias (mesmo que sejam simetrias entre contrastes), sem preocupar-se em definir as suas obras, pois ela supera qualquer categoria, em tramas que podem muito bem misturar eventos históricos – comprováveis – com intrigas criadas pelo próprio escritor. Esse contraste entre o real e o ficcional não define a narrativa calviniana, mas, pelo contrário, a diferencia, incluindo-a numa literatura que basta por si só; assim ele se recusa a explicar certos acontecimentos, como um visconde partido ao meio ou uma armadura metálica, que se tornam naturais aos personagens e ao leitor.

Segundo Calvino os fatos estranhos, fantásticos surgem da combinação e simetrias utilizadas para a estruturação da narrativa:

Deixo para os críticos a tarefa de colocar meus romances e narrativas em uma classificação do fantástico. O que para mim está no centro da narração não é a explicação de um fato estranho, mas a ordem que esse fato estranho desenvolve em si e em torno de si: o desenho, a simetria, a rede de imagens que se depositam em torno desse fato, como uma formação de um cristal[1]. (CALVINO, 1984, p. 62)

Através da linguagem e das várias possibilidades de “jogos” que ela permite desenvolver, Calvino integrou, em suas obras, segundo a estética blanchotiana, uma “experiência total”, rompendo com paradigmas da experiência do real e do possível, para ultrapassar os limites do inexistente, do fantástico. A literatura calviniana teria, então, por finalidade ser ela mesma.

A obra de Calvino pertence à linha das pesquisas do OULIPO - Ouvroir de Littérature Potentielle -, que nasceu na França em 1960 causando uma completa revolução quanto aos modos de pensar e de escrever literatura. Tal abordagem lingüístico-literária é observada no “estilo” calviniano de fazer literatura, ao encarar a linguagem como um jogo combinatório. Segundo Alencar & Moraes, “De fato, os oulipianos afirmam que toda literatura resulta da combinatória de um número finito de objetos, dispostos de um modo que respeita certas normas, tratando-se, segundo eles, de uma questão de configuração” (ALENCAR & MORAES, 2005, p. 21-22).

Inspirado por essa lógica do jogo combinatório, em Assunto encerrado, Calvino propõe uma máquina que produzisse literatura, “servindo a uma necessidade tipicamente humana: a produção da desordem” (CALVINO, 2006, p. 204). Seria uma máquina de narrar que expressasse a reversibilidade entre o real e o fantástico, o lógico e o ilógico, a consistência e o insólito – essa ambiguidade que configura o humano, num movimento constante de remissão de uns a outros.

Diante destas considerações, objetivamos refletir sobre a máquina narrativa calviniana articulada aos conceitos de fantástico, real maravilhoso e realismo mágico propostos por Seymour Menton em seu livro La verdadera historia del realismo mágico. Nosso estudo consistirá, pois, numa leitura da trilogia Os nossos antepassados, formada pelos livros O visconde partido ao meio (1951), O barão nas árvores (1957) e O cavaleiro inexistente (1959).

Ao longo da análise, vamos verificar se estas três categorias estão presentes nos três livros. Para tal, consideraremos: a) os três protagonistas das narrativas, a saber: um visconde partido ao meio, um barão que decide morar nas árvores e um cavaleiro inexistente; b) a presença de narradores enigmáticos; c) a relação do leitor efetivando o potencial fantástico das três narrativas em questão, d) e o modo como Calvino cria o maravilhoso em Os nossos antepassados, de maneira tal que tanto os personagens históricos quanto os personagens fantásticos passariam a fazer parte do folclore italiano.

Seymour Menton, de forma simplificada, distingue o fantástico como “quando os acontecimentos ou os personagens violam as leis físicas do universo” (MENTON, 1998, p. 30). Assim sendo, em Calvino fatos inverossímeis classificam-se nessa categoria, como, por exemplo, uma armadura que se comporta como ser humano e um visconde que sobrevive mesmo que partido ao meio. Por sua vez, o real maravilhoso – termo criado por Alejo Carpentier - reúne “os elementos fantásticos que têm uma base folclórica com predomínio da cultura indígena e africana” (MENTON, 1998, p. 30). Nota-se o caráter lendário e cultural que permeia o termo criado por Carpentier: “No entanto, o realismo mágico em qualquer país do mundo, destaca os elementos improváveis, inesperados, assombrosos MAS reais no mundo real.” (MENTON, 1998, p. 30). O realismo mágico, por mais inusitado que seja certo acontecimento, pode existir, não contrariando as leis empíricas, mas mantém-se como algo extraordinário, pela sua improbabilidade de acontecer.

Após esta breve introdução, passaremos à apresentação de uma leitura das obras calvinianas citadas acima. Nesta leitura remeteremos a alguns pontos que podem ser considerados como elementos da literatura fantástica presentes nessas narrativas.

A obra O visconde partido ao meio é uma narrativa cujo tema é inusitado e que tem como intuito o divertimento. Esse livro aborda o tema do homem cortado em dois após participar da guerra entre cristãos e turcos no século XVII. O visconde Medardo di Terralba sobrevive mesmo partido verticalmente ao meio: uma metade - a direita - é excessivamente má, enquanto que a outra metade - a esquerda - é insuportavelmente boa.

Tal fato pode ser considerado como uma alegoria do homem contemporâneo que se sente, muitas vezes, incompleto, mutilado, “partido ao meio”. Além disso, a diferenciação das duas metades, entre uma boa e a outra má, possibilita o contraste, fundamentado em toda a construção narrativa calviniana, bem como a sátira caricatural, pois as metades são intoleráveis.

[1] No original: “Je laisse aux critiques la tâche de placer mes romans et récits dans une classification du fantastique. Ce qui est au centre de La narration pour moi n’est pas l’explication d’un fait étrange, mais l’ordre que ce fait étrange développe en soi et autour de soi: le dessin, la symétrie, le réseau d’images qui se déposent autour de lui, comme dans la formation d’un cristal.” (CALVINO, 1984, p.62). A tradução é nossa.
(Leiam a íntegra do ensaio O fantástico, o real, o maravilhoso, o realismo mágico e a construção narrativa na trilogia Os Nossos Antepassados, de Ítalo Calvino, de Bruna Fontes Ferraz, na próxima edição da Zunái.)

UM POEMA INÉDITO DE RODRIGO DE HARO

SUTRA DO GALO

Mil vezes repetiu o mesmo Sutra,
O galo vermelho o interrompeu.
Repetiu mil vezes, repetiu. Crista
Em riste o galo o interrompeu.

Mil vezes repetiu o mesmo Sutra.
Impertinente, batendo asas, o galo
Voou para o telhado e
Novamente o interrompeu.

Entoou o Sutra com afinco
Redobrado. Lutou contra
Inútil anseio do abandono.
Novamente repetiu o mesmo Sutra.
Mas o galo impudico, inflado
o peito, voou mais alto,
Decidido. Imerso em ouros
Dobrando o canto novamente
O interrompeu. Mil vezes
Cada hora salmodiava, sor-
Vendo minutos e segundos,
O claro Sutra recorrente. Mas
O Galo obstinado o interrompia.

Toda vez que a devota melopéia
Recomeça, o galo seguidor de horas
Canônicas, atento, o interrompe,
Maravilhado pelas formas
Luminosas da aparência.

Mil vezes repetiu o mesmo Sutra,
O galo vermelho o interrompeu.
Repetiu mil vezes, repetiu. Crista
Em riste o galo o interrompeu.

(Leiam mais poemas de Rodrigo de Haro na Zunái de dezembro, saindo do forno...)

UMA CONVERSA COM JORGE MELÍCIAS

Zunái: Por pensar em poesia, o que significa ser poeta no globo de hoje?

Jorge Melícias: Adorno escreve, na sua Teoria Estética que “a verdade é a antítese da sociedade existente”. Nesta perspectiva a função de toda a arte terá de ser sempre a de “empenhada negação do status quo.” A poesia torna-nos conscientes de certas questões como as da autoridade e da convenção, não para as fazer desaparecer (o que seria de todo impossível), mas para as reconfigurar: sendo que a desfiguração é um pré-requisito necessário à reconfiguração, à regeneração da capacidade de figurar ou de pensar figurativamente. Ela deverá ser sempre essa aversão à conformidade (num permanente processo de fuga à regra), uma constante procura de uma dinâmica a um tempo centrípeta e centrífuga. Não existem padrões de estética e cultura universais. Assim sendo também o multiculturalismo (neste irreversível processo de globalização, onde a cultura anglo-americana é hegemónica e determina os modelos culturais vigentes) enferma do mesmo não-sentido. Redobra, pois, de acuidade a questão do poder da linguagem, cabendo à poesia ir ao encontro do que a ideologia dominante coloca fora da linguagem. Pede-se à poesia uma espécie de “guerrilha”, que abra fendas no bem urdido tecido do senso-comum e da mera e rasa repetição. Só nesta dialéctica e/ou confronto da poesia com a ideologia (até porque não há poesia fora da ideologia. A poesia terá sempre ideologia, o que não significa que seja, necessariamente, ideológica) se poderão mudar os mapas da linguagem e, fundamentadamente, questionar as formas de representação da sociedade e do mundo.

Zunái: Para ficar em três nomes – Luís de Camões, Fernando Pessoa, Herberto Helder – ainda é possível produzir uma poética seminal frente ao lirismo de agora?

Jorge Melícias: Como já defendi em diversas ocasiões, o poema tem vindo a aproximar-se perigosamente do lugar da não-tensão, da razia mais ostensiva. Essa intensidade, resultante do choque dialogante entre conteúdo e forma foi, abruptamente, substituída por uma ligeireza conceptual que está aí para fazer escola. A uma poesia de força que intente, por uma árdua oficina, qualquer tipo de ruptura, sobrepôs-se uma estética do comezinho. E esse quotidiano, mais que um ponto de partida, parece ter-se fechado, irremediavelmente, sobre si mesmo, ganhando com isso contornos de alvará e arrogâncias de lei. E isto é válido tanto para uma poesia mais assumidamente ligada à memória e ao confessional como para esse revivalismo realista, com laivos de segurança social, que por estes dias grassa no panorama literário.

Mas para responder directamente à pergunta acredito que sim, que essa poética de excelência é, não só possível, como absolutamente necessária. Como defende Charles Bernstein “qualquer coisa será preferível à epifania bem-escrita da métrica previsível”.

Zunái: Sendo da Cosmorama Edições, que poéticas brasileiras são de interesse da coleção de poesia da editora?

Jorge Melícias: Tendo o Brasil geografia a mais isso reflecte-se, necessariamente, na pluralidade de vozes que constituem o espectro da poesia brasileira contemporânea. Por essa mesma razão não pretendemos confinar as apostas da editora ao eixo Rio-S. Paulo. Se aí podemos encontrar autores de grande interesse como Claudio Daniel (que abriu com o seu Escrito em Osso a edição de poesia brasileira da Cosmorama), Horácio Costa (que editaremos, estou crente, em breve) ou uma jovem poeta chamada Camila Vardarac, a verdade é que noutras latitudes esse interesse não esmorece: Wilmar Silva (de quem publicámos Yguarani) ou Ricardo Corona (que verá, já em Outubro, sair o seu livro amphibia), Ronald Augusto ou Franz Cecim, são nomes que, paulatinamente, queremos ver mais conhecidos em Portugal.

Zunái: Se a língua é um animal em metamorfose, o que pensa sobre o acordo ortográfico da língua portuguesa?

Jorge Melícias: Precisamente porque acredito que a língua é um animal em metamorfose é que não concordo com a tentativa de adestração política e económica que constitui o acordo ortográfico. Já Teixeira de Pascoaes, a propósito da reforma ortográfica de 1911, mostrava o seu pesar em relação ao desaparecimento do “y” em “abysmo” e em “lyrio (o “y” daria, segundo Pascoaes, a ideia de profundidade a “abysmo” e a ideia de elegância a “lyrio”). Não vou tão longe como Pascoaes ao defender a obliteração de sentido que a supressão do “y” então acarretou mas que, gráfica e imageticamente, algo se perdeu parece-me indiscutível. A verdade é que a grafia nunca se constituiu como verdadeiro entrave à plena fluência do português escrito, tanto por parte de leitores portugueses de obras em português do Brasil como em relação à situação inversa. Também com os restantes países de língua oficial portuguesa estou em crer que o ênfase não deva ser posto aí. Separam-nos muito mais depressa questões lexicais ou de semântica que questões gráficas, mas nunca ninguém teve a brilhante ideia de suprimir fauna ou flora que não fossem comuns a todos os falantes de português. Heureusement!!! A excelência só existe na excepção e como defende o autor de A-Poética “À igualdade quando a diferença nos descrimina prefiro sempre a diferença quando a igualdade nos anula.”

Zunái: Você também é tradutor, o que pensa sobre a língua portuguesa que se fala no Brasil se comparada ao português de Portugal?

Jorge Melícias: É onde actualmente a vertente plástica da língua portuguesa se revela em toda a sua riqueza. Para isso concorre a vastidão geográfica do próprio Brasil, o grau e a variedade de influências a que um território dessas dimensões está sujeito, quer interna quer externamente, e, obviamente, a longa tradição de notáveis estetas linguísticos em que o Brasil é e sempre foi pródiga e de que Guimarães Rosa e Manoel de Barros são apenas dois exemplos.
(Leiam a entrevista na íntegra com o poeta, tradutor e editor português Jorge Melícias na edição de dezembro da Zunái, que estará on line nos próximos dias.)

DEBATE: COMO É POSSÍVEL AVALIAR A QUALIDADE DE UM POEMA?

Dirceu Villa: só podemos falar sobre a idéia de qualidade em poesia se a considerarmos uma arte.

Se acharmos que é um cri du coeur do poeta, ou um raio que acerta sua cabeça por vezes, & que qualquer um pode escrever boa poesia, tudo o que vem abaixo é perfeitamente inútil & dispensável.

E aquilo de que falo abaixo aplica-se apenas àquele que faz distinções qualitativas dentro da arte, o crítico, ou o artista com habilidades críticas, um profissional ou um notável diletante, & não o leitor de poesia por prazer, sem a intenção de escrever sobre o assunto.

Não que as distinções a seguir não lhe sejam também úteis: não lhe são necessárias.

Há duas coisas iniciais sobre avaliar a qualidade da poesia:

a) é preciso que, no mínimo, o avaliador em questão seja um leitor muito completo & exigente de poesia: que leia poesia de várias épocas, de várias línguas;

b) é preciso que seja, criticamente, alguém que compara & que não julga por gosto.

Os pré-requisitos são esses dois.

Ezra Pound, que se dedicou mais & melhor do que qualquer outro ao assunto específico, ainda acrescenta que não se deve acreditar em quem não tenha publicado obra própria de relevo, ou que não tenha feito públicas as suas descobertas & propostas, discutindo-as.
Pound faz uma pergunta muitíssimo interessante, também: pergunta-se por que um poeta deveria saber menos de sua arte, ou sequer treiná-la, se um músico que seja digno do nome precisa conhecer sua arte & exercitá-la oito horas por dia.

A propósito disso, é preciso também dizer algo muito impopular, que é o fato de que a obra crítica de Ezra Pound permanece como o exercício mais completo de reflexão & proposta avaliativa da poesia. Livros como The Spirit of Romance, ABC of Reading, The Literary Essays of Ezra Pound & Guide to Kulchur são simplesmente fundamentais.

Voltemos aos princípios: precisa ser um leitor muito completo de poesia. Não há outro modo de conhecer aquilo sobre o que fala (& devemos supor que um leitor muito completo de poesia seja um leitor muito completo de modo geral, & que sua cultura não se limite a verso, ou a literatura). Precisa ser alguém que ama a arte, & não mero burocrata postiço que presta serviços universitários ou jornalísticos.

Se lê a poesia de várias línguas, está atento às diversas possibilidades de escrita poética, & é provável que conheça com razoável facilidade onde determinadas idéias ou formas surgiram, & onde vieram parar. E como vieram parar. O como já nos introduz no tópico b).

Comparar significa ser capaz de isolar os aspectos básicos que se repetem em autores diversos, entendendo suas excelências proporcionais; significa compreender como determinada mentalidade se tornou forma; como forma & sentido são um amálgama (não apenas em poesia, mas em arte); ser capaz de estabelecer não apenas a mentalidade mais compreensiva entre os artistas, mas, diretamente implicado nisso, o uso mais hábil da forma para o efeito, & o efeito mais importante (Jacob Burckhardt falaria em termos como esses últimos, sobre Dante Alighieri).

Dizer que forma & sentido são um amálgama não quer dizer que um índice formal deva corresponder diretamente a algo em sentido, o que críticos menores & tacanhas em geral pensam que deve.

Forma & sentido como amálgama é algo mais complexo, algo que exige a aplicação de um ouvido inteligente & atento, & uma capacidade desenvolvida no estabelecimento de relações. Entender a correspondência de um ritmo com uma emoção, por exemplo.

Poesia, como toda arte, é o registro de uma percepção rara, por quem a tem, em linguagem.

A primeira coisa que distingue um poeta é sua percepção incomum, no sentido de que é mais veloz ao estabelecer relações antes imprevistas; de que, por esse motivo, é muitíssimo mais concisa do que a linguagem corrente; de que, por esse motivo também, é quem escreve com o maior apuro, a maior atenção ao que a língua & a linguagem têm de virtual, de não explorado: o efeito é aquele já muito repetido em toda parte como um corolário, o de que a poesia nos faz ver algo como se víssemos pela primeira vez. É um clichê, & é verdade.

Um leitor crítico, capaz de entender diferenças em qualidade, é portanto aquele capaz também de um repertório crítico do passado da arte — não existe o ex nihilo: a poesia, como uma arte, tem seus princípios.

Um repertório crítico do passado da arte é a versão politicamente correta do que antigamente se chamava cânone (um nome hoje repugnado por suas relações com aplicação ideológica de poder de classe & por conexões religiosas), ou o grupo de poemas & autores que exemplificariam o que já se fez de modo excelente na arte.
(Leiam o depoimento de Dirceu Villa na íntegra, e também os de Carlos Felipe Moisés e de Susanna Busato, na próxima edição da Zunái, em dezembro.)