DIÁRIO DE UM VIAJANTE (II)

Caros, estive na fazenda Nova Gokula, um dos lugares mais lindos que conheço, com Regina e Iúri. Foram dias memoráveis, com caminhadas na mata, meditação no templo, comida natural, banhos de rio, treinos de Tai chi e uma paz que há muito tempo não sentia. Iúri adorou os pavões, teve medo das vacas e brincou de arqueólogo, investigando as marcas de limo que cobriam supostas inscrições em grandes pedras dispostas próximas ao rio. Regina e eu já pensamos várias vezes em mandar a “civilização” às favas para morarmos num local remoto, onde teríamos a visão permanente de montes, lagos e neblinas, em vez prédios de escritórios, carros, anúncios de sabonete e outros horrores do mundo capitalista. Há poucas coisas que me prendem em São Paulo: o mestrado (e depois o doutorado) na USP, a direção da Casa das Rosas, as aulas de Tai chi e Aikidô, a escola de Iúri... porém, como ensinam os sábios taoístas, tudo é mutável e temporário; um dia, estarei livre de tantos compromissos, aí pegarei Regina, Iúri e Tom (nosso gato siamês) e iremos morar bem longe, em algum lugar fora do mapa. Este não é apenas um sonho vago, mas um calculado projeto de futuro. Mais do que isso: um projeto de VIDA.

P.S.: confiram abaixo dois poemas de Han-Shan!

DOIS POEMAS DE HAN-SHAN

Alto alto no cimo do monte
De todos os lados o ilimitado extremo

Sozinho medito sem ninguém saber
A lua solitária ilumina a fonte fria

No meio da fonte agora não há lua
A própria lua está no céu azul

Recito baixinho a melodia deste canto
Este canto finalmente não é zen


* * *

Vós olhais as flores no meio das folhas:
Quanto tempo de bom podem elas ter?

Hoje temem que alguém as colha
Amanhã aguardam que alguém as varra

Cativantes os entusiasmos do coração
Após vários anos envelhecem

Comparado com o mundo das flores
O fulgor do vermelho como o conservar?

Traduções: Ana Hatherly


(Do livro O vagabundo do dharma: 25 poemas de Han-Shan. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2003. Caligrafias de Li Kwok-Wing. Tradução direta do chinês por Jacques Pimpaneau. Versões poéticas de Ana Hatherly.)

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

DIÁRIO DE UM VIAJANTE

Caros, vou passar alguns dias numa fazenda no interior de São Paulo. Quero tomar banho de cachoeira, seguir trilhas no mato, ficar debaixo de uma árvore, em silêncio, contemplando a neblina, recitar mantras védicos e me esquecer, por algum tempo, de nossa “civilização”. Regina e Iúri vão comigo. Levarei apenas dois livros: os diários de viagem de Bashô e a poesia completa de Herberto Helder. Caso eu resolva não voltar mais, não me procurem. Façam de conta que eu nunca existi. Um dia, prometo, vou sumir mesmo. Mas, por favor, lembrem-se de ler o Romanceiro de Dona Virgo antes de dormir.

Besos,

CD

UM POEMA DE HERBERTO HELDER

massas implacáveis, tensas florações químicas, fortemente
maduras, na alvorada que aparece
atrás, mortas, e no lençol de gelo
manchas bloqueadas, cortes, negras estrias,
o som, sangue, tubos de sangue, sangue,
tubular, som tubular, gemem,
rudimentares, assoberbados,
os pulmões, folhagem quente,
perfura o som no ar a traquéia eruptiva,
respiração, cacho a arder nas redes finas,
jorro de lâminas,
e a morosa manhã renascente, compreendida,
rarefeita
de folhas, tumulto branco,
cancro, precipitação em brasa,
uma abertura interior latente,
barcos levam todo o álcool
lívido
sobre águas fotografadas explodindo,
a lentidão consome a carne, formigas incrustadas,
uma gota de veneno na cabeça
transparente, antenas de ouro, o doce povoamento
carnívoro, bruscamente o sono
exalta
as apuradas linhas do esquecimento, ao fundo,
batem, pulsam paisagens de uma canção
irregular, clara, onde
se treme, levemente alto, crivado
de imagens implacáveis, os pés tocando a folhagem
negra, a cabeça degolada por um esplendor obsessivo

(Poema de Herberto Helder, do livro Ou o poema contínuo.
São Paulo: A Girafa Editora, 2006.)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

UM POEMA DE ARTURO CARRERA


CECA DA GIOCONDA

Tua voz é tudo o que necessito.
Teu sistema de perguntas:
a incerta ignorância
que se torna em mim
a maravilha conhecida.



Teu olhar lamentoso.



Algo com essa voz
que não é senão o eco ignoto do sentido:



trato de ver escrito no jogo
as vozes de quando falávamos juntos.



E quando o desejo oferecia
seu abismo de palavras, mas também
a alegria de uma luz repentina
para o movimento tênue do retrato:



menina de 7 anos numa mesa, só,
disfarçada de mosquito
junto a um prato.
Alimentando-se e vendo na televisão



Não sei; algo;



O esfumado de seu próprio sorriso!


Tradução: Ricardo Corona e Joca Wolff
(Do livro Máscara âmbar. Bauru: Lumme Editor, 2008)

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS

Conheci Regina no jornal Diário Popular, em 1990, onde eu trabalhava como revisor de textos. Na época, morava sozinho num velho apartamento do Bexiga e escrevia meus primeiros poemas “sérios”, que depois publiquei em meu livro de estréia, Sutra, que saiu dois anos depois. Eu gostava de ouvir jazz, freqüentava cineclubes, bares e livrarias que não existem mais e imaginava que, após escrever minha obra-prima, morreria aos 32 anos, quem sabe num atentado terrorista ou na queda de um Boeing 707 sobre as ilhas Fidji. Mas eu me apaixonei por Regina, e fomos morar juntos dois meses depois que nos conhecemos. Ela me mostrou várias coisas que eu não conhecia, como a cultura indiana; outras, descobrimos juntos, como a culinária escandinava, os filmes de Peter Greenaway e a pintura de De Chirico (andávamos feito loucos, indo a museus, restaurantes, cinemas, parques, centros de meditação e fazíamos amor quase o tempo todo). Ela revisou e diagramou os poemas de Sutra, e de lá para cá sempre acompanhou tudo o que escrevi; é a única crítica literária que levo realmente a sério, pois todas as suas observações foram pertinentes, inclusive as negativas. Os meus livros não seriam o que são sem a leitura atenta e paciente dela. Discordamos em música; ela ouve MPB, eu gosto de ópera, mas nada é perfeito. Fizemos em parceria a minha (nossa) melhor obra, chamada Iúri, que já tem oito anos. Em todo esse tempo de convivência, é óbvio que surgiram crises e atritos: não é possível conviver com um ser humano sem altos e baixos. Mas, se superamos tudo, é porque essa convivência não é apenas necessária, mas vital. É uma razão de estar vivo. Após 18 anos de união, tenho certeza de que estaremos juntos pelos próximos 81 anos.

A POÉTICA DA LUTA (I)

O Aikidô é uma arte marcial japonesa criada no início do século XX pelo Sensei Morihei Ueshiba, a partir das técnicas de luta dos antigos samurais. Os movimentos do Aikidô são circulares, leves e flexíveis, embora rápidos e eficazes. O Aikidô busca a integração, a harmonia e o equilíbrio por meio de um trabalho de energia interna (Ai significa juntar; Ki, energia, e Do, caminho). Todas as ações dessa arte marcial são concisas e objetivas; não há movimentos apenas de braços ou pernas, o corpo todo se movimenta integrado, de forma circular, como se fosse uma dança. A beleza plástica do Aikidô não é ornamental: cada mínimo detalhe cumpre uma função precisa no combate. Embora seja uma arte de origem guerreira, não existe o espírito de competição no Aikidô, que não realiza torneios; seu objetivo é alcançar um aprimoramento espiritual a partir da prática física (logo, é um Budô, ou caminho de sabedoria por meio da técnica corporal). O praticante dessa modalidade não opõe a sua força à do adversário: em vez de resistir, ele se esquiva e desequilibra o adversário, desviando o seu ataque e arremessando-o no chão. É uma prática de sensibilidade, de percepção e integração com o outro, com influências da filosofia xintoísta, do Tao e do Zen. Além dos exercícios de combate a mão desarmada, o Aikidô também inclui técnicas de bastão (o ) e de espada (a Kataná, usada também no Kendô), técnicas de luta no solo e de imobilização. O verdadeiro adversário, no Aikidô, não é o outro (há uma série de normas de etiqueta, de gentileza e de respeito que devem ser observadas no local de treino, o Dojo): a luta é interna, e os inimigos são os nossos pensamentos negativos e emoções como o medo, a raiva e a inveja. Neste sentido, é uma prática de meditação em movimento, que esvazia a mente e o coração daquilo que nos aprisiona, ao mesmo tempo em que estimula a sensação de plenitude.

Eu pratico o Tai Chi Chuan (estilo Liu Pai Lin) há sete anos, e comecei a praticar há poucos meses o Aikidô como técnica complementar. Foi uma das melhores coisas que fiz nos últimos tempos. Além dos benefícios para a saúde do corpo e da mente, o Aikidô é também um aprendizado do movimento, do ritmo, do encadeamento das formas, da intuição, da ação rápida, espontânea e precisa, com agilidade e refinamento. Todas estas características, é claro, têm muito a ver com a poesia (voltarei a este assunto). Para o meu trabalho de criação poética, o exercício das artes marciais é tão importante quanto a leitura de João Cabral de Melo Neto.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

GALERIA: PETER GREENAWAY (VI)


Do filme O ladrão, o cozinheiro, sua mulher e o amante.

A POÉTICA DO JOGO (VI)

A descrição do crime nas páginas finais do romance é alegórica, paródica e não isenta de certo humor negro: a sala do Mestre é convertida numa “gruta” ou “cripta”, que está “toda decorada de pinturas, de retratos de jovens em movimento e em repouso, cândidos e ágeis guerreiros ou poetas ou copeiros do eterno rei Minos”, numa desterritorialização simbólica de tempo e espaço que converte Lisboa na ilha de Creta. A Discípula “aparece agora criselefantina, pronta a dar o salto mortal por cima da cabeça do Mestre” ela “paramenta-se de oiro mas deixa o peito nu porque não há veste mais preciosa do que a pele”. O local onde o Mestre dorme, por sua vez, está “rodeado de todos os seus troféus: discípulos e discípulos mortos estão acumulados aos seus pés. Troféus de caça de toda espécie e armas, redes, laços, fundas, venenos repousam ao seu lado”, numa crítica simbólica à pedagogia como forma de poder. Tal como o Minotauro helênico que devorava as virgens que eram enviadas ritualmente a ele como oferendas, o Mestre se alimentava simbolicamente de seus alunos: “Devorava os discípulos e depois cuspia só aquela grainhazinha deles, quer dizer, aquela mínima porção que não lhe interessava”. A mutação do Mestre em Minotauro e de Lisboa na ilha de Creta desloca a mímese em favor representação alegórica dos eventos, que atinge seu clímax no reflexo especular do assassinato, ou sacrifício ritual: após matar o Mestre com um golpe de punhal no coração, a Discípula (que assume ao mesmo tempo o papel de Ariadne e de Teseu) “resolve olhar para trás para ver pela última vez o Mestre”, num gesto que recorda o de Orfeu e o da mulher de Lot, e vê a si mesma imolada: o Mestre “segura pelos cabelos a cabeça da Discípula. A cabeça da Discípula está trespassada por um punhal enterrado na fronte até ao punho”. Ao destruir aquele a quem ama, ela destrói ao amor e a si mesma.

O jogo da aniquilação recíproca, último lance de uma partida condenada ao fracasso, é prenunciado por outros episódios macabros, inseridos no romance fora de uma ordem cronológica ou de uma seqüência narrativa linear: as ações transcorrem no livro como os movimentos de um sonho, sem uma lógica mimética, tal como vimos em Anacrusa. Estes episódios registram cenas da metamorfose do desejo de fruição erótica num desejo tanático, que sonha com a imolação de si e do outro: no capítulo IV, por exemplo, a Discípula declara que gostaria de enfiar os dentes do Mestre numa fita para colocar em seu pescoço: “De resto foi sempre aí que eu os trouxe, os dentes dele, cravados na minha garganta. É uma maneira de me estrangular com o seu riso. Não creio que ele jamais tenha tido lábios porque lhe eram desnecessários; do que ele precisou sempre foi de dentes, para morder e para rir”. O Mestre é retratado como um gourmet antropófago, “muito voraz”, que “devorava os discípulos”, num festival de iguarias como “mãozinha de discípulo em geléia com molho tártaro” ou ainda ao “molho de vinaigrette” Quando lhe é servida a carne da Discípula, porém, ele não lhe come as mãos, e sim os olhos, “num prato de osso, talvez de marfim. Provavelmente no marfim dos cem vezes trinta e dois dentes da Discípula”. No capítulo VI, em vez do banquete canibalesco, temos uma cena de estrangulamento, em que o Mestre toca o corpo da Discípula não para acariciá-la, mas para torturá-la, numa inversão sádica da atitude erótica: “Entretanto o Mestre vai estrangulando a Discípula, mas todos os mestres estrangulam sempre os seus discípulos de uma maneira ou de outra. Toda aprendizagem é uma forma de estrangulamento de alguma coisa dentro de nós”. A tensão destrutiva entre o Mestre e a Discípula atinge uma dimensão plástica no capítulo IX, que parodia o célebre quadro A lição de anatomia, de Rembrandt (acervo do Mauritshuis, Amsterdã): aqui, porém, é o cadáver do Mestre que se encontra “completamente nu deitado em cima duma mesa de pedra”, onde será analisado pelos estudantes, que passam a ler suas entranhas, nada encontrando além da escuridão (outra metáfora da incomunicabilidade: o corpo do Mestre convertido numa forma de escritura ilegível, um significante sem significado). Esta passagem, de múltiplos significados e camadas de leitura, sintetiza algumas das principais chaves temáticas do romance, presentes ainda em outras obras da autora, e em especial as Tisanas, como a solidão, a impossibilidade do amor e da sabedoria; tudo é um jogo caleidoscópico, desenhos mutáveis e impermanentes, geometria da transmutação. Para representar essa visão da instabilidade e do mal-estar do viver no mundo, regido pela insatisfação, pela divisão interna do indivíduo (representada pela metáfora do Andrógino Potencial, dividido em três partes) e pelo conflito com a ordem estabelecida, Ana Hatherly atualizou os recursos do barroco em diálogo com as poéticas da vanguarda, numa época em que Portugal se debatia entre a continuação de um regime autoritário já anacrônico na Europa e a saudade de um futuro com dimensões utópicas, que inspiraria a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A POÉTICA DO JOGO (V)

O diálogo entre Mestre e Discípula é lúdico: não comunica uma mensagem unívoca, embora opaca, mas dissimula, oculta, deforma ou confunde o sentido, para além das dicotomias entre verdade e mentira, e portanto fora da esfera de recepção de qualquer tipo de conhecimento. O jogo da dissimulação e ocultamento manifesta-se sobretudo na peripécia que transcorre nos episódios do jardim, em que a Discípula persegue furtivamente o Mestre para simular um encontro casual, e ele esquiva-se fingindo ignorar a perseguição, num jogo de avanços e recuos estratégicos, como os movimentos das pedras em um tabuleiro de xadrez. Há um pacto lúdico entre eles, para usarmos uma expressão formulada por Affonso Ávila em seu estudo sobre o jogo no universo barroco. A própria narradora no romance define o jardim como “um lugar de jogo. Pequeno jogo de roda, pequeno duelo ao longe, pequeno torneio futuro, morte dos jogadores, começo de outro jogo, fim de outro jogo etc. nunca mais acaba”.

O espaço dessa aparente brincadeira de esconde-esconde é comparado a um círculo mágico, imagem metafórica que sugere a idéia de labirinto: “A Discípula é muito persistente. Vai todos os dias ao Jardim a ver se o fruto já está maduro. Sai calmamente de fora do círculo mágico para dentro do círculo mágico. Entra no Jardim. Começa olhando agudamente para todos os lados. Desce à direita o desenho grego da calçada e vai até ao fim”. Os movimentos da Discípula nesse campo simbólico recordam a perambulação do peregrino dentro de um labirinto barroco, onde ele teria de enfrentar “os perigos e as dificuldades de percurso” para “atingir a Jerusalém celeste, a cidade de Deus, ou seja, a união com Cristo”, conforme escreveu Ana Hatherly em seu estudo A experiência do prodígio — Bases teóricas e antologia de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII. Essa perambulação tinha um caráter iniciático: em sua jornada mística da periferia até o centro da arquitetura simbólica, o peregrino deveria travar um “confronto consigo próprio através dum combate-percurso cujo objetivo é destruir o mal (se no centro estiver um monstro) ou alcançar a salvação (se no centro estiver a Igreja)”.

A Discípula, no início do percurso, encara o Mestre como aquele a quem deseja se entregar, numa união mística (com o sentido de realização e plenitude), como se ele fosse um novo Cristo; num segundo momento, porém, ela o verá como um monstro, o Minotauro a quem é preciso matar (o que causará sua própria destruição), após perceber que o amor entre eles não é realizável, e tampouco a sabedoria ou a alegria. Silvina Rodrigues Lopes observou que “O tema do desencontro amoroso”, no romance, “é responsável pela deambulação labiríntica”, em cujo desfecho macabro a Discípula “vê a sua cabeça capturada como um dos troféus do Mestre que acabara de matar”. Ao destruir seu objeto de desejo, convertido em inimigo monstruoso, a Discípula realiza uma ação de natureza simbólica ou arquetípica: nas palavras de Maria Alzira Seixo, neste romance “a única ação é a da morte e mesmo essa é a mitológica, o Mestre-minotauro morto por Ariana-a-Discípula, amante da luz e da verdade e por ele também assassinada”.

A POÉTICA DO JOGO (IV)

No romance O Mestre, de Ana Hatherly, temos a definição do espaço estrutural em que acontece o jogo, a apresentação dos jogadores e ainda uma breve descrição de suas jogadas. A Discípula anseia obter o amor do Mestre, e todas as ações que desenvolve ao longo do romance são executadas neste sentido; logo, este é o objetivo do jogo. Se ela for vencedora, obterá “a Alegria plena e perfeita, como metáfora da aspiração amorosa”; se for derrotada, poderá recolher resultado inauspicioso, pois, como adverte o Mestre, “há coisas que a gente não deve querer”; este, para ela, é o risco do jogo. Os lances da partida transcorrem em dois cenários básicos, a sala de visitas da casa do Mestre, onde a Discípula vai visitá-lo, e um jardim onde ela tenta simular encontros casuais (lugar simbólico que remete, possivelmente, ao jardim do Éden, com a árvore do conhecimento do bem e do mal, aos labirintos vegetais, ao jardim de Belisa e Don Perlimplin, na peça de Lorca, e ainda ao Parque Eduardo VII, em Lisboa).

As tentativas de sedução da Discípula, como observa Nadiá Paulo Ferreira, colocam em cena “a estrutura da paixão: o amante suplica ser correspondido e exige ser amado do modo que ele imagina que se deve amar”. Seguindo uma regra do jogo amoroso, “a Discípula se oferece amável para o Mestre, seduzindo-o, porque o que ela deseja é ser a preferida do seu Mestre. Ou seja: entregar-se ao Mestre e em troca tê-lo no regime de exclusividade”. Essa trama, tradicional na literatura de amor, por si só constitui um jogo; conforme Huizinga, “Aquilo que o espírito da linguagem tende a conceber como jogo não é propriamente o ato sexual enquanto tal, trata-se principalmente do caminho que a ele conduz, o prelúdio e preparação do amor, que frequentemente revela numerosas características lúdicas”. Entre os “elementos dinâmicos do jogo” inerentes ao processo da sedução encontram-se “a criação deliberada de obstáculos, o adorno, a surpresa, o fingimento, a tensão etc.”, que podemos identificar em diversas passagens, ao longo da leitura do romance, como por exemplo, na primeira visita da Discípula à casa do Mestre, em que este cria dificuldades para recebê-la.

Segundo Huizinga, a compreensão do amor como um tipo de jogo é “especialmente, ou mesmo exclusivamente, reservada para as relações eróticas que escapam à norma social”, conceito que ilustramos com o mito de Tristão e Isolda, estudado por Denis de Rougemont na História do Amor no Ocidente, além de toda a literatura derivada da tradição trovadoresca, até o romantismo do século XIX e mesmo nos dias atuais. No caso de O Mestre, essa ruptura com a “norma social” não está num triângulo amoroso ou adultério, nem mesmo na assimetria de faixa etária ou posição social, mas na impossibilidade física da união erótica, já que o Mestre é homossexual, logo, incapaz de corresponder às expectativas da Discípula. A dissociação entre eles é marcada também por expressivas diferenças de personalidade: o Mestre que sempre ri é “cheio de contradições”, “perito na arte de simular”, “não sente”, está “sempre a mentir”, “troça de tudo”, é um “anjo indeciso”, comparável a um “muro”. A Discípula, por sua vez, “não gostava de rir nem tampouco de chorar e é por isso que andava à procura da Alegria, já que essa devia excluir o riso e o choro”; ela “tem a mania do encontro das almas” e ainda “a mania do conhecimento, da aprendizagem, é curiosa, ávida, inquisidora, persistente”. A comunicação entre eles sempre ocorre na fronteira da incomunicabilidade: nas reuniões lúdicas realizadas no jardim ou na casa do Mestre, os diálogos entre o Mestre e a Discípula são concisos, desencontrados, enigmáticos, quase antagônicos, num conflito ou tensão que evidencia a distância, mais do que o encontro entre aquela que ama e aquele que recusa ser amado.

LET'S PLAY THAT

quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião

eis que esse anjo me disse
Apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar o coro dos contentes
vai bicho desafinar o coro dos contentes
let's play that


(Poema de Torquato Neto)