quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

ZUNÁI, REVISTA DE POESIA & DEBATES / DEZEMBRO / 2015



 Editorial: Guerra contra a juventude. Estado de São Paulo, dezembro de 2015.

Entrevista com Antônio Moura

Poemas: José João Craveirinha (Moçambique), José Kozer (Cuba), Victor Sosa (Uruguai), Roberto Echavarren (Uruguai), Alfredo Fressia (Uruguai), David Gonzáles (Argentina), Erin Moure (Canadá), Ronald Polito,  Israel Azevedo, Marcelo Ariel, Roberta Tostes Daniel, Contador Borges, Angel Cabeza, Mário Alex Rosa, Bruno Bolossan, Nydia Bonetti, Marcelo Adifa, Carla Diacov, João Pestana Nery, Leandro Rodrigues, Simone de Andrade Neves,

Traduções: Rig-Veda, Vicente Huidobro, William Carlos Williams, Robert Creeley, Hart Crane, Tristan Tzara, Paul Éluard, Ghérasim Luca, Yves Bonnefoy, Gabriel Ferrater, Néstor Díaz de Villegas.

Prosa de Lisa Alves e Daniel Lopes

Galeria: a fotografia de Luiza Prado

Especial: homenagem a Guilherme Mansur

Opinião / Cadernos da Palestina:

Uma crônica da tragédia palestina

Um texto de Ghassan Kanafani

Israel mata uma criança palestina a cada três dias

Ensaios:

A literatura como estranheza, de Jorge Lúcio de Campos

Herberto Helder, o lento labor da beleza, de Paulo Braz

O desvelar do amor e da morte em Max Martins, de N. L. Ribeiro

Os enigmas sensíveis de Júlio Castañon Guimarães, de Claudio Daniel

Desbaratinados: a metamorfose em nosso mundo kafkiano ou Como maçãs atiradas às costas, de Adriano Messias

O despejo quieto de pedacinhos de ossos: o atual e o virtual na escrita ensaística de Luís Maffei e Manuel de Freitas, de Kigenes Simas.

Zunái, Revista de Poesia & Debates, www. zunai.com.br

Preço: Inconcebível. Inefável.


Onde encontrar: no ciberespaço, essa “gran cualquierparte” (Vallejo).

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

2015, ANO DE PERDAS E GANHOS



2015 foi um ano difícil para todos os brasileiros. Já comentei a situação política nacional em outra postagem neste blog (http://cantarapeledelontra.blogspot.com.br/2015/12/2015-o-ano-que-derrotamos-o-golpe.html), então farei aqui um breve balanço pessoal. O ano começou para mim sob os auspícios da conclusão de meu doutorado no programa de Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo – defendi minha tese, sobre o tema “A recepção da literatura japonesa em Portugal”, com orientação do prof. Horácio Costa, em dezembro de 2014 e ingressei no pós-doutorado já no início de 2015, no programa de Teoria Literária da Universidade Federal de Minas Gerais, com supervisão da profa. Maria Esther Maciel. Em 2016, meu desafio será ser aprovado em concurso público para lecionar numa universidade federal ou estadual. Fora do âmbito acadêmico, publiquei três títulos de poesia de 2015: Cadernos bestiais (volumes I e II) e Esqueletos do nunca, pela Lumme Editor, e Livro de orikis, pela Patuá. Os Cadernos reúnem poemas de caráter político que dialogam com o momento histórico em que vivemos, com timbre ora satírico, ora elegíaco, sem abrir mão do rigoroso artesanato de linguagem; Esqueletos é uma série de aforismos, ou poemas em prosa breves, de conteúdo autobiográfico; e o Livro de orikis é uma coleção de composições que homenageiam os orixás dos cultos afrobrasileiros, tema que pesquisei entre 2014-2015, em livros de Antonio Risério, Pierre Verger e outros autores, além da visita a terreiros de umbanda e candomblé e conversas com babalorixás (joguei os búzios com Pai Toninho de Xangô, que confirmou: sou filho de Oxalá e de Oxum). 2015 também foi o ano em que me iniciei na arte do kenjutsu, a arte da esgrima samurai, sob a orientação do sensei Ruben Espinoza. Eventos culturais em São Paulo sempre são estimulantes: apesar de minha crescente preguiça e insociabilidade, fiz questão de visitar as exposições de Kandinsky, no Centro Cultural Banco do Brasil, Frida Kahlo, no Instituto Tomie Otakhe, e de Pierre Verger, no Museu Afro-Brasil. A ópera Lohengrin, de Richard Wagner, apresentada no Theatro Municipal de São Paulo, e o filme Pasolini, de Willem Dafoe, que assisti na Reserva Cultural, completam esse pequeno panorama. Livros lidos e recebidos ao longo do ano foram inúmeros, mas seria impossível não citar Outro, coletânea poética de Augusto de Campos, Poesia antipoesia antropofagia & ca., reunião de artigos e ensaios do mesmo autor, e um livro mais antigo, mas que descobri e tive a satisfação de ler apenas em 2015: Arafat, o irredutível, biografia do líder da resistência palestina, escrita por Amnon Kapeliouk, jornalista do Le Monde, com prefácio de Nelson Mandela. A militância política foi intensa, em reuniões da Frente Brasil Popular, do Partido Comunista do Brasil e nos atos de rua em defesa da democracia e do mandato legítimo da presidenta Dilma Rousseff, contra as tentativas de golpe de estado em curso no país. Fiz questão, também, de estar presente nos atos dos estudantes secundaristas de São Paulo, contra o fechamento de escolas públicas estaduais pelo desgovernador Geraldo Alckmin (P$DB) – de longe, a pior gestão que já tivemos na gestão estadual depois de Paulo Maluf. No plano pessoal, terminei um breve romance de dois meses, que me deixou deprimido ao longo do ano, fiz novas amizades e soube cuidar de meu corpo e espírito, para resistir a todas as tentativas de destruição de minha paz interna. No final das contas, 2015 foi um ano terrível, sim, mas com perdas e ganhos consideráveis.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A PALAVRA EM MOVIMENTO





















A poesia visual de Mário Alex Rosa se apropria de objetos de uso cotidiano, como talheres, luvas, tesouras e cadeados, que são incorporados em outros territórios simbólicos, adquirindo novas possibilidades de significação. Os procedimentos estéticos utilizados pelo poeta mineiro nessa jornada criativa, como o recorte, montagem e colagem de signos, recordam as técnicas dadaístas de ready made desenvolvidas nas primeiras décadas do século XX por poetas e artistas plásticos como Kurt Schwitters e Marcel Duchamp, que incorporaram detritos da sociedade industrial em suas obras, como cédulas monetárias, selos ou bilhetes de trem, denunciando a sociedade de consumo e a perda da “aura” da obra de arte, tal como assinalado pelo filósofo alemão Walter Benjamin. A crítica da realidade imediata e dos valores culturais hegemônicos é inerente a essa perspectiva, ao mesmo tempo criadora e demolidora, que se realiza de forma eficaz pelo uso do paradoxo, da alegoria e do humor. Em seus inusitados inutensílios – para usarmos uma palavra do vocabulário de Manoel de Barros –, o poeta mineiro, nascido em São João Del Rey, não renuncia à palavra, que é incorporada ao trabalho visual como representação do pensamento e como elemento plástico: as letras possuem um desenho que se tornou quase imperceptível na prática rotineira da leitura e cabe ao poeta justamente recuperar a sua vitalidade, o seu caráter de inscrição, mais evidente nos antigos alfabetos orientais e ocidentais, como as runas escandinavas, em que a escrita possuía um caráter simbólico e sagrado.

Ao revalorizar a dimensão visual da escrita, Mário Alex Rosa atualiza a demanda de Mallarmé, para quem era missão do poeta “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”, retirando-as de sua função apenas utilitária, ditada pelo capitalismo, para que elas sejam valorizadas em seus aspectos plástico e sonoro.  A intersecção entre conceito, ritmo, imagem e movimento, de evidente caráter lúdico, constroi a ironia desses poemas visuais e poemas-objeto, que o autor mineiro apresentou na exposição Meus utensílios, realizada na Galeria de Arte Copasa, em Belo Horizonte, e que também em revistas eletrônicas como a Zunái (http://zunai.com.br/post/117084664838/galeria-m%C3%A1rio-alex). Na composição intitulada Trouxeste a chave?, por exemplo, o autor constroi a palavra Poema a partir da junção de cinco cadeados, cada um com uma letra afixada em sua superfície, indicando, de maneira metafórica, o caráter cifrado da poesia; em Uma broca para Brossa, faz um jogo de imagens e de palavras com o nome do poeta catalão, associado à capacidade de perfuração de materiais;  em Passando o poema a limpo, um ferro de passar roupa é associado a um conjunto de palavras recortadas e letraset, sob uma superfície vermelha.  Em todas estas composições, que poderiam ser comparadas aos inutensílios de outro poeta mineiro, Sebastião Nunes, autor da Antologia mamaluca, a ênfase está na metalinguagem, na reflexão sobre a própria atividade criadora do poeta; longe de representar uma atitude escapista, coloca em xeque alguns dos vetores fundamentais da lógica de mercado, como valor e função, além de questionar a facilidade da linguagem dos mass media. A subversão estética e conceitual de Mário Alex Rosa está presente também em seus livros, como Formigas (2013), elaborado em parceria com a artista plástica Lilian Teixeira, poema-objeto em que as palavras estão distribuídas em diferentes posições, à esquerda, à direita, acima e abaixo, conferindo mobilidade à escrita – e também à leitura e à própria relação entre o leitor e o livro. Em Ouro Preto (2012), Via férrea (2013) e Deus não me livre (2015), obras que apresentam poemas em versos livres, a visualidade está presente também: conforme diz o poeta, “a minha questão é sempre a letra, a forma, a palavra, o sentido tátil-visual-sonoro que cada palavra carrega, a busca é sempre a mesma, ou seja, me concentrar na particularidade que cada palavra possa oferecer. O processo é diferente, mas a tentativa de se chegar ao sentido crítico é o mesmo. A dor é a mesma”. Em Ouro Preto, é preciso destacar o diálogo que o poeta estabelece com a paisagem natural, a arquitetura, a história e a mitologia da cidade que encantou Murilo Mendes. Não se trata de lírica nativista, melancólica, nem de emulação da atmosfera barroca: o poeta reinventa a cidade como espaço subjetivo e textual, onde “cada palavra é cadafalso”.   

(Artigo publicado na edição de dezembro/2015 da revista CULT)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

CULTURA EM CHAMAS












Incêndio no Museu da Língua Portuguesa, neste exato momento, em São Paulo. Se houvesse um jornal sério, ele faria uma longa reportagem investigativa sobre a situação dos equipamentos culturais no estado, desgovernado há vinte anos pelo P$DB de Geraldo Alckmin, recordando antecedentes como os incêndios do Teatro Cultura Artística, do Liceu de Artes e Ofícios, do Instituto Butantã  e do Memorial da América Latina e o fechamento, por anos, do Museu do Ipiranga e do Museu do Imigrante, além da desapropriação do Conservatório Dramático e Musical por José Serra (PSDB) quando prefeito da cidade de São Paulo, em 2006, que levou à dispersão de sua biblioteca e ao encerramento de suas atividades. ‪#‎PSDBInimigoDaCultura.

2015, O ANO EM QUE DERROTAMOS O GOLPE


 










A sociedade brasileira viveu em 2015 uma intensa disputa política entre dois projetos de poder: o da presidenta Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), reeleita em eleições livres e democráticas no ano anterior, e o da oposição golpista, liderada pelos grandes meios de comunicação, empresários, setores conservadores da classe média e partidos como o PSDB, PPS e DEM, derrotados nas urnas e até hoje inconformados com o repúdio da população ao seu candidato, Aécio Neves.

Antes mesmo de a presidenta assumir seu novo mandato, para dar continuidade a um ciclo de doze anos de governos democráticos e populares iniciado em 2002 com a vitória do ex-líder operário brasileiro Luís Inácio Lula da Silva (PT), a oposição golpista tentou impedir a sua posse, realizando marchas fascistas pedindo a volta da ditadura militar e usando diferentes artimanhas para impedir que ela assumisse o cargo, ora pedindo a recontagem dos votos, que teriam sido “manipulados” pelas urnas eletrônicas (!!!), ora questionando as contas da campanha e o orçamento do ano anterior para impedir a sua diplomação, sem nenhuma base legal. Atualmente, o pretexto usado pela oposição é a política fiscal do governo federal – as chamadas “pedaladas” – também praticada por governos anteriores e nunca questionada.

Dilma Rousseff tem uma biografia limpa, ao contrário de seus adversários: lutou na resistência contra a ditadura militar, como guerrilheira, não enriqueceu, não tem contas na Suíça (como Eduardo Cunha), nem casas em Paris (como FHC), nem sonegou o imposto de renda, como os seus principais opositores. Ela obteve 54 milhões de votos nas urnas e é apoiada por partidos de esquerda e centro-esquerda como PT, PDT e PCdoB, setores de legendas de centro-direita, como o PMDB, pelos principais movimentos sociais brasileiros, como as centrais sindicais CUT e CTB, o Movimento dos trabalhadores sem terras (MST) e sem moradia (MTST), entidades estudantis (UNE, UBES, UJS), de mulheres (UBM), negros (Unegro), entre outras, e por intelectuais, escritores e artistas como Antonio Candido, Alfredo Bosi, Augusto de Campos, Marilena Chauí, Chico Buarque de Hollanda, Fernando Moraes, Marieta Severo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto Schwartz.

Seus opositores têm apoio da Rede Globo, revista VEJA, jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo (que também promoveram o golpe de 1964 e apoiaram o regime militar), da FIESP, entidade dos grandes empresários, da maioria conservadora na Câmara dos Deputados, presidida por Eduardo Cunha (PMDB), processado por corrupção, e de grupos abertamente de extrema-direita, financiados pelos Estados Unidos, como Revoltados On Line, Vem Pra Rua e Movimento Brasil Livre, protagonizados por personagens oriundos da ditadura militar, como o ex-capitão Jair Bolosonaro, com passado de tortura, estupro e assassinatos.

Apesar da intensa campanha de difamação de Dilma, Lula e do Partido dos Trabalhadores na mídia, que acontece todos os dias (não se trata de jornalismo, mas de difamação, calúnia e propaganda política explícita em favor do partido PSDB, que representa a direita no Brasil), no dia 16 de dezembro foi realizada uma passeata com mais de cem mil pessoas na Avenida Paulista, em São Paulo, em apoio à presidenta, além de dezenas de milhares que se reuniram em outras capitais e cidades brasileiras. Para efeito de comparação, a última passeata pró-impeachment, realizada na mesma Avenida Paulista, reuniu de 28 mil a 40 mil fascistas.

Juristas de diferentes posições ideológicas como Claudio Lembo, Fábio Konder Comparato, Dalmo de Abreu Dallari, declararam a inconstitucionalidade do pedido de impeachment – na verdade, golpe de estado --, também repudiado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Na última semana, graças à defesa que a sociedade civil fez do mandato legítimo de Dilma Rousseff e da manutenção da democracia e do estado de direito no país, o Supremo Tribunal Federal mudou o rito do impeachment definido pela Câmara dos Deputados, de modo que o tema seja discutido e votado em respeito à Constituição, sem as manobras golpistas que garantiriam a execução do golpe de estado.

Mesmo que a Câmara aprove o impeachment, o que hoje é muito mais difícil, graças ao entendimento do STF, poderá ser facilmente derrotado no Senado, cujo presidente, Renan Calheiros, já se manifestou contra o afastamento da presidenta. Esta é uma grande vitória da democracia no Brasil e motivo de orgulho para a bancada, militância e eleitores do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), cuja deputada Jandira Feghali foi responsável pela ação junto ao STF que praticamente enterrou o golpe de estado no país.

O que representa, afinal, essa disputa política?

A oposição de direita apresenta os mesmos “argumentos” já utilizados em 1964 no golpe civil-militar que derrubou o presidente João Goulart: corrupção e ameaça comunista. Curiosamente, essa mesma oposição nunca denunciou a compra de votos no Congresso para a reeeleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que pagou R$ 200 mil para cada deputado e senador que votasse a favor da reeleição, assim como nunca se revoltou com as propinas recebidas por FHC e José Serra (também do PSDB) durante a chamada Privataria Tucana – privatizações irregulares de empresas estatais lucrativas brasileiras a preço de banana, como a Companhia Vale do Rio Doce, cujo valor de mercado era de R$ 100 bilhões na época e que foi vendida por apenas R$ 3 bilhões (os valores recebidos pelos tucanos, depositados em paraísos fiscais, é fato documentado no livro “Privataria Tucana”, de Amaury Jr., mas nunca foi investigado ou punido).

A indignação seletiva da direita brasileira também aceita o chamado “mensalão mineiro” de Aécio Neves, o tráfico de drogas dirigido por um senador próximo ao PSDB – um helicóptero com 450 kg de cocaína foi apreendido, mas seu proprietário até hoje encontra-se em completa liberdade --, e ainda os escândalos de corrupção que envolvem o governo de Geraldo Alckmin (PSDB) no estado de São Paulo, especialmente nas empresas de metrô e de abastecimento de água. Dilma Rousseff, ao contrário, deu completa liberdade à Polícia Federal, ao Ministério Público e ao Procurador Geral da República para que todos os escândalos de corrupção, dentro e fora de seu governo, sejam investigados e os responsáveis, punidos – o que JAMAIS aconteceu nos oito anos de desgoverno de FHC, que engavetou todos os processos e denúncias que envolviam, já em seu mandato, a Petrobrás.

A corrupção, portanto, é apenas um pretexto para a direita, não uma questão de princípio. Em 2015, inclusive, revelou-se que grandes empresários brasileiros – os mesmos que apoiam o golpe de estado –  sonegaram imposto de renda e depositaram bilhões de dólares irregularmente em contas no exterior (confiram em http://www.brasildefato.com.br/node/33330 e em http://transfersan.com.br/portal/itau-bradesco-vale-500-empresas-devem-r-392-bilhoes-a-uniao/). Apenas três empresas – os bancos Itaú, Bradesco e Vale do Rio Doce – devem R$ 392 bilhões à União, sem que isso seja amplamente denunciado na mídia golpista. Entre as empresas sonegadoras e com depósitos em paraísos fiscais estão, é claro, grandes jornais e emissoras de televisão.

Quanto ao suposto “comunismo” de Dilma Rousseff, ele se traduz em políticas de inclusão social que, pela primeira vez na história do país, favoreceram os mais pobres, os negros e as mulheres – 32 milhões de brasileiros saíram da miséria em doze anos e o país foi retirado do mapa da fome pela ONU, graças a programas como o Bolsa-Família, elogiado nos EUA por Hillary Clinton e adotado, posteriormente, na Suíça e no Japão. Dilma e Lula construíram 12 universidades federais (FHC, nenhuma) e mais de 400 escolas técnicas (FHC, menos de 20). No primeiro mandato de Dilma, foi aprovado que 10% do PIB e 75% dos roylaties do petróleo sejam investidos na educação (e os demais 25% na saúde). O programa Mais Médicos contratou mais 18 mil profissionais da saúde brasileiros e estrangeiros para atenderem a cerca de 50 milhões de brasileiros nas regiões mais pobres do país (claro, sendo duramente atacado pela elite médica brasileira, cuja origem social é a burguesia, que tem nojo de pobres, negros e nordestinos e recusa-se a trabalhar em tais áreas).

Dilma reajustou o salário mínimo acima da inflação (segundo o insuspeito jornal Folha de S. Paulo a vida dos mais pobres melhorou 129% nos últimos 12 anos), preservou a legislação trabalhista, que o PSDB pretende “flexibilizar”, revogando direitos em benefício do acúmulo de mais lucros pelos empresários, e interrompeu o ciclo de privatizações de FHC, mantendo a propriedade estatal da Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e outras empresas públicas. O PSDB, por sua vez, tem votado no Congresso Nacional – o mais conservador desde 1964 – a favor de projetos de exclusão social, como os da redução da maioridade penal para 15 anos de idade, o da ampliação da terceirização no mercado de trabalho, o que na prática revoga direitos trabalhistas, pela redução do acesso da mulher ao aborto em hospitais públicos, privatização da Petrobrás e outras empresas públicas, fim do regime de partilha para a exploração do pré-sal, entre outras pautas reacionárias.

O PT não é um partido revolucionário; ele nasceu das lutas operárias e populares no final da década de 1970 contra o regime militar e possuía um programa socialista. Hoje, é uma legenda social-democrata, que se propõe a fazer programas de distribuição de renda, democratização do estado e ampliação dos direitos sociais, mas nem isso a burguesia brasileira, que conserva a ideologia de Casa Grande & Senzala, está disposta a aceitar.

Já o PSDB, nos estados do país que desgoverna, como São Paulo, Goiás e Paraná, tem protagonizado violenta repressão policial a estudantes, professores e movimentos sociais, inclusive com o uso de helicópteros, blindados, tropa de choque, spray pimenta, bombas e balas de borracha. Exercida pela Polícia Militar, criada na época da ditadura, a violência acontece regularmente nos bairros de periferia, contra a juventude negra e pobre. Como se não bastasse a violência contra a juventude, os desgovernos tucanos ainda tentam implementar o projeto de "reorganização" da educação, que na prática significa privatização do ensino, fechamento de centenas de escolas e demissão de professores e funcionários, além do crescimento da evasão escolar. Em São Paulo, os estudantes ocupam mais de 200 escolas e enfrentam a Polícia Militar, aos gritos de "Não tem arrego! Você tira a nossa escola, a gente tira o seu sossego!".
  
Na política internacional, Dilma Rousseff manteve a política iniciada por Lula – integração com a América Latina (MERCOSUL, Celac, Unasul), recusa à participação em uma “zona de livre comércio” com os EUA (antes, ALCA, hoje, Aliança do Pacífico), que arruinaria a indústria nacional, incapaz de concorrer com a norte-americana. Dilma denunciou a agressão imperialista à Líbia, apoia firmemente a causa da criação do Estado da Palestina, denunciando a violência sionista contra o povo palestino, e está entre os arquitetos do novo bloco geopolítico internacional, os BRICs – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul – que ameaça a hegemonia política e econômica do imperialismo norte-americano.

Já a oposição golpista, liderada pelo PSDB de Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Aloysio Nunes, Geraldo Alckmin, defende o oposto: redução da importância do MERCOSUL, retorno à OEA (onde os Estados Unidos têm direito a voto e veto), ingresso na Aliança do Pacífico, privatização da Petrobrás, fim do regime de partilha para a exploração do pré-sal e entrega de nossas riquezas para as companhias internacionais, tal como FHC fez com a Companhia Vale do Rio Doce. Um Brasil desgovernado pelo PSDB estaria fora dos BRICs e alinhado com os Estados Unidos, a OTAN, Israel, e exerceria um papel de desestabilização dos governos progressistas na América Latina – Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador, Chile, Uruguai.    

Quanto à suposta crise econômica brasileira, é preciso ressaltar alguns pontos: 1) há uma crise econômica internacional iniciada em 2007, nos EUA, quando Obama usou dinheiro público para socorrer os bancos privados, para evitar sua falência. Essa crise teve desdobramentos, nos anos seguintes, na Europa, especialmente na Grécia, Portugal, Espanha, Itália e França (nesse último país, a taxa de desemprego é de 10%; na Espanha, 26%, e na Grécia, 27%). O Brasil, sob os governos de Lula e Dilma, foi pouco atingido por essa crise, que se tornou mais visível a partir de 2014, com o crescimento das taxas de inflação e desemprego.

O que a mídia não diz é que parte da responsabilidade por essa crise é das grandes empresas brasileiras, que demitem milhares de trabalhadores, usando a desculpa da “crise”, para reduzir despesas e concentrar ainda mais o lucro, e dos próprios meios de comunicação, que buscam criar, artificialmente, um sentimento de pessimismo para justificar o afastamento da presidenta. A criminalização pela mídia das grandes construtoras brasileiras, que empregam 500 mil trabalhadores e têm realizado obras de grande porte no país e no exterior, também tem a sua parcela de culpa pela retração da economia (neste caso,  há um reflexo da contradição entre os setores capitalistas produtivos e aqueles vinculados ao capital financeiro e ao rentismo).

A situação econômica brasileira atual nem de longe pode ser comparada com a dos oito anos de mandato de FHC: basta compararmos os números dos dois governos – taxas de desemprego, inflação, PIB, valor do salário mínimo, da cesta básica, da gasolina etc. Com a saída de Levy do Ministério da Fazenda, o país tem todas as condições para retomar uma agenda positiva de desenvolvimento e de ampliação dos investimentos em programas sociais como o Minha Casa Minha Vida, maior projeto de habitação popular já implementado no Brasil, que entregou, até 2014, quatro milhões de moradias.   

Em 2016, com certeza, a disputa política continuará intensa, e os movimentos sociais têm clareza de seus objetivos: defender a democracia, o estado de direito e o mandato legítimo de Dilma Rousseff, defenestrar Eduardo Cunha da presidência da Câmara Federal – ele tem um prontuário criminal suficiente para ser preso – e lutar pela retomada do crescimento econômico, com distribuição de renda e ampliação dos programas sociais para o benefício de toda a sociedade brasileira.

#NãoVaiTerGolpe!

#FascistasNãoPassarão!


Claudio Daniel

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

POEMAS DE CRAVEIRINHA



















GULA

Uivam
as suas maldições
as insidiosas hienas
própria sanha.

Rituais
de tão escabrosa gulodice
que até nos esfomeados
aldeões da tragédia
a gula das quizumbas
se baba nas beiças
das catanas,
dos machados.



A BOCA

Jucunda boca
deslabiada a ferozes
júbilos de lâmina
afiada.

Alva dentadura
antônima do riso
às escancaras desde a cilada.

Exotismo de povo flagelado
esse atroz formato
da fala.




BLASFÉMIA

No relicário que te acolhe
é-me angustioso supor
o labor das areias
na madeira.

E meu pesadelo dos pesadelos
a iconoclasta muchém
no afã da sua lavra
orgiando-se voraz.

Blasfémia suprema
o festim.



MISSANGAS

Do avesso das pálpebras
gotejam missangas
de sal.

Penosa
amargura escorrendo
faz alcalino o rasto.


MONOGRAMA

A sotavento da face
colar aquoso
se desfia

E
em sua fímbria macia
meu lenço azul-escuro
discreto humedece
o monograma
Jota
Cê.

Colar
que se desfia
no próprio lapso.



OS POROS DA PESTE

O
gordo gato de sangue
ouve triste na madrepérola das unhas
os africanos rumores do nosso passajando
suco caqui epidérmico a chiar
um ror de ratos assomando
as cabeças perdidas
nos milhões de poros
da peste!



DE PROFUNDIS

Possessos de sangue
em abrenúncios
de gritos.

Ao rosnar
da súcia,
em de profundis de facas.



SUELTO

No laboratório
o lobo dirige a radioatividade
e concentra o cobalto.

Na igreja
pequenos esqueletos juntam
no catecismo os metacarpos
e rezam.



É UMA NÁUSEA

É uma náusea
a manifesta piedade
e cobarde a inteligência
se não interpreta a realidade.



POEMETO

Na cidade calada à força
agora falamos mais.

Que para violar este silêncio
basta porem-nos juntos
na prisão.



A GRANDE MALDITA

Isso a Grande Maldita
nunca devia ter feito.

Chegar de surpresa
e levar-te.

.......................

Sem merecer
ainda estar
ao teu lado.



SEM ALMA

Recuso
meu corpo.

Companheiro desolado
ele foge de sua alma
quando por instantes
a ternura do diabo
me toma.


KARINGANA UA KARINGANA

Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
- Karingana ua Karingana ! –
é que faz o poeta sentir-se
gente.

E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
e em plena vida se transforma
a visão do que parece impossível
em sonho do que vai ser.


 –  Karingana ! 

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

OS DISFARCES DO CRUEL DEUS TEMPO



Claudio Daniel

A duração do deserto (2013), de Nina Rizzi, lançado no I Festival Poesia Nova, realizado no Centro Cultural São Paulo, é o segundo título da autora paulista que reside em Fortaleza e também publicou Tambores pra n’zinga (2012). Em ambos volumes, a lírica narrativa de matiz modernista soma-se a outras referências, como a fotografia, o cinema, a estética do fragmento e a cultura afrobrasileira (candomblé pra nanã). Neste segundo livro, o leque é ainda mais plural, incorporando, de maneira bastante pessoal, ecos do cubofuturismo russo e da paisagem expressionista, em poemas construídos em diferentes formas e estruturas, da paródia da linguagem do e-mail à casida – gênero poético praticado nas literaturas árabe e persa, popularizado no ocidente por Federico Garcia Lorca. O multiculturalismo, aliás, é um traço evidente na escrita poética da autora: o acento oriental já aparece em seu primeiro livro, em poemas como kabuki (“com a força de um hímem / os pés apertados da gueixa / me recolho / lanço / bênçãos e espadas”), mesclado às citações africanas, em peças como jongo ojo-bo (“uso o vestido, o colar de contas, a rosa, encarnados. / e não apareço. é outubro e eu danço pra mim”) e flauta pra n’zinga (“arranco dos meus ovários teus rosários / contas pra meus afoxés, tambores”). Todas essas referências revelam uma poeta culta, que dialoga com a tradição literária e temas culturais, porém, sem afetação acadêmica ou pretensão erudita: a intertextualidade, na poesia de Nina Rizzzi, é um índice sentimental, uma pista da relação amorosa com o seu repertório de afinidades eletivas e uma exteriorização de seu imaginário. A voz da autora é lúdica e quase sempre com um timbre bem-humorado, irreverente, embora seja capaz também da solenidade da elegia, como no poema Na estrada de Sintra, dedicado ao jovem poeta Raul Macedo, falecido em desastre de automóvel (“O que acontece quando morrem os poetas? / Insensíveis, vão, corpo e mente findos. Ficam essas / Palavras e àquelas mais que lindas, lazarentas”).

A diversidade de temas, estilemas e timbres de A duração do deserto faz pensar – a princípio – na ausência de um foco narrativo, de uma unidade estrutural, mas a impressão se desfaz após uma convivência maior com esses poemas, que podem ser lidos como um diário cujo leitmotiv é o tempo, explícito já no título da obra.  A anotação epistolar (além do diário, podemos notar aqui a presença da carta, do bilhete, do e-mail) é mais evidente nos poemas lacônicos, que assumem por vezes a forma de dístico, como nesta composição: “lançar meu corpo ao cimo / e alcançar teu nome, abismo” (poema impossível, dionises variegada), ou ainda nesta peça, que justifica o título da obra: “água e sal são meus olhos, / deserto é te esperar” (te amar, assombro). A brevidade é também marca característica de seu primeiro livro, Tambores pra n’zinga, onde lemos peças admiráveis como bachiana em dois movimentos pra villa-lobos (“já volto, vou me inexistir / no peito, aquela coisa de moer cana”, que apresenta em poucas linhas um jogo entre imagem concreta e experiência subjetiva), barcarola (“é preciso me afogar de você / como se fosse morrer”) e barcarola em dó bemol (“doído é / descalçar as nuvens”), que dialogam com a música erudita e empregam o recurso da prosopopeia, ou atribuição de qualidades humanas a entes inanimados. Impossível não recordar a lírica de Safo, a poeta de Lesbos, especialmente a Safo dos poemas mais condensados, como este: “A lua já se pôs, / as Plêiades também: / meia-noite; foge o tempo, / e estou deitada sozinha” (tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos).

Notáveis, também, os poemas mais longos: Escrita aos ímpares (“Pedra ontem, pedra hoje e nunca”) e Contrapoema ao homem de meu tempo (“o homem do meu tempo em se punir, manso, me estrangula e ri”), que remete ao lirismo de Carlos Drummond de Andrade, ao mesmo tempo individual e cósmico. A poesia de Nina Rizzzi é um vasto palimpsesto onde, camada após camada, lemos os diferentes disfarces assumidos pelo cruel deus do Tempo.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

TEMOS O MELHOR CONGRESSO QUE O DINHEIRO PODE COMPRAR















Desde o início de suas atividades em 2015, o atual Congresso Nacional se constituiu em um governo paralelo, colocando em pauta projetos que se chocam não apenas com o Governo Federal, mas com a própria democracia, o estado laico e de direito: redução da maioridade penal, flexibilização da legislação trabalhista, estatuto da família homofóbico, restrição do direito ao aborto, fim da lei de desarmamento, entre outras insanidades. O Parlamento declara guerra às mulheres, aos negros, aos jovens, aos homoafetivos, aos trabalhadores, enfim, à sociedade.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O QUE ESTÁ EM JOGO NA ATUAL CRISE POLÍTICA



A atual crise política brasileira é um conflito entre dois projetos de país: um que promove os direitos sociais, a inclusão, o crescimento econômico com distribuição de renda, a transparência, a democracia, a defesa de nossos recursos naturais, a participação popular, a independência e soberania nacional; e outro que defende o retorno a um modelo autoritário de exclusão social, de repressão aos movimentos sociais e criminalização de mulheres, jovens, negros e homoafetivos, de liquidação dos direitos trabalhistas e elevada concentração de renda, especialmente nos setores financeiro, fundiário e agroindustrial, de entrega de nossas riquezas naturais às grandes companhias internacionais e de submissão ao capital internacional e à política externa dos Estados Unidos e de Israel.

POEMAS DE CHIU YI CHIH



 












 ALEPH

rastro de luz absorvida pelas ásperas formigações da cratera, sua mão esconjurada se contorce entre embriões, frascos e oblíquas vidraças – seu sangue que agora parece submergir numa tênue bolha d’água ainda se incrusta com as raízes da recém-nascida massa – e tudo escorre nessa rústica tecedura de pálidos borrões, nesse ofuscante zênite de rumores


COMO SE UM SURDO ESTREMECIMENTO

pudesse arrancar-lhe a voz que no fundo das gramíneas vacilantes se encasula e se encobre, como se nesse intervalo de incubações as raposas se agitassem no alto das copas de um pinheiro com súbitos escândalos ao lado das areias, nuvens, escamas, folhas, estradas, cinzas, manchas, trilhas, ecos, sementes, lascas, aços, pedras, espelhos, galhos, arcos, cílios, papoulas, flancos, cascos, desertos, algas, ídolos, êxodos, insônias, vidros, insetos, ilhas, plumas, cardumes, glóbulos, poros, renúncias, fissuras, páginas, rios, clavículas, riscos, silvos, aquários, quedas, ossos, cipós, trapos, ruídos, fivelas, alças, telhas, vértebras, laços e fiapos

quando todas as fibras se retesam em círculos impróprios quando todas as tábuas se dividem por entre as malhas de carbono quando todos os movimentos se recurvam até o vértice da constelação quando todas as palavras se desprendem dos seus próprios invólucros quando todo ouro é transposto ao fundo do invisível quando toda pele se desfaz e se refaz em concêntricas colunas quando todos os micróbios se encarregam de conduzir o sopro da vida quando todas as luzes e sombras se rebatem contra o teto quando todas as janelas desabam lentamente ao longo da avenida iluminada

enquanto eu e você escutamos aquela fera de narinas obtusas enquanto as áridas flechas de gelo atropelam o perfume das sacadas enquanto as asas retilíneas se alongam sob as estreitas películas enquanto começamos a duvidar de todas as aventuras e tragédias enquanto meus olhos translúcidos se fecham pouco a pouco enquanto seu reflexo se eleva ao limiar de um recomeço improvável enquanto os pensamentos se flagelam contra as brasas e as têmporas se estendem aos astros insufláveis


UM RIO DE AMÊNDOAS

espalha-se no leito dos sulcos, um rio que sobe e desce, como animal intocável, signo recoberto pelas insígnias da fuligem, ronronando debaixo das calçadas, dos ladrilhos e das embocaduras, relíquia-faca, gesto-hiato, susto-império


COMO SE UM FEIXE DE LUZ

pudesse atravessar-lhe o peito que na superfície das rochas enrugadas se desvela e se descobre, assim como se nesse ponto dourado os olhos pudessem apalpar a tímida e sonora rachadura que arde e retorce e repousa sob os inúmeros algarismos

com suas chamas que se resguardam com seus truques impassíveis com suas litografias impalpáveis com seus calcanhares que se empalidecem com suas ébrias efemeridades com seus cegos rangidos com seus gritos que se emudecem com suas imprecisas caminhadas com seus suores desvalidos com seus versos quiromânticos com seus lábios inalcançáveis com suas pálpebras insolúveis com seus dedos intangíveis com suas válvulas que se intumescem


como se ainda em convulsões cada estrela fosse uma abrupta circunferência daquilo que jamais se nomeia

nessa voragem em que relampeja o bico das armaduras durante a invasão de cada pedaço onde o assobio do cristal é quase uma nuvem-esgrima

apesar de que nascemos e morremos sem que nenhum de nós possa guardar consigo a relíquia da difusa claridade que resplandece diante de nossos olhos

apesar de que toda rosa se desvanece e nenhuma luz se revela no meio da balbúrdia quando alguns pássaros crucificados começam a dançar em torno das clareiras

apesar de que nenhuma alma se entrega ao corpo desenganado quando ninguém sonha na expiação do enxofre e nunca eu mesmo fui capaz de compreender minha própria insignificância

apesar de que nem seríamos corajosos a ponto de acariciar aquela cordilheira longínqua e tampouco isso faria a mínima diferença já que um chimpanzé saltaria de um prédio a outro num milésimo de segundo

apesar de que nem todo fogo poderá ser apagado pela velocidade do córrego assim como jamais o medo será extirpado de nossos pensamentos enquanto os músculos se revigoram em diversas gotículas numa espécie de transbordamento incessante

apesar de que algumas linhas esgarçadas se recompõem à margem dos contornos imponderáveis quando são açoitadas numa turbulência sem volta e assim se precipitam em inúmeras verticalidades

apesar de que a sombra por onde se infiltra o acaso jamais continuará sendo a mesma e por isso aquela porta vislumbrada em seu perfil poderá se desmanchar numa figura incognoscível

com rasgos e viscos e larvas e lírios
e fios e fendas e joelhos e cordas

com varetas e tijolos e presilhas e joias
e papéis e cartões e anéis e assoalhos

com chicotes e braços e motores e cadarços
e tesouras e xícaras e réguas e relógios

com sedas e quadros e ímãs e agulhas
e sacos e grampos e trincas e bússolas

com sinos e alumínios e calças e bicicletas
e palitos e livros e escoras e andrajos

com flocos e discos e rastros e espinhos
e hélices e ovários e luvas e gessos

com vasos e gases e ruínas e rosas
e roncos e relinchos e berros e arrepios

com tudo que pode se dispersar em ralos com tudo que pode se dissolver em ondas com tudo que pode se destrincar sob os muros com tudo que pode se desembaraçar atrás de cordões

com tudo que pode se destravar por meio de parafusos com tudo que pode se descolar em trombas com tudo que pode se desembocar em frotas com tudo que pode se despovoar no meio de tropas

com tudo que pode se desmentir em gestos com tudo que pode se desfazer em imagens com tudo que pode se descosturar em escórias com tudo que pode se desmembrar em membranas

com tudo que pode se desarranjar por meio das erosões com tudo que pode se desalojar após as explosões com tudo que pode se desencravar em escarificações com tudo que pode se desossar com a ferrugem

com tudo que pode se dissipar em ceras com tudo que pode se desandar em rodas com tudo que pode se destrancar em ruas com tudo que pode se desenredar em feiúras

com tudo que pode se desamarrar em escadarias com tudo que pode se despencar atrás das portinholas com tudo que pode se desatrelar em troças com tudo que pode se desvelar em vórtices

com tudo que pode se desatar acima das violas com tudo que pode se desdizer com astúcias com tudo que pode se desprender com alicates com tudo que pode se desarticular em restos

com tudo que pode se desalinhar atrás das grades com tudo que pode se deslizar acima das traves com tudo que pode se desaprumar das cadeiras com tudo que pode se desanuviar no centro das tempestades

com tudo que pode se descuidar após a saciedade com tudo que pode se despregar atrás das estantes com tudo que pode se desdourar em demônios com tudo que pode se destroçar com miolos

com tudo que pode se desaguar sobre formigas com tudo que pode se dissecar em parábolas com tudo que pode se desacreditar em fábulas com tudo que pode se desferir em frestas

ENQUANTO UMA GARGANTA SE RETORCE

e a gralha desce da nuvem
e nenhum orvalho atravessa o campo


ENQUANTO UM ADORMECIDO SE ERGUE

e o outono se deita sob as rosas
e nenhum rosto amanhece


ENQUANTO UM CASCO SE DESESPERA

e o ruído enrouquece
e nenhuma sombra se apaga


ENQUANTO UMA LÁSTIMA SE FAZ AUSENTE

e a curva estremece
e nenhum soldado se condensa


ENQUANTO UM VASO SE ENRAIVECE

e o galo acende sua crista
e nenhum estábulo desmorona


ENQUANTO UM OLHO SE APROXIMA

e o vício amadurece
e nenhum escaravelho se silencia


ENQUANTO UMA VOZ SE ESPALHA

e o mundo se contrai
e nenhum artifício aniquila


ENQUANTO UM MURO SE MULTIPLICA

e o rosto se mumifica
e nenhuma teia ilumina


ENQUANTO UM TANQUE SE ENRIJECE

e a mesa se congela
e nenhum sono anoitece

os túneis, as escrivaninhas e as escumadeiras começam a se enlaçar ao redor das axilas tal como se antes nunca houvesse ocorrido aquele entrecruzamento de nódoas esfomeadas

quando um vestido se estilhaça sobre os terraços suspendendo-se contra aquela inversão que acaba de ser expelida através das entranhas

ou como se tudo pudesse retornar à sua nulidade inesperada atravessando o deserto das cloacas ainda que nem toda terra seja restituída à sua forma primordial

como aquele rosto a dissolver-se com as suas minúsculas ventosas para além do centro da sala e nunca mais permanecesse encerrado em sua própria moldura

à semelhança daquela abóbada seviciada que recomeça a trajetória acima dos gestos de um ancião eclodindo em mil fagulhas de aço

enquanto as ventanias ainda resistem no insoldável nódulo das imensas cavidades da casa de alvenaria ao mesmo tempo que os quartzos gemem de ponta a ponta na infame réstia de percevejos onde debaixo do olho da tristeza a porta do saguão se pulveriza

e todos cães emplumados se inclinam contra os degraus enfurecidos tal como se a maçaneta se retorcesse num murmúrio incompreensível de algumas cutiladas sonolentas no instante em que balbuciamos as intermitências de uma língua absolvida

como se um leve relampejar pudesse arrancar-lhe a mão que no fundo dos lajedos se enclausura e nessa efusão de manchas uma minúscula orla esbranquiçada se atirasse contra seu rosto

e assim pouco a pouco o devolvesse ao céu crivado de artérias enquanto um sorriso se derrama no interior da vasilha desconsolada

tal como se um grito escarrado se sonhasse para fora de si quando somos compelidos a esculpir a cada noite por mais breve que seja a vida no estreito cadafalso do vento


(Poemas do livro Metacorporeidade, de Chiu Yi Chih. São Paulo: Córrego, 2015.)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

POEMAS DE RONALD POLITO



MANHÃ


Um fórceps.
Do escuro para
dentro. Da luz
parcial. Aos solavancos.
Numa cratera.
Sem tamponamento.
Entre moscas. Tapas.
Pelo meio do maciço
contrativo. Refilado.
No coração da bomba.
Da propriedade dos meios de.
Com tentáculos.
Glaciares.


MÃO DUPLA


horizonte-abismo
daqui nada é distinto
nem se emenda
daqui tudo é miúdo
não se tem a ideia de muito
nenhuma trilha ou asa
ou pausa
acordar já parece grande
o bastante
no peito uma pedra crescendo para
si
há certos animais que
sangram mais
na hora da agonia da alegria
mãos que antes são
garras que ainda
são facas
cédulas xifópagas
páginas diárias de despedaçar
luas e luas sem luz
aqui nesta paragem ou pane
para cada célula
que dana
então
de onde
abismo-horizonte


APARIÇÃO

Nenhum rastro ou luz,
vento sem assento,
não coração, legião.

Nos ombros, tudo (menos
a loucura).
E a lição absurda das entranhas.
Então; a visão.

Eu, um holocausto vivo.


SIM

deste único lugar um
lugar algum
aqui de dentro
da pós-morte
o tempo depois do tempo
este além sem suplemento
o adiante redundante



ENCANTAMENTO

Nem teus passos.
Nem teu peso.
Ou o hálito
como novelo. Ou
a pele feito correnteza.
E um roçar de braços.
Com a prumada do peito.
E já o rosto inteiro.
Não. Nenhuma palavra.


QUEM IMAGINARIA


um deserto sem desertos


* * *


Um relâmpago.
Escuro.
Um homem.

(Poemas do livro Ao abrigo. Belo Horizonte: Scriptum, 2015.)

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

ANTILABIRINTO










éstos mis alarmados compañones.

César Vallejo
À desordem de pensamentos escuros —
figuras foscas, restos roídos
nos escaninhos
da memória.
Este é o meu braço esquerdo
que por sua conta
recusou ser treva.
Este é o meu braço direito
avesso a considerações
indelineável como um pesadelo.

Absurdidade, minha fêmea
entulhada em meu desterro.
Tudo são retalhos,
figuras em folhas-de-flandres
refratadas em meu próprio minério.
Morde-se, minha memória.
Nenhuma similitude
com o lameiro do cotidiano.
Estamos quites. Ensarilhados
em nosso nevoeiro.

Absurdidade, minha fêmea
reverbera em meus ossos:
estas quinas sem remate;
estas quinas de um antilabirinto
que sozinho percorro.
Esta é a minha clavícula;
esta é a carantonha com que insulto
as febres no espelho. Porque nada
faz sentido. Estamos quites.
Ensarilhados em nosso nevoeiro.

Absurdidade, minha fêmea
esta é a minha língua deformante,
meus jogos dissuasórios.
Porque nada faz sentido, nada.
Anjos pictóricos de estranhas asas
anunciam o próximo massacre:
corpos carbonizados numa aldeia
da Nigéria. Dois mil mortos.
Nenhuma repercussão na mídia.
São apenas negros: quem se importa?

2015

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

SOBRE A "LITERATURA DE MERCADO" (II)



A Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), evento criado para promover os autores publicados pelas grandes editoras, em especial a Companhia das Letras, com amplo apoio midiático, recebe patrocínio de um banco estatal, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDS). Sim, um evento de empresas privadas recebe financiamento de um banco público. Alguém sabe dizer quais são as contrapartidas oferecidas por essas empresas privadas ao estado brasileiro? Ou trata-se apenas de mais um triste exemplo da privatização do estado nacional?

terça-feira, 20 de outubro de 2015

SOBRE A "LITERATURA DE MERCADO"

Há literatura de entretenimento de qualidade? Sim, há. Escritores que se dedicaram à ficção científica, ao terror, ao romance policial ou de aventura, como H. P. Lovecraft, H. G. Wells, Julio Verne, Ray Bradbury, Conan Doyle, Alexandre Dumas, para citar poucos exemplos, criaram obras originais, com enredos que anteciparam invenções e descobertas científicas que aconteceriam muito tempo depois, como os submarinos e a viagem à lua, ou que ainda não ocorreram, como o deslocamento para outras dimensões do tempo. Não se trata, é claro, de obras com a mesma densidade psicológica de Dostoievski, com a riqueza da investigação social de Balzac ou com a violenta novidade formal de Joyce, mas são bem construídas, prendem a atenção do leitor ingênuo ou culto (Jorge Luis Borges amava Robert Louis Stevenson, autor de A Ilha do Tesouro) e conseguiram passar pelo crivo do mais severo dos críticos literários, o Senhor Tempo. 
 
OUTRA COISA, totalmente diferente, é a "literatura de mercado" promovida pela mídia, grandes livrarias e editoras, como a Companhia das Letras, que não tem a mesma originalidade temática de um Júlio Verne ou de um H. G. Wells, nem preocupações de ordem filosófica, estética ou social, mas que é maquiada para ser apresentada ao público como se fosse "grande literatura". Nisso reside a sua essencial mentira: não estamos falando aqui de obras que acrescentam alguma coisa à tradição literária, em geral elas apenas repetem clichês sobre a violência urbana, o misticismo, a sexualidade, conflitos culturais ou supostos dramas existenciais com a leveza e descompromisso de uma crônica de jornal ou livro de autoajuda. São publicações para serem lidas no salão de cabeleireiro, no consultório da psicanalista, no metrô, na fila do banco, e depois emprestadas a um amigo e completamente esquecidas. Não têm substância que permaneça, que mereça releitura, para a descoberta de outras camadas de significados ou para o reencantamento dos sentidos, pelo prazer estético do texto. São livros realmente ruins. 

Sem dúvida, é possível argumentar que essa avaliação depende também de critérios de gosto, que é subjetivo, ou de modelos teóricos da crítica literária. Neste caso, podemos contra-argumentar apresentando a seguinte comparação: um livro como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, foi publicado em capítulos na imprensa diária da época, há mais de cem anos – logo, havia um propósito comercial nessa literatura – mas ainda hoje é lido e estudado, por sua imensa riqueza formal e imaginativa; alguém acredita, sinceramente, que o romance de Fernanda Torres será lembrado daqui a cinco anos, ou mesmo cinco meses? Não há nenhum mal na diversidade de estilos, gêneros e técnicas literárias, não há nenhum mal num escritor pensar deliberadamente em escrever obras de entretenimento, para obter retorno financeiro, quando suas obras são bem escritas (pensemos no caso de Edgar Allan Poe, criador da literatura policial). 

O problema ético, literário e cultural, em minha opinião, acontece quando a “literatura de mercado” monopoliza a atenção da mídia, se impõe ao leitor pelo lobby de grandes editores e livreiros, obtém o favor de concursos, bolsas e editais, pelo poder de fogo da indústria cultural, acaba sendo reconhecida inclusive pelo Ministério da Cultura e secretarias estaduais, em detrimento da literatura séria produzida por poetas, contistas, romancistas ou dramaturgos que não compactuam com o mercado e produzem obras densas e inventivas que são recusadas pelo lobby da indústria cultural. Não existe igualdade de oportunidades porque o livro que saiu pela pequena editora não terá o mesmo espaço, na vitrine da Livraria Cultura, que o título publicado pela Cosac & Naif ou pela Record, não terá resenha ou mesmo notinha nos jornais, não será comprado pelos órgãos públicos para ser distribuído em bibliotecas escolares e raramente receberá prêmios ou bolsas em concursos. É uma literatura que já nasce com o estigma de “difícil”, “não comercial”, portanto, à margem do sistema. É negada a igualdade de oportunidades e, assim, é negada a liberdade de escolha do leitor: o mercado impõe aquilo que bem entende, com uma imensa rede de apoio pública e privada, e assim implanta a massificação, a boçalização da sensibilidade. Quem perde com isso? Os escritores, os leitores, a literatura e a construção da memória e da cultura nacional.