Um autor é sempre o pior crítico literário de sua obra. Sua
opinião, contaminada pela subjetividade, pode conduzir a dois grandes
equívocos: o da excessiva indulgência, motivada pelo narcisismo, ou o da autodepreciação, ditada por têmpera masoquista ou simulada modéstia. Em ambos
os casos, será difícil separar o seu parecer de uma intenção de propaganda, não
sendo raros os casos em que o autor faz a exposição pública de seus
ressentimentos: não ter merecido o elogio de seus pares, nem ao menos uma única
resenha de seu livro (obviamente) genial. Alguns bradarão a injustiça dos
prêmios e concursos, outros acusarão o colega mais conhecido de ter se
apropriado de sua ideia (obviamente) genial para um grande romance ou peça de
teatro. Poucos se atreverão a analisar a própria escrita como um pintor
descreve o seu método de pintar, ou como um compositor expõe o seu processo
criativo: a escrita tem (ainda) uma “aura” romantizada, apesar da conhecida
anedota de Baudelaire, retomada por Walter Benjamin. Correndo todos os riscos
expostos acima, atrevo-me a fazer um breve comentário sobre as fases de minha
atividade poética, por um único motivo: é um balanço crítico que faço para mim
mesmo, e para aqueles interessados em minha escrita. Em meus três primeiros
livros – Sutra (1992), Yumê (1999) e A sombra do leopardo (2001), é visível a influência da Poesia
Concreta – especialmente de Haroldo de Campos –, do Neobarroco, da poesia e
filosofia chinesa e japonesa e (no caso do último título) de alguns poetas
expressionistas de língua alemã, especialmente Georg Trakl e Gottfried Benn.
Acredito que este repertório me acompanha até hoje, apesar das mudanças
temáticas que aconteceram no livro seguinte, Figuras metálicas (2004), que inicia uma segunda fase de minha
escrita, à qual pertencem ainda Fera
bifronte (2008), Cores para cegos
(2012) e Esqueletos do nunca (2015, este último uma série de aforismos e pequenos poemas em prosa de caráter autobiográfico). Nestas quatro obras, a presença
barroca é mais explícita, pelo emprego de recursos e formas poéticas como o
anagrama, o enigma, a alegoria, o labirinto de versos e o labirinto de
palavras, mas há um elemento novo aqui: o afastamento da ilusão de uma “poesia
pura”, abstratizante, e a tentativa de representação do mundo, por exemplo no
bestiário incluído em Figuras metálicas,
em que baratas, piolhos, pulgas e formigas representam personagens contemporâneos
como a atriz de novela, o executivo, o gerente de markerting e o operário fabril. Nos primeiros poemas do volume,
também está presente o tema da guerra, e em especial as intervenções
imperialistas no Iraque e no Afeganistão (por exemplo, no poema Os budas de Bamyan). Esta mudança temática, embrionária, irá amadurecer na
terceira fase de meu trabalho, que inclui, até agora, os Cadernos bestiais, organizados em três volumes, sendo que o
primeiro foi publicado em 2015, e o Livro
dos orikis, inédito. No primeiro volume
dos Cadernos, reuni os dez poemas Antimídia; no segundo, que sairá em
2016, estão os Hinos -- ao Homem de Bem, ao Juiz, ao Médico, ao Fabricante de Cerveja, à Polícia, ao Predicante, ao Humorista, ao Congresso Nacional etc. -- e
no terceiro haverá uma série de Retratos
-- do Banqueiro, do Filósofo, do Sonegador, do Endividado, do Famoso
Romancista, do Poeta Burguês etc. Retrato é um gênero da poesia barroca
em que as qualidades (ou defeitos) do retratado são simbolizadas por animais,
pedras, flores, frutos, minérios. Posteriormente, reunirei os três cadernos em
um único volume, que terá como fio condutor a representação crítica, alegórica, do tempo presente, com o emprego da ironia e da sátira (elementos
ausentes, até então, em minha poesia, embora visíveis na prosa do Romanceiro de Dona Virgo). A influência de Brecht e de Maiakovski,
nesta terceira fase, é evidente. O livro
dos orikis será uma reunião de 18 poemas dedicados aos principais orixás do
candomblé, das tradições ketu, jejê e bantu, com uma visada contemporânea. A
espiritualidade, aqui, não se divorcia do enfoque crítico das injustiças
sociais, ao contrário: as entidades são evocadas – ou invocadas – dentro de uma
voluntária parcialidade e posicionamento político. Este é, talvez – e aqui é impossível evitar a subjetividade – o meu livro melhor realizado, em termos poéticos, pela
fusão de fundo e forma e por uma espontaneidade musical que surpreendeu o autor.
Acrescentar qualquer outra declaração seria condenável prolixidade; creio ter
dito o suficiente para delimitar o terreno e expor-me à crítica roedora do
tempo e das traças.
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