domingo, 22 de dezembro de 2013

GALERIA: LOUIS ARAGON




Louis Aragon (Louis Andrieux), poeta e romancista francês, nasceu em 03 de outubro de 1897 em Paris. Sua família era proprietária de uma pensão num bairro abastado da capital francesa. Após concluir os estudos no Liceu Carnot, em 1916, ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade de Paris. Convocado para o serviço militar, serviu como médico auxiliar durante a I Guerra Mundial. Após o conflito, retomou os estudos e conheceu André Breton, que o apresentou ao surrealismo. Nos anos seguintes, dirigiu, juntamente com Philippe Soupault e Breton, a revista Littérature. Aragon estreou como poeta em 1920, com o livro Feu de joie, ao qual seguiram outras publicações, como o romance Anicet ou Le Panorama (1921), a compilação de contos Le libertinage (1924) e a narrativa satírica Le paysan de Paris (1926), entre outras obras. Em 1928 conheceu Elsa Triolet, escritora russa, cunhada de Maiakovski, que  foi o seu grande amor e com quem se casou. Filiou-se ao Partido Comunista Francês (PCF) e realizou, em 1930, uma visita à União Soviética. De volta a Paris, distanciou-se dos surrealistas e publicou Le front rouge (1930), poema de temática revolucionária, escrito sob a influência de Maiakovski. Nos anos seguintes, Aragon publica poemas, artigos de jornal, ensaios e romances de nítida influência marxista. Durante a Guerra Civil Espanhola, alistou-se como voluntário e combateu ao lado dos republicanos. Quando a França foi ocupada pelas tropas nazistas, em 1940, participou da Resistência, assim como Paul Éluard, também militante do PCF. Entre seus livros publicados nesse período destacam-se Le crève cour (1941) e Les yeux d’Elsa (1942), sua obra mais conhecida, em que celebra o amor absoluto. Após a II Guerra Mundial, colabora em jornais e revistas como Ce soir e Les lettres françaises e publica outros livros importantes, como Elsa (1958) e Le Fou d'Elsa (1963). Entre seus últimos títulos publicados destacam-se os romances La mise à mort (1965) e Blancheou l’oubli (1967). Louis Aragon, um dos maiores poetas franceses do século XX e um dos fundadores do surrealismo, faleceu em Paris em 1982.

UM POEMA DE LOUIS ARAGON


 Je suis l’hérésiarque de toutes les églises 
Je te préfère à tout ce qui vaut de vivre et de mourir 
Je te porte l’encens des lieux saints et la chanson du forum 
Vois mes genoux en sang de prier devant toi 
Mes yeux crevés pour tout ce qui n’est pas ta flamme 
Je suis sourd à toute plainte qui n’est pas de ta bouche 
Je ne comprends des millions de morts que lorsque c’est toi qui gémis 
C’est à tes pieds que j’ai mal de tous les cailloux des chemins 
A tes bras déchirés par toutes les haies de ronces 
Tous les fardeaux portés martyrisent tes épaules 
Tout le malheur du monde est dans une seule de tes larmes 
Je n’avais jamais souffert avant toi 
Souffert est-ce qu’elle a souffert 
La bête clamant une plaie 
Comment pouvez-vous comparer au mal animal 
Ce vitrail en mille morceaux où s’opère une mise en croix du jour 
Tu m’as enseigné l’alphabet de douleur 
Je sais lire maintenant les sanglots Ils sont tous faits de ton nom 
De ton nom seul ton nom brisé ton nom de rose effeuillée 
Ton nom le jardin de toute Passion 
Ton nom que j’irais dans le feu de l’enfer écrire à la face du monde 
Comme ces lettres mystérieuses à l’écriteau du Christ 
Ton nom le cri de ma chair et la déchirure de mon âme 
Ton nom pour qui je brûlerais tous les livres 
Ton nom toute science au bout du désert humain 
Ton nom qui est pour moi l’histoire des siècles 
Le cantique des cantiques 
Le verre d’eau dans la chaîne des forçats 
Et tous les vocables ne sont qu’un champ de culs-de- bouteille à la porte d’une cité audite 
Quand ton nom chante à mes lèvres gercées 
Ton nom seul et qu’on me coupe la langue 
Ton nom 
Toute musique à la minute de mourir

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

ZUNÁI, REVISTA DE POESIA & DEBATES



A poesia como um aprendizado de esmeraldas vivas – Entrevista com Adriana Zapparoli

Poesia clássica chinesa – Dinastia Tang, Ricardo Portugal

Gramática expositiva do texto leminskiano, Tida Carvalho

Abre-te, cérebro! O tudo que cabe nas palavras de Arnaldo Antunes, Hernany Tafuri

Cadernos da Palestina: artigos, depoimentos e poemas

Poemas inéditos de Armando Freitas Filho, Eduardo Espina, Nanda Prieto, Roberta Tostes Daniel, Rubens Zárate, Marcílio Costa, Ricardo Carranza, Iago Passos, Consztanza Muirin, Fátima Sapetiveoatl.

Traduções: T. S. Eliot, e. e. cummings, William Blake, W. B. Yeats, Henri Michaux, Maria-Mercè Marçal e Mercê Rododera.

Contos de Sérgio Medeiros, DirceWaltrick do Amarante, Anita Dutra e Márcia Barbieri.

Especial: O juiz julgado – nove cantigas de escárnio e mal-dizer

Zunái é uma publicação comprometida com a inovação estética e temática e com a “batalha das ideias”, divulgando o que há de mais experimental e perturbador na literatura e no cenário cultural brasileiro.

Revista Zunái: www.zunai.com.br

Preço: Inefável; inconcebível.

Onde encontrar: no ciberespaço, essa “Gran Cualquierparte” (Vallejo).

A PALESTINA REIMAGINADA NA POESIA BRASILEIRA


A cultura árabe-palestina é uma das mais antigas do Oriente Médio, destacando-se por suas realizações na arquitetura, música, dança, literatura e artes visuais. A Mesquita de Omar, com sua cúpula dourada, construída no centro histórico de Al-Quds (Jerusalém) no século VII, durante a dinastia omíada, foi reconhecida pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade. A dança típica conhecida como dabke, acompanhada por alaúde (oud), tambor (tabla), pandeiro (daff) e instrumentos de sopro (mijwiz e arghul), é outro cartão-postal da Palestina. Executada em celebrações especiais, como festas de casamento, rituais de circuncisão, para comemorar o regresso de viajantes ou a libertação de prisioneiros, possui vários estilos, entre eles a As-Samir, em que os dançarinos, agrupados em duas fileiras, em paredes opostas, fazem uma competição de poesia popular, com versos improvisados, incluindo gracejos e insultos recíprocos – algo similar aos “desafios” dos nossos poetas de cordel, tradição cuja origem remonta à tençón dos trovadores medievais, cultores por excelência das cantigas de escárnio e de mal-dizer.  A poesia também está presente nos diwáns, eventos performáticos que reúnem declamação, música e dança tradicionais, que preservam a língua, história, lendas e folclore dos povos árabes, fortalecendo sua identidade cultural. No Ocidente, a palavra diwán é conhecida desde o século XVIII graças a Johann Wolfgang von Goethe, autor do livro Diwán ocidental-oriental, obra precursora do fascínio europeu pela poesia árabe e persa, que alcançaria seu ápice na poesia de Federico Garcia Lorca, autor do Divã do Tamarit (1940), que reúne poemas que dialogam com a forma clássica da cassida.

A poesia árabe moderna, que assimilou influências do verso livre, da poesia social, do surrealismo e de outras tendências estéticas, é bastante rica e variada, e nela se destaca a obra do palestino Mahmoud Darwish (1942-2008), reconhecido como um dos mais expressivos autores da língua árabe do século XX. Nascido na aldeia palestina de Birwa, nos arredores de Akka (Acre), imigrou com sua família para o Líbano quando tinha apenas seis anos de idade, após a destruição de seu vilarejo pelos sionistas, episódio que integra a infame história da Nakba (“catástrofe”, em árabe), que levou à destruição de mais de 400 aldeias palestinas e provocou o êxodo de 750 mil palestinos, proibidos até hoje de retornarem a suas terras e lares (o número atual de refugiados e seus descendentes é calculado em cinco milhões). Darwish destacou-se como poeta, jornalista e militante político, sendo o autor da Declaração de Argel, também conhecida como a “Declaração da Independência Palestina”, lida publicamente por Yasser Arafat, em 1988, quando o líder da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) declarou unilateralmente a criação do Estado Palestino. A poesia de Darwish abandona a métrica e as formas de composição da poesia árabe clássica, como a cassida e o gazal, adota o verso livre e um estilo de dicção coloquial, em que o eu lírico funciona, muitas vezes, como um eu coletivo – a comunidade palestina, em especial a que vive no exílio, tema que comparece com frequência em sua obra poética. Outros temas recorrentes são a natureza, o amor, a poesia, a sensação de estranhamento, causada pela vivência no exterior, e o desejo de retorno à pátria (a busca de uma origem, real ou imaginada, é um tema caro a autores da literatura moderna, como Joyce, Celan e Kozer). 

No Brasil, os poemas de Mahmoud Darwish foram apresentados pela primeira vez ao público brasileiro na antologia Poesia palestina de combate (Rio de Janeiro: Achiamé, 1981), organizada por Abdellatif Laâbi e traduzida por Jaime W. Cardoso e José Carlos Gondim. O livro, apesar de algumas incorreções (a tradução não foi feita a partir do árabe, mas de outras traduções para línguas ocidentais), tem o valor inegável de oferecer, pela primeira vez ao leitor brasileiro, uma amostragem da poesia palestina contemporânea, em que se destacam, além de Darwish, vozes singulares como as de Fádua Tuqan, Tawfik Az-Zayad e Samih Al Qassim. Como o próprio título da coletânea indica, a seleção dos poemas foi feita de acordo com critério temático: estão reunidas aqui canções de combate, que expressam a epopeia de um povo que resiste, há quase sete décadas, à brutal tentativa de genocídio humano e cultural perpetrada pelo estado sionista. Apesar dessa delimitação, que obedece a um viés político (justificável em seu contexto histórico), o resultado estético apresenta alguns ótimos resultados, como podemos verificar nas seguintes composições:


OS LÁBIOS CORTADOS

Eu poderia ter contado
a história do rouxinol assassinado
poderia ter contado
a história...
se não me tivessem cortado os lábios.

(Samih al Qassim)


PROVÉRBIOS

Segundo nosso primeiro antepassado
disseram nos provérbios

“Como uma raposa
que engole uma foice”

“O que o vento traz
a tempestade leva”

“Quem rouba os outros
vive sempre
com medo”.

(Tawfik Az- Zayad)


O primeiro poema, de Samih al Qassim (nascido em 1939), concentra sua força expressiva em apenas cinco linhas, numa estrutura similar à do haicai; porém, ao contrário do terceto japonês, não apresenta uma ação, e sim uma possibilidade, a partir da justaposição de duas breves imagens, a do rouxinol e a dos lábios cortados. O poema remete à hipótese de uma ação, que teria ocorrido se o narrador não tivesse sofrido a violência da mutilação. É uma peça ao mesmo tempo sutil e impactante, que recorda os poemas breves de Maiakovski (“come ananás, mastiga perdiz / teu dia está prestes, burguês”, na tradução de Augusto de Campos) e de Bertolt Brecht (“Escapei aos tigres / Nutri os percevejos / Fui devorado / Pela mediocridade”, em versão de Haroldo de Campos), e ainda a “poesia-pílula” de Oswald de Andrade (“Venceu o sistema de Babilônia / e o garção de costeleta”). O segundo poema, de Tawfik Az- Zayad (1929-1954), também é construído de acordo com uma técnica de montagem, mas, desta vez, de provérbios populares árabes, retirados de seu campo habitual de referências e recontextualizados para a crítica à ocupação israelense (“Quem rouba os outros / vive sempre / com medo”). A incorporação de provérbios na poesia (e na prosa) de alto repertório é verificada em diversos autores da modernidade, como James Joyce, Guimarães Rosa e Paulo Leminski, geralmente com sentido irônico, subvertendo o sentido original dos ditos populares, que é alterado e ampliado, pela paródia. No caso da poesia lírica árabe, que se alimenta há séculos de imagens e ditos tradicionais, a subversão é ainda mais violenta. Em ambas composições, o eu lírico fala em solilóquio, mas, na peça de Tawfik Az- Zayad, o “outro” israelense também é retratado, de forma enviesada: aquele que oprime é o que sente medo, pois “O que o vento traz / a tempestade leva”. Um terceiro poema que merece breve comentário é Refugiado, de Salim Jabran (nascido em 1947):


REFUGIADO

O sol atravessa as fronteiras
sem que os soldados atirem
o rouxinol canta manhã e tarde
e dorme em paz
com todos os pássaros dos kibutz
um asno extraviado
pica o pasto
em paz
sobre a linha de fogo
sem que os soldados atirem nele
e eu
teu filho exilado
-- Ó terra de minha pátria
entre meus olhos e teus horizontes
a muralha das fronteiras

(Salim Jabran)

A composição, desenvolvida em linguagem narrativa, sobrepõe quatro imagens: a do sol, a do rouxinol, a do asno e a do refugiado, que é o próprio eu lírico do poema. Nas três primeiras imagens, nada acontece: os elementos da natureza não são perturbados pelos soldados da fronteira, que não atiram. A quarta imagem, porém, é inconclusiva: entre os olhos do narrador e a vastidão da terra há uma muralha – e, o que o poema não diz: guaritas do exército de ocupação israelense, com soldados que disparam naqueles que cruzam a fronteira. Assim como nos poemas de Samih al Qassim e Tawfik Az- Zayad, estamos aqui no território do oculto: nada é dito claramente, o leitor deve interpretar os poemas a partir das pistas e sugestões deixadas pelos autores. Diferente estratégia textual é adotada por Mahmoud Darwish, discípulo de Whitman e de Maiakovski, que prefere o discurso retórico, evitando paráfrases, metáforas e imagens abstratas. Seu vocabulário, simples e direto, traduz o cotidiano da ocupação em versos de alto impacto como estes:

CARTEIRA DE IDENTIDADE

(fragmento)

Toma nota!
Sou árabe.
Número da identidade: 50 mil
Número de filhos: oito
E o nono... já chega depois do verão.
E vais te irritar por isso?

Toma nota!
Sou árabe
Trabalho numa pedreira
Com meus companheiros de dor
Pra meus oito filhos
O pedaço de pão
As roupas e os livros
Arranco da rocha...
Não mendigo esmolas à tua porta,
Nem me rebaixo
No portão do teu palácio
E vais te irritar por isso?

Este poema – talvez o mais conhecido da literatura palestina do século XX – sugere o diálogo de um habitante dos territórios ocupados com um soldado israelense, em tom de desafio[1]. A tradução, assinada por Paulo Farah, professor de língua e literatura árabes na Universidade de São Paulo, integra o volume A terra nos é estreita e outros poemas (São Paulo: Bibliaspa, 2012), primeira coletânea individual de Darwish publicada no Brasil[2], que inaugura um novo patamar nas relações – ainda tímidas – entre a poesia palestina e a brasileira. Em resenha que escrevemos sobre esse livro, publicada na revista eletrônica Mallarmargens[3], afirmamos que

a poesia de Darwish emprega imagens simples, extraídas do cotidiano: o girassol, o cavalo, a oliveira, a rosa, o prego, a chuva. A simplicidade do vocabulário, porém, muitas vezes faz referências à história universal, à geografia do Oriente Médio, à tradição literária e religiosa, como ocorre na curiosa composição Como nun na Surata do Clemente, que dialoga com textos do Corão e com imagens mitológicas, como a da fênix grega. Já no livro Salmos, encontramos uma série de poemas sobre Jerusalém, com referências intertextuais aos livros proféticos do Antigo Testamento, em que a cidade, transformada em personagem, fala na primeira pessoa – recurso poético conhecido como prosopopéia. O exílio do povo hebreu relatado nos textos bíblicos é usado por Darwish como metáfora do êxodo e do sofrimento do povo palestino, e o retorno à terra perdida sinaliza uma utopia ao mesmo tempo pessoal e coletiva: é a recuperação do país, que tem sua própria história e cultura, mas também uma reapropriação de sua infância, de suas lembranças, de suas ligações familiares, enfim, de sua vida. Na poesia de Darwish, encontramos com frequência o diálogo, à maneira de um teatro poético, como acontece na composição A eternidade do cacto:

— Para onde me levas, pai?
— Em direção ao vento, meu filho...

Este recurso, que permite a construção de uma pequena cena, com o pano de fundo da história palestina a partir de 1948, recorda por vezes as composições de Bertolt Brecht, embora em Darwish o tom épico esteja quase ausente: é um poeta lírico e elegíaco, que observa o heroísmo presente em pequenas situações, como lavar pratos, fazer café, ouvir o rádio, ações convertidas em formas de resistência: o simples fato de existir, de perpetuar sua língua, seus costumes, sua memória, já faz do palestino um combatente do sionismo, que procura apagar todos os vestígios da existência desse povo, demolindo suas aldeias, mudando os nomes das ruas, reescrevendo a história. A poesia, para Darwish, é uma forma de resistência: é a afirmação de uma identidade, pessoal e coletiva, e a reconstrução de um país pela palavra poética.

A terra nos é estreita foi publicada no Brasil em momento histórico auspicioso: em dezembro de 2012 aconteceu o Fórum Social Mundial Palestina Livre, em Porto Alegre (RS), que reuniu milhares de ativistas de movimentos populares, do Brasil e do exterior, para uma série de debates e atividades culturais relacionadas à solidariedade com o povo palestino. A Bibliaspa, uma das entidades participantes do Fórum, promoveu também o lançamento do romance Noite Grande, do palestino-brasileiro Permínio Asfora, autor ainda pouco conhecido de nossa literatura, que mereceu, no entanto, o elogio de Guimarães Rosa. A revista Zunái – que organizou, em parceria com a Federação Árabe Palestina (Fepal) a mostra fotográfica Palestina: a ferida aberta, para relembrar os 30 anos do massacre de Sabra e Chatila, também esteve no Fórum. Participamos de uma mesa temática sobre a arte de resistência, ao lado do célebre cartunista Latuff, e realizamos a distribuição da plaquete Poemas para a Palestina, publicação semi-artesanal com textos de 15 autores brasileiros, que expressaram, em diferentes estilos – do soneto à elegia, do poema minimalista ao neobarroco – a solidariedade a um povo que busca reencontrar o seu lugar na história. A plaquete, de poucas páginas e pequena tiragem, foi acrescida de novos textos e traduzida para o idioma árabe por Kháled Mahassen, em um volume bilíngue que será publicado em breve -- parte da tiragem será enviada à Cisjordânia, por ocasião da III Missão de Solidariedade à Palestina, em 2014. É nossa intenção que essa obra seja uma semente de diálogo e cooperação entre os poetas brasileiros e palestinos. Como breve amostragem do volume, apresentamos aqui algumas das composições:
  
Jonatas Onofre

 FAIXA DE GAZA

Como pode ser
esta veia sem sutura?

Este campo de destroços
em hemorragia?

A ausência das harpas
ainda verga os galhos
do salgueiro.

Mas o sol, imunda fera,
lambe um ossuário
de crianças no deserto.
  
Andréia Carvalho

JUDAH

ouço teu passo - irmão
manso de sandálias
emplastradas
sondo teus olhos
dois campos pardos
concentrados

e não te escuto o nome
abatido
e não te ouço os cânticos
pelos dentes afiados

branca munição
teu sorriso cúspide
tudo que me cospe
tudo que me cala

não mais te coagulam pontes
no mar vermelho do sangue

teus frutos amordaçados
com a fome de um jardim
suspenso
lamentam a polpa
de tua febre

não te entendo o êxodo
fantástico
na fissura dos mapas

antes da promessa
era terra à vista
teu deserto mágico

antes da mesquita
era o filho do cosmos
era autêntico, o livro branco
de neve

tu te lanças sobre muralhas
inventadas
desenhos bombardeados

e mutilas em seis
o que te deram
em sete

hamurabi coração
dilacerado e cego
oro por ti

escarificado

  
Lígia Dabul

PALESTINA

Despenca o medo.
A primeira pessoa
atravessa o que
pretendo.
Não
esqueço a fúria
da visita. De novo
a pior de todas
as viagens.
Terrenos
interditos e
barbárie
aberta,
vã,

acusam
o direito da
resposta.


Khaled Fayes Mahassen

GAZA DA MORTE

O grito da morte
Gaza
Fronteiras fechada
saídas cerradas
Gaza da morte

Gaza da morte

quem faz a sorte?
A lua é triste,
a vida é triste
o sol! O sol é muito triste,
a Morte!
Ah! A morte é triste.

Gaza da Morte,
Aos olhos do mundo
casa caída
vida destruída,
criança que morre
na gaza da morte

Aos olhos do mundo
ao protesto surdo.

Oh!
O grito forte
da Gaza da morte.

Sorte?

Paz! Que Paz?
Paz com braço forte
com espada que corte
com povo unido
com governo unido
e o mundo decidido
a mudar a sorte

Gaza
Gaza da morte
Gaza da morte
Gaza
Gaza da morte.

Mudará , mudará a sorte!


[1] Conforme Paulo Farah, “A poesia e o envolvimento político de Darwish foram uma fonte contínua de conflito com as autoridades. Em 1962, ele foi acusado de incitamento à revolução por recitar um poema sobre Gaza em um festival de poesia. Nos anos seguintes, foi preso diversas vezes”. 

[2] Convém citar também as notáveis traduções de Darwish realizadas por Michel Sleiman, poeta e professor de língua e literatura árabe na USP, publicadas na revista Zunái, na página http://www.revistazunai.com/editorial/23ed_mahmouddarwish.htm.


[4] Prece recitada por um enlutado durante 11 meses após o falecimento de seu pai ou mãe. Em caso de falecimento de um irmão, irmã, esposa, marido ou filho (a) é recitado por apenas um mês. 

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

PROGRAMAÇÃO DE DEZEMBRO DA CURADORIA DE LITERATURA DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO




Poesia dos 4 Cantos: Noite Brasileira

Poesia dos Quatro Cantos é uma atividade mensal dedicada à divulgação da poesia internacional, num formato que inclui a leitura com danças e músicas típicas de cada país, nos intervalos das leituras. Em dezembro, será feita a apresentação de uma Noite Brasileira com os poetas Claudio Daniel Lelia Maria Romero, que lerão poemas de autores brasileiros clássicos e contemporâneos, com a participação do bloco afro Ilú Oba de Min.

Terça-feira, dia 03/12/13, das 20h30 às 22h 

Sala Adoniran Barbosa


CRIONÇAS CRIONÇOS

Show do compositor Cid Campos, que apresentará poemas musicados voltados ao público infanto-juvenil.

Sexta-feira, dia 06/12/13, das 19h às 21h 

Sala Adoniran Barbosa


Clube de Leitura de Poesia

A poeta Mariana Ianelli conversará com o público sobre a sua carreira literária e fará uma leitura de seus poemas. Em seguida, o público será convidado a fazer perguntas ao poeta, para um bate-papo informal.

Terça-feira, dia 10/12/2013, das 20h30 às 22h 

 Sala de Debates


Menu de Poesia

Recital dedicado à poesia de Décio Pignatari, organizado por Maria Alice Vasconcelos.

Haverá tradução de libras.

Quarta-feira, dia 04/12/2013, das 20h30 às 22h 

Sala Adoniran Barbosa

terça-feira, 19 de novembro de 2013

MÍDIA















corvo monossilábico rumina vermes
na lepra da língua:
infecta o ar com sua voz,
insulta o sol.
ave monocromática,
repete a lepra, repete a lepra da língua,
em textículos venais:
multiplica calúnias, entorpece letras,
mumifica o mar.
tudo é falso, tudo que diz é falso,
vermes caindo de seu bico
recurvado, como quem diz:
“nunca mais!”
ave canalha, ave venérea, ave vendida:
a palavra vermelha te desafia.

Claudio Daniel, 2013

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

GAROTO DE RECADOS


O famoso crítico literário -- inventado pela FALHA -- diz que a Companhia das Letras é "a melhor editora do Brasil" porque VENDE mais livros e tem mais presença na mídia (que presta serviços de assessoria de imprensa às grandes empresas editoriais, usando pessoas como ele). Ou seja, para o prestigiado crítico, é o MERCADO, e não a QUALIDADE literária, que importa. Eu, que sou inimigo declarado do mercado capitalista e de sua mídia nojenta, fico com as pequenas editoras -- LUMME, PATUÁ, TRAVESSA DOS EDITORES, DEMÔNIO NEGRO -- que publicam textos de qualidade e não precisam fazer lobby na mídia.

POEMAS PARA A PALESTINA


O livro Poemas para a Palestina (Qasaed ila Falastin) será publicado no início de 2014, em versão bilíngue, português-árabe. Parte da tiragem será enviada a escolas e universidades palestinas, como um presente de solidariedade dos poetas brasileiros.

O livro inclui poemas sobre a Palestina escritos por poetas brasileiros -- Glauco Mattoso, Marcelo Ariel, Lígia Dabul, Nina Rizzi, Andréia Carvalho, Jonatas Onofre, Khaled Fayes Mahassen (que também traduziu os textos para o árabe), Nydia Bonetti, Celso Vegro, Célia Abila, Rosane Carneiro, Gabriel Resende Santos, Paula Freitas, Lara Amaral e eu próprio (poema Fósforo Branco). Parte desses poemas foi lida no recital realizado no Club Homs em memória das vítimas de Sabra e Chatila.

RETRATO DO ARTISTA




PALAVRAS SUJAS DE REALIDADE

Donizete Galvão desenvolve em sua poesia um catálogo de motes obsessivos em que se destacam o tempo, a memória, a cidade, insetos, animais, pequenos acontecimentos da jornada ordinária e a busca da epifania possível numa era de “homens inacabados”. Mircea Eliade, no Tratado de história das religiões, define epifania (do grego epi, sobre, phaino, brilhar) como a manifestação inesperada do divino ou o acesso súbito à sabedoria, tal como as revelações obtidas em sonhos, transes xamânicos ou experiências rituais com alucinógenos. O conceito de epifania passou a ser usado na modernidade por autores como James Joyce, num contexto laico e profano, para designar percepções estéticas que causam uma reação emocional intensa de horror ou deslumbramento. A escrita de Donizete Galvão apresenta diferentes momentos epifânicos, em geral relacionados à contemplação da natureza (“Caminho de vacas, / cascos / cavando / trilhas / na grama”), à escuta das canções de Nina Simone (“Voz de soda cáustica / roendo a carne / até cavar um fosso”), ao convívio com as obras de artistas plásticos como Paulo Pasta ou Renina Katz (“Paisagem irreal, / onde se respira / um ar rarefeito: / o mundo suspenso / por um fio / no limiar da dissolução”), mas especialmente à observação de cenas que são retiradas de sua condição imediata e reconfiguradas em alegorias, como acontece em O grito: “O porco guincha / e sob a pata dianteira / sai a golfada de sangue / que enche a bacia. // Horas depois, / pronto o chouriço, / comemos o sangue preto, / as tripas, o grito” (do livro Ruminações). Este poema, de fortes cores expressionistas, não é apenas a descrição minuciosa de um acontecimento que o autor pode ter presenciado (ou não) em sua cidade natal, Borda da Mata, situada no interior mineiro; é também a construção do pensamento por meio de imagens e impressões sensoriais que envolvem a imaginação do leitor, fazendo com que ele compartilhe a degustação das tripas misturadas ao grito, metáfora do desconforto da condição humana.

Consciência de linguagem

Em Azul navalha, livro de estreia de Donizete Galvão, publicado em 1988, o tema principal é a cidade – o espaço perdido da infância, agora transformado em cenário mental (“Ele fundou uma cidade na memória, / território de sonhos que a tudo acolhe. / Ruas que são matas / que são rios / que são abismos / em ilógica geografia”). Em As faces do rio, publicado em 1990, o autor amadurece a consciência de linguagem em peças de maior elaboração formal, como a notável composição Prisioneiro na pedra, de versos breves, enigmáticos e construção elíptica: “Na pedra, / ele espreita: / peixe, pássaro, lua. / Seu olho-flecha / nunca fere a presa. / Pois que tudo se move; / rio, céu, satélite / e até mesmo a pedra. / Não se move o homem, / cego à teia / que à sua volta cresce”. A pedra é um elemento que comparece em diversos poemas de Donizete Galvão (especialmente em seu terceiro livro publicado, Do silêncio da pedra, de 1996), geralmente associada à “esterilidade do deserto e, em última instância, a morte”, mas também a aspectos positivos, como “anteparo e abrigo”, segundo Paulo Vizioli. A pedra se contrapõe à água, outro símbolo frequente na poesia de Donizete Galvão: se a pedra é silêncio e imobilidade, a água é ruído, movimento, devir temporal, rio heraclítico em que entramos e não entramos, somos e não somos: “Tudo que nos é dado a maré leva / e devolve como restolho”. Em A carne e o tempo, livro publicado em 1997, com a reprodução de uma aquarela de Paul Klee, o tema central é o caráter efêmero dos viventes e do mundo (“Somos homens de frágil arquitetura / tessitura de finos fios de vidro, / renda tramada por aranhas”), embora o sagrado também compareça – não como promessa de redenção futura, mas como possibilidade de encantamento na vida presente com as pequenas coisas que nos iluminam, seja a lembrança de figos maduros, a contemplação da chuva de primavera, ouvir a música de Villa-Lobos, assistir à dança de Madhavi Mudgal ou observar as litografias de Renina Katz. Para Donizete Galvão, há “um deus de pedra / (...) deus que não pune / deus que não salva”.

Perguntas sem respostas

Ruminações, publicado em 1999, é o livro mais telúrico do autor, formado por pequenas narrativas que incorporam paisagens do interior mineiro, sem cair em fácil retórica nativista: o poeta transforma o regional em universal em composições como Reboco (“Para quem não tem muito, / tudo tem serventia: / a argila, a bosta da vaca, / o perfume da grama”), Escoiceados (“Levamos / bons coices. / Meu pai e eu. / Os dois / nunca subimos / na vida”) e Autorretrato como boi (“No curral da insônia / rumino palavras pastadas / na ribanceira dos dias”).  Um poema notável deste livro, pela técnica de construção da narrativa, é Sexta-feira da paixão: “A mulher que ganhou os peixes / não traz os olhos cabisbaixos / nem os ombros arqueados. / Treze peixes finos e prateados / deslizaram para dentro da sacola. / (...) Usará a frigideira preta / que fica no armário da pia? / Vai passar os peixes na farinha, / fritá-los e servi-los bem sequinhos”. O poema é arquitetado na forma de perguntas sem respostas, em que a descrição minuciosa do cenário se mistura a um engenho imaginativo que completa as lacunas com hipóteses ficcionais (“Quem dividirá os peixes com ela? / O marido aposentado? Os filhos?”). A aparente simplicidade do poema oculta o seu caráter alegórico, no sentido próprio da palavra: construção do pensamento por meio de metáforas ou imagens, recurso frequente na poesia e na pintura barrocas.  O lirismo de Donizete Galvão, centrado na carnadura das palavras e das coisas, chega a um grau de ebulição em Mundo mudo (2003) e sobretudo em O homem inacabado (2010), de onde extraímos essas linhas: “Num átimo, / a picada da serpente. / Abre-se a ferida / que nunca sara / Que não supura. / Coleção de escaras / que saem à unha / e renascem / novas crostas. (...) A dor: / veneno. / Ninguém quer / sua companhia”.


(Artigo publicado na edição de novembro da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)

terça-feira, 5 de novembro de 2013

CÂNONE E ANTICÂNONE (IV): FERREIRA GULLAR



Ferreira Gullar é considerado pela crítica especializada um dos melhores poetas brasileiros contemporâneos. Sua obra é marcada por diferentes fases de pesquisa estética, desde o lirismo e o experimentalismo até a poesia de cordel e a dicção coloquial de sua produção mais recente. No livro A luta corporal, de 1954, por exemplo, encontramos composições intimistas de forte musicalidade, na série Sete poemas portugueses, e ainda poemas em prosa, como a Carta ao inventor da roda, peças concisas e substantivas que se aproximam de João Cabral de Melo Neto, como Galo galo e ainda textos experimentais que antecipam a Poesia Concreta, pela espacialização das linhas na página, fragmentação da palavra e criação de neologismos. A respeito dessa obra, que se afasta da tendência neoclássica da Geração de 45 e se insere no campo das experiências de vanguarda da década seguinte, escreveu João Cabral de Melo Neto: “O livro A luta corporal, com que estréia o jovem poeta Ferreira Gullar, mostra uma justa compreensão do que é a arte da tipografia. Impresso em papel absolutamente pobre, sem nenhum desses adornos provincianos ainda tão usados entre nós (...), o livro é um dos trabalhos gráficos mais simpáticos publicados ultimamente”. O poeta pernambucano aponta as “pesquisas com a palavra e com o verso” e a visualidade da “disposição de pretos e brancos (que) desempenha papel essencial” como elementos de destaque na poética de Gullar, bem como a economia dos aspectos gráficos, que coloca em primeiro plano a força semântica do texto: “O livro, principalmente o livro de poesia, mesmo quando o autor não procure impor leis especiais à leitura do verso, tem de estar subordinado ao texto: deve, quando nada, não pesar sobre o texto, com todos os adornos e ilustrações que, em geral, vemos associados à idéia de edição de luxo[1]”. Um bom exemplo da arquitetura poética do livro A luta corporal é o poema O anjo: “O anjo, contido / em pedra / e silêncio, / me esperava. // Olho-o, identifico-o / tal se em profundo sigilo / de mim o procurasse desde o início. // Me ilumino! todo / o existido / fora apenas a preparação / deste encontro. // O anjo é grave / agora. / Começo a esperar a morte”[2]. Este poema revela várias características da poesia inicial de Gullar, como a síntese verbal, a geometria, a mescla de termos concretos e abstratos (como a pedra e o silêncio) e a expressão subjetiva. No último poema do volume, sem título, Gullar radicaliza a disposição espacial das linhas na página, buscando dar uma dimensão plástica ao texto, ao mesmo tempo em que pulveriza as palavras em sílabas e cria termos abstratos escritos em letras maiúsculas como “URR VERÕENS / ÔR / TUFUNS / LERR DESVÉSLEZ VÁRZENS”[3].

O vil metal, que reúne poemas escritos entre 1954 e 1960, parece prosseguir esse caminho de experimentação no poema que abre o volume, intitulado Fogos da flora, mas, nas páginas seguintes, verificamos uma profunda mudança na dicção do autor, que apresenta textos discursivos, bem-humorados e em linguagem coloquial, como Ocorrência: “Aí o homem sério entrou e disse: bom dia. / Aí o outro homem sério respondeu: bom dia / Aí a mulher séria respondeu: bom dia / Aí a menininha no chão respondeu: bom dia / Aí todos riram de uma vez”[4]. Esta peça, assim como outras incluídas no livro, afastam-se do concretismo, praticado pelo autor entre 1957 e 1958 (com resultados notáveis, como o Formigueiro e o Poema enterrado) e revelam a influência da linguagem conversacional e irônica do Modernismo, e em especial de Oswald de Andrade (a quem dedicou o poema Oswald morto) e Carlos Drummond de Andrade. A marca do experimentalismo, porém, ainda é visível na peça Definições, composta de palavras escritas em letras minúsculas, aglutinadas fora de uma ordem sequencial lógico-sintática, com o uso frequente de recursos aliterativos e sem sinais de pontuação: “fala fósseis sol / facho / farpa fogo / arco-sombra / faca jardim archote /folha ou boca / flama / gasto em vão”[5]. José Guilherme Merquior aponta, nesse livro, uma “poesia de conquista crítica do cotidiano[6]”. Podemos notar a abordagem referida por Merquior no léxico dos poemas (lavatório, gaveta, paletó, cadeira, sapatos), no olhar fotográfico, voltado às pequenas ações ordinárias, e certo tom caricatural, que não se reduz ao mero naturalismo, como no poema Um homem ri: “O homem lançava o riso como o polvo lança a sua tinta e foge”[7].  
Com as mudanças políticas ocorridas no Brasil a partir do golpe militar de 1964, que derrubou o governo democrático de João Goulart, o poeta escolhe um novo caminho para a sua criação, privilegiando os temas sociais, o conteúdo ideológico e o diálogo com a cultura popular, como a poesia de cordel, gênero que praticou entre 1962 e 1967 (Quem matou Aparecida, Peleja de Zé Molesta com Tio Sam, História de um valente, entre outros títulos). Segundo Fábio Lucas, nos Romances de Cordel, Gullar “passa ao ritmo mais fluente e popular da língua portuguesa, as estrofes narrativas em redondilhas, nos moldes dos cantadores de feiras. Falam alto no poeta a nordestinidade, a visão urbana e o compromisso social”[8]. A leitura desses poemas hoje, porém, fora do contexto histórico em que foram escritos, pode revelar certo anacronismo estético pelo proselitismo típico de uma arte que se confunde com as tarefas de agitação e propaganda, como ocorre em versos como esses: “o homem vem caminhando / para a plena liberdade; / tem que se livrar da fome / para atingir a igualdade; / o comunismo é o futuro / risonho da humanidade”[9]. O abandono das formas de experimentação estética em favor do compromisso político inspira ainda um ensaio de Gullar publicado em 1969, chamado Vanguarda e subdesenvimento. O engajamento político permanece no livro seguinte, Dentro da noite veloz (1975), onde encontramos poemas dedicados a Che Guevara e de denúncia da guerra do Vietnã, temas recorrentes no auge da Guerra Fria, que dividiu o mundo entre as esferas de influência americana e soviética. Este talvez seja o livro de menor impacto estético na obra de Gullar, pela ênfase na abordagem ideológica dos fatos históricos do período, mas ainda encontramos aqui peças líricas e bem-humoradas como Cantada: “Você é mais bonita que uma bola prateada / de papel de cigarro / Você é mais bonita que uma poça d’água / límpida / num lugar escondido / Você é mais bonita que uma zebra / que um filhote de onça / que um Boeing 707 em pleno ar / (...) Olha, / você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro / em maio / e quase tão bonita / quanto a Revolução Cubana”[10].  

O Poema sujo, talvez o livro mais conhecido e admirado de Ferreira Gullar, publicado em 1976, é bem recebido pela crítica, que reconhece nesse poema longo escrito no período de exílio do autor em Buenos Aires uma obra densa e consistente. Conforme José Guilherme Merquior, “Uma das originalidades do Poema sujo consiste precisamente na conjugação dessa fixação carnal com a insistência em cantar o corpo da cidade: da bela, pobre e úmida São Luís, berço de Gullar. O realismo caricatural de Gullar, seu apego à dolorosa finitude das pessoas e coisas, emprestam a vários momentos de seu poema um tom único de abrupta humanidade. Ferreira Gullar é um François Villon participante — um César Vallejo brasileiro — e sem dúvida é a pungência da sua rouca melodia, a sua surpreendente capacidade de liricizar, sem nunca ‘estetizar’ o chulo e o banal, que lhe permite evitar a erva daninha da literatura engajada — o clichê ideológico”[11]. É preciso ressaltar, além dos aspectos referenciais — como as lembranças da infância e a descrição de cenas do cotidiano da cidade —, a riqueza rítmica e melódica do poema de Gullar, que aglutina as palavras criando efeitos sonoros que se chocam por vezes com a própria sintaxe, como nas linhas iniciais: “turvo turvo / a turva / mão do sopro / contra o muro / escuro / menos menos / menos que escuro / menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo”[12]. Este é um dos livros mais importantes da poesia brasileira da segunda metade do século XX, na opinião quase unânime da crítica.

Na vertigem do dia (1980) retoma o intimismo da fase inicial da poesia de Ferreira Gullar, o mergulho em suas próprias incertezas e inquietações. No poema intitulado Traduzir-se, por exemplo, o poeta diz: ”Uma parte de mim / é todo mundo: / outra parte é ninguém: / fundo sem fundo. // Uma parte de mim / é multidão: / outra parte estranheza / e solidão. / (...) Traduzir uma parte / na outra parte / — que é uma questão / de vida ou morte — / será arte?[13]” O poema Bananas podres, por sua vez, recupera os temas da passagem do tempo e da morte, alegorizados na imagem da fruta que apodrece (metáfora já presente na composição As peras, incluída no livro A luta corporal). O mergulho no mundo das memória e das emoções será aprofundado nos dois livros que o poeta publicou em seguida, Barulhos (1987) e Muitas vozes (1999). Em Barulhos, Ferreira Gullar apresenta poemas discursivos e confessionais em que se refere à cidade do Rio de Janeiro, a amigos mortos, como Glauber Rocha, Clarice Lispector e Mário Pedrosa, sem perder o foco no cenário social e no compromisso político, como no poema Meu povo, meu abismo: “Meu povo é meu abismo. / Nele me perco: / a sua tanta dor me deixa / surdo e cego. // Meu povo é meu castigo / meu flagelo: / seu desamparo, / meu erro. // Meu povo é meu destino / meu futuro: / se ele não vira em mim / veneno ou canto / — apenas morro”[14]. Apesar de alguns bons achados, este é talvez o livro mais irregular do autor e não revela nenhuma surpresa formal ou referencial. Muitas vozes, o livro de poesia publicado a seguir, também não apresenta novidades: ali estão as obsessões registradas nos livros anteriores, como a cidade natal, a infância, a família, o cenário urbano do Rio de Janeiro, a realidade social. Dois poemas que chamam a atenção nesse volume são Nasce o poeta e Evocação de silêncios, que retomam a concisão, a geometria e a literariedade de sua primeira fase criativa.    




[1] MELO NETO, João Cabral de, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998: 122-123.

[2] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 9-10.

[3] GULLAR, Ferreira. Idem, 64.

[4] GULLAR, Ferreira. Idem, 72.

[5] GULLAR, Ferreira. Idem, 74.

[6] MERQUIOR, José Guilherme, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998: 123.

[7] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 77.

[8] LUCAS, Fábio, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998, 125.

[9] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 151.

[10] Idem, 173.

[11] MERQUIOR, José Guilherme, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998, 123.

[12] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 233.

[13] Idem, 335.

[14] Idem, 377.