Louis
Aragon (Louis
Andrieux), poeta e romancista francês, nasceu em 03 de outubro de 1897 em Paris. Sua família era
proprietária de uma pensão num bairro abastado da capital francesa. Após
concluir os estudos no Liceu Carnot, em 1916, ingressou na Faculdade de
Medicina da Universidade de Paris. Convocado para o serviço militar, serviu
como médico auxiliar durante a I Guerra Mundial. Após o conflito, retomou os
estudos e conheceu André Breton, que o apresentou ao surrealismo. Nos anos
seguintes, dirigiu, juntamente com Philippe Soupault e Breton, a revista Littérature. Aragon estreou como poeta
em 1920, com o livro Feu de joie, ao
qual seguiram outras publicações, como o romance Anicet ou Le Panorama (1921), a compilação de contos Le libertinage (1924) e a narrativa
satírica Le paysan de Paris (1926),
entre outras obras. Em 1928 conheceu Elsa Triolet, escritora russa, cunhada de
Maiakovski, que foi o seu grande amor e
com quem se casou. Filiou-se ao Partido Comunista Francês (PCF) e realizou, em
1930, uma visita à União Soviética. De volta a Paris, distanciou-se dos surrealistas
e publicou Le front rouge (1930), poema de temática
revolucionária, escrito sob a influência de Maiakovski. Nos anos seguintes,
Aragon publica poemas, artigos de jornal, ensaios e romances de nítida
influência marxista. Durante a Guerra Civil Espanhola, alistou-se como
voluntário e combateu ao lado dos republicanos. Quando a França foi ocupada
pelas tropas nazistas, em 1940, participou da Resistência, assim como Paul
Éluard, também militante do PCF. Entre seus livros publicados nesse período
destacam-se Le crève cour (1941) e Les yeux d’Elsa (1942), sua obra mais
conhecida, em que celebra o amor absoluto. Após a II Guerra Mundial, colabora
em jornais e revistas como Ce soir e Les lettres françaises e publica outros
livros importantes, como Elsa (1958)
e Le Fou d'Elsa (1963). Entre seus últimos títulos publicados destacam-se
os romances La mise à mort (1965) e Blancheou l’oubli (1967). Louis Aragon,
um dos maiores poetas franceses do século XX e um dos fundadores do
surrealismo, faleceu em Paris em 1982.
domingo, 22 de dezembro de 2013
UM POEMA DE LOUIS ARAGON
Je te préfère à tout ce qui vaut de vivre et de mourir
Je te porte l’encens des lieux saints et la chanson du forum
Vois mes genoux en sang de prier devant toi
Mes yeux crevés pour tout ce qui n’est pas ta flamme
Je suis sourd à toute plainte qui n’est pas de ta bouche
Je ne comprends des millions de morts que lorsque c’est toi qui gémis
C’est à tes pieds que j’ai mal de tous les cailloux des chemins
A tes bras déchirés par toutes les haies de ronces
Tous les fardeaux portés martyrisent tes épaules
Tout le malheur du monde est dans une seule de tes larmes
Je n’avais jamais souffert avant toi
Souffert est-ce qu’elle a souffert
La bête clamant une plaie
Comment pouvez-vous comparer au mal animal
Ce vitrail en mille morceaux où s’opère une mise en croix du jour
Tu m’as enseigné l’alphabet de douleur
Je sais lire maintenant les sanglots Ils sont tous faits de ton nom
De ton nom seul ton nom brisé ton nom de rose effeuillée
Ton nom le jardin de toute Passion
Ton nom que j’irais dans le feu de l’enfer écrire à la face du monde
Comme ces lettres mystérieuses à l’écriteau du Christ
Ton nom le cri de ma chair et la déchirure de mon âme
Ton nom pour qui je brûlerais tous les livres
Ton nom toute science au bout du désert humain
Ton nom qui est pour moi l’histoire des siècles
Le cantique des cantiques
Le verre d’eau dans la chaîne des forçats
Et tous les vocables ne sont qu’un champ de culs-de- bouteille à la porte d’une cité audite
Quand ton nom chante à mes lèvres gercées
Ton nom seul et qu’on me coupe la langue
Ton nom
Toute musique à la minute de mourir
Je te porte l’encens des lieux saints et la chanson du forum
Vois mes genoux en sang de prier devant toi
Mes yeux crevés pour tout ce qui n’est pas ta flamme
Je suis sourd à toute plainte qui n’est pas de ta bouche
Je ne comprends des millions de morts que lorsque c’est toi qui gémis
C’est à tes pieds que j’ai mal de tous les cailloux des chemins
A tes bras déchirés par toutes les haies de ronces
Tous les fardeaux portés martyrisent tes épaules
Tout le malheur du monde est dans une seule de tes larmes
Je n’avais jamais souffert avant toi
Souffert est-ce qu’elle a souffert
La bête clamant une plaie
Comment pouvez-vous comparer au mal animal
Ce vitrail en mille morceaux où s’opère une mise en croix du jour
Tu m’as enseigné l’alphabet de douleur
Je sais lire maintenant les sanglots Ils sont tous faits de ton nom
De ton nom seul ton nom brisé ton nom de rose effeuillée
Ton nom le jardin de toute Passion
Ton nom que j’irais dans le feu de l’enfer écrire à la face du monde
Comme ces lettres mystérieuses à l’écriteau du Christ
Ton nom le cri de ma chair et la déchirure de mon âme
Ton nom pour qui je brûlerais tous les livres
Ton nom toute science au bout du désert humain
Ton nom qui est pour moi l’histoire des siècles
Le cantique des cantiques
Le verre d’eau dans la chaîne des forçats
Et tous les vocables ne sont qu’un champ de culs-de- bouteille à la porte d’une cité audite
Quand ton nom chante à mes lèvres gercées
Ton nom seul et qu’on me coupe la langue
Ton nom
Toute musique à la minute de mourir
segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
ZUNÁI, REVISTA DE POESIA & DEBATES
A poesia como um aprendizado de esmeraldas
vivas – Entrevista com
Adriana Zapparoli
Poesia clássica chinesa – Dinastia Tang, Ricardo Portugal
Gramática expositiva do texto leminskiano, Tida Carvalho
Abre-te, cérebro! O tudo que cabe nas
palavras de Arnaldo Antunes,
Hernany Tafuri
Cadernos da Palestina: artigos, depoimentos e poemas
Poemas inéditos de Armando Freitas Filho, Eduardo Espina,
Nanda Prieto, Roberta Tostes Daniel, Rubens Zárate, Marcílio Costa, Ricardo Carranza,
Iago Passos, Consztanza Muirin, Fátima Sapetiveoatl.
Traduções: T. S. Eliot, e. e. cummings, William
Blake, W. B. Yeats, Henri Michaux, Maria-Mercè Marçal e Mercê Rododera.
Contos de Sérgio Medeiros, DirceWaltrick do Amarante, Anita Dutra e
Márcia Barbieri.
Especial: O juiz julgado – nove
cantigas de escárnio e mal-dizer
Zunái é uma publicação comprometida com a inovação estética e
temática e com a “batalha das ideias”, divulgando o que há de mais experimental
e perturbador na literatura e no cenário cultural brasileiro.
Revista
Zunái: www.zunai.com.br
Preço: Inefável; inconcebível.
Onde encontrar: no ciberespaço, essa “Gran Cualquierparte” (Vallejo).
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
A PALESTINA REIMAGINADA NA POESIA BRASILEIRA
A cultura árabe-palestina é uma das mais antigas do Oriente
Médio, destacando-se por suas realizações na arquitetura, música, dança, literatura
e artes visuais. A Mesquita de Omar, com sua cúpula dourada, construída no
centro histórico de Al-Quds (Jerusalém) no século VII, durante a dinastia
omíada, foi reconhecida pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade. A
dança típica conhecida como dabke,
acompanhada por alaúde (oud), tambor
(tabla), pandeiro (daff) e instrumentos de sopro (mijwiz e arghul), é outro cartão-postal da Palestina. Executada em
celebrações especiais, como festas de casamento, rituais de circuncisão, para
comemorar o regresso de viajantes ou a libertação de prisioneiros, possui
vários estilos, entre eles a As-Samir,
em que os dançarinos, agrupados em duas fileiras, em paredes opostas, fazem uma
competição de poesia popular, com versos improvisados, incluindo gracejos e
insultos recíprocos – algo similar aos “desafios” dos nossos poetas de cordel,
tradição cuja origem remonta à tençón dos trovadores medievais, cultores por
excelência das cantigas de escárnio e de mal-dizer. A poesia também está presente nos diwáns, eventos performáticos que reúnem
declamação, música e dança tradicionais, que preservam a língua, história,
lendas e folclore dos povos árabes, fortalecendo sua identidade cultural. No
Ocidente, a palavra diwán é conhecida
desde o século XVIII graças a Johann Wolfgang von Goethe, autor do livro Diwán ocidental-oriental, obra
precursora do fascínio europeu pela poesia árabe e persa, que alcançaria seu
ápice na poesia de Federico Garcia Lorca, autor do Divã do Tamarit (1940),
que reúne poemas que dialogam com a forma clássica da cassida.
A poesia árabe moderna, que assimilou influências do verso
livre, da poesia social, do surrealismo e de outras tendências estéticas, é
bastante rica e variada, e nela se destaca a obra do palestino Mahmoud Darwish
(1942-2008), reconhecido como um dos mais expressivos autores da língua árabe
do século XX. Nascido na aldeia palestina de Birwa, nos arredores de Akka
(Acre), imigrou com sua família para o Líbano quando tinha apenas seis anos de
idade, após a destruição de seu vilarejo pelos sionistas, episódio que integra
a infame história da Nakba (“catástrofe”, em árabe), que levou à destruição de
mais de 400 aldeias palestinas e provocou o êxodo de 750 mil palestinos,
proibidos até hoje de retornarem a suas terras e lares (o número atual de
refugiados e seus descendentes é calculado em cinco milhões). Darwish
destacou-se como poeta, jornalista e militante político, sendo o autor da Declaração de Argel, também conhecida como a
“Declaração da Independência Palestina”, lida publicamente por Yasser Arafat, em
1988, quando o líder da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) declarou
unilateralmente a criação do Estado Palestino. A poesia de Darwish abandona a
métrica e as formas de composição da poesia árabe clássica, como a cassida e o gazal, adota o verso livre e um estilo de dicção coloquial, em que
o eu lírico funciona, muitas vezes, como um eu coletivo – a comunidade
palestina, em especial a que vive no exílio, tema que comparece com frequência
em sua obra poética. Outros temas recorrentes
são a natureza, o amor, a poesia, a sensação de estranhamento, causada pela
vivência no exterior, e o desejo de retorno à pátria (a busca de uma origem,
real ou imaginada, é um tema caro a autores da literatura moderna, como Joyce,
Celan e Kozer).
No
Brasil, os poemas de Mahmoud Darwish foram apresentados pela primeira vez ao
público brasileiro na antologia Poesia
palestina de combate (Rio de
Janeiro: Achiamé, 1981), organizada por Abdellatif Laâbi e traduzida por Jaime
W. Cardoso e José Carlos Gondim. O livro, apesar de algumas incorreções (a tradução
não foi feita a partir do árabe, mas de outras traduções para línguas
ocidentais), tem o valor inegável de oferecer, pela primeira vez ao leitor
brasileiro, uma amostragem da poesia palestina contemporânea, em que se
destacam, além de Darwish, vozes singulares como as de Fádua Tuqan, Tawfik
Az-Zayad e Samih Al Qassim. Como o próprio título da coletânea indica, a
seleção dos poemas foi feita de acordo com critério temático: estão reunidas
aqui canções de combate, que expressam a epopeia de um povo que resiste, há
quase sete décadas, à brutal tentativa de genocídio humano e cultural
perpetrada pelo estado sionista. Apesar dessa delimitação, que obedece a um viés
político (justificável em seu contexto histórico), o resultado estético
apresenta alguns ótimos resultados, como podemos verificar nas seguintes composições:
OS LÁBIOS CORTADOS
Eu poderia ter contado
a história do rouxinol assassinado
poderia ter contado
a história...
se não me tivessem cortado os lábios.
(Samih al Qassim)
Eu poderia ter contado
a história do rouxinol assassinado
poderia ter contado
a história...
se não me tivessem cortado os lábios.
(Samih al Qassim)
PROVÉRBIOS
Segundo nosso primeiro antepassado
disseram nos provérbios
“Como uma raposa
que engole uma foice”
“O que o vento traz
a tempestade leva”
“Quem rouba os outros
vive sempre
com medo”.
(Tawfik Az- Zayad)
O primeiro poema, de Samih
al Qassim (nascido em 1939), concentra sua força expressiva em apenas cinco
linhas, numa estrutura similar à do haicai; porém, ao contrário do terceto
japonês, não apresenta uma ação, e
sim uma possibilidade, a partir da
justaposição de duas breves imagens, a do rouxinol e a dos lábios cortados. O
poema remete à hipótese de uma ação, que teria ocorrido se o narrador não
tivesse sofrido a violência da mutilação. É uma peça ao mesmo tempo sutil e
impactante, que recorda os poemas breves de Maiakovski (“come ananás, mastiga
perdiz / teu dia está prestes, burguês”, na tradução de Augusto de Campos) e de
Bertolt Brecht (“Escapei aos tigres / Nutri os percevejos / Fui devorado / Pela
mediocridade”, em versão de Haroldo de Campos), e ainda a “poesia-pílula” de
Oswald de Andrade (“Venceu o sistema de Babilônia / e o garção de costeleta”).
O segundo poema, de Tawfik Az- Zayad (1929-1954), também é construído de acordo
com uma técnica de montagem, mas, desta vez, de provérbios populares árabes, retirados
de seu campo habitual de referências e recontextualizados para a crítica à
ocupação israelense (“Quem rouba os outros / vive sempre / com medo”). A
incorporação de provérbios na poesia (e na prosa) de alto repertório é
verificada em diversos autores da modernidade, como James Joyce, Guimarães Rosa
e Paulo Leminski, geralmente com sentido irônico, subvertendo o sentido
original dos ditos populares, que é alterado e ampliado, pela paródia. No caso
da poesia lírica árabe, que se alimenta há séculos de imagens e ditos
tradicionais, a subversão é ainda mais violenta. Em ambas composições, o eu
lírico fala em solilóquio, mas, na peça de Tawfik Az- Zayad, o “outro” israelense
também é retratado, de forma enviesada: aquele que oprime é o que sente medo,
pois “O que o vento traz / a tempestade leva”. Um terceiro poema que merece
breve comentário é Refugiado, de Salim
Jabran (nascido em 1947):
REFUGIADO
O sol atravessa as fronteiras
sem que os soldados atirem
o rouxinol canta manhã e tarde
e dorme em paz
com todos os pássaros dos kibutz
um asno extraviado
pica o pasto
em paz
sobre a linha de fogo
sem que os soldados atirem nele
e eu
teu filho exilado
-- Ó terra de minha pátria
entre meus olhos e teus horizontes
a muralha das fronteiras
(Salim Jabran)
A composição, desenvolvida em linguagem narrativa, sobrepõe
quatro imagens: a do sol, a do rouxinol, a do asno e a do refugiado, que é o
próprio eu lírico do poema. Nas três primeiras imagens, nada acontece: os
elementos da natureza não são perturbados pelos soldados da fronteira, que não
atiram. A quarta imagem, porém, é inconclusiva: entre os olhos do narrador e a
vastidão da terra há uma muralha – e, o que o poema não diz: guaritas do
exército de ocupação israelense, com soldados que disparam naqueles que cruzam
a fronteira. Assim como nos poemas de Samih al
Qassim e Tawfik Az- Zayad, estamos aqui no território do oculto: nada é dito
claramente, o leitor deve interpretar os poemas a partir das pistas e sugestões
deixadas pelos autores. Diferente estratégia textual é adotada por Mahmoud Darwish,
discípulo de Whitman e de Maiakovski, que prefere o discurso retórico, evitando
paráfrases, metáforas e imagens abstratas. Seu vocabulário, simples e direto,
traduz o cotidiano da ocupação em versos de alto impacto como estes:
CARTEIRA DE IDENTIDADE
(fragmento)
Toma nota!
Sou árabe.
Número da
identidade: 50 mil
Número de filhos:
oito
E o nono... já
chega depois do verão.
E vais te irritar
por isso?
Toma nota!
Sou árabe
Trabalho numa
pedreira
Com meus
companheiros de dor
Pra meus oito
filhos
O pedaço de pão
As roupas e os
livros
Arranco da rocha...
Não mendigo esmolas
à tua porta,
Nem me rebaixo
No portão do teu
palácio
E vais te irritar
por isso?
Este poema – talvez
o mais conhecido da literatura palestina do século XX – sugere o diálogo de um
habitante dos territórios ocupados com um soldado israelense, em tom de desafio[1]. A
tradução, assinada por Paulo Farah, professor de língua e literatura árabes na
Universidade de São Paulo, integra o volume A
terra nos é estreita e outros poemas (São Paulo: Bibliaspa, 2012), primeira
coletânea individual de Darwish publicada no Brasil[2],
que inaugura um novo patamar nas relações – ainda tímidas – entre a poesia
palestina e a brasileira. Em resenha que escrevemos sobre esse livro, publicada
na revista eletrônica Mallarmargens[3],
afirmamos que
a
poesia de Darwish emprega imagens simples, extraídas do cotidiano: o girassol,
o cavalo, a oliveira, a rosa, o prego, a chuva. A simplicidade do vocabulário,
porém, muitas vezes faz referências à história universal, à geografia do Oriente
Médio, à tradição literária e religiosa, como ocorre na curiosa composição Como nun na Surata do Clemente,
que dialoga com textos do Corão e com imagens mitológicas, como a da
fênix grega. Já no livro Salmos,
encontramos uma série de poemas sobre Jerusalém, com referências intertextuais
aos livros proféticos do Antigo Testamento, em que a cidade, transformada em
personagem, fala na primeira pessoa – recurso poético conhecido como prosopopéia. O exílio do povo hebreu
relatado nos textos bíblicos é usado por Darwish como metáfora do êxodo e do
sofrimento do povo palestino, e o retorno à terra perdida sinaliza uma utopia
ao mesmo tempo pessoal e coletiva: é a recuperação do país, que tem sua própria
história e cultura, mas também uma reapropriação de sua infância, de suas
lembranças, de suas ligações familiares, enfim, de sua vida. Na poesia de
Darwish, encontramos com frequência o diálogo, à maneira de um teatro poético,
como acontece na composição A
eternidade do cacto:
—
Para onde me levas, pai?
—
Em direção ao vento, meu filho...
Este
recurso, que permite a construção de uma pequena cena, com o pano de fundo da
história palestina a partir de 1948, recorda por vezes as composições de
Bertolt Brecht, embora em Darwish o tom épico esteja quase ausente: é um poeta
lírico e elegíaco, que observa o heroísmo presente em pequenas situações, como
lavar pratos, fazer café, ouvir o rádio, ações convertidas em formas de
resistência: o simples fato de existir, de perpetuar sua língua, seus costumes, sua
memória, já faz do palestino um combatente do sionismo, que procura apagar
todos os vestígios da existência desse povo, demolindo suas aldeias, mudando os
nomes das ruas, reescrevendo a história. A poesia, para Darwish, é uma forma de
resistência: é a afirmação de uma identidade, pessoal e coletiva, e a
reconstrução de um país pela palavra poética.
A terra nos é estreita foi publicada no
Brasil em momento histórico auspicioso: em dezembro de 2012 aconteceu o Fórum
Social Mundial Palestina Livre, em Porto Alegre (RS), que reuniu milhares de
ativistas de movimentos populares, do Brasil e do exterior, para uma série de
debates e atividades culturais relacionadas à solidariedade com o povo
palestino. A Bibliaspa, uma das entidades participantes do Fórum, promoveu
também o lançamento do romance Noite
Grande, do palestino-brasileiro Permínio Asfora, autor ainda pouco
conhecido de nossa literatura, que mereceu, no entanto, o elogio de Guimarães
Rosa. A revista Zunái – que
organizou, em parceria com a Federação Árabe Palestina (Fepal) a mostra
fotográfica Palestina: a ferida aberta,
para relembrar os 30 anos do massacre de Sabra e Chatila, também esteve no
Fórum. Participamos de uma mesa temática sobre a arte de resistência, ao lado do
célebre cartunista Latuff, e realizamos a distribuição da plaquete Poemas para a Palestina, publicação
semi-artesanal com textos de 15 autores brasileiros, que expressaram, em
diferentes estilos – do soneto à elegia, do poema minimalista ao neobarroco – a
solidariedade a um povo que busca reencontrar o seu lugar na história. A plaquete,
de poucas páginas e pequena tiragem, foi acrescida de novos textos e traduzida
para o idioma árabe por Kháled Mahassen, em um volume bilíngue que será
publicado em breve -- parte da tiragem será enviada à Cisjordânia, por ocasião da III Missão de Solidariedade à Palestina, em 2014. É nossa intenção que essa
obra seja uma semente de diálogo e cooperação entre os poetas brasileiros e
palestinos. Como breve amostragem do volume, apresentamos aqui algumas das
composições:
Jonatas
Onofre
FAIXA
DE GAZA
Como
pode ser
esta veia sem sutura?
Este campo de destroços
em hemorragia?
A ausência das harpas
ainda verga os galhos
do salgueiro.
Mas o sol, imunda fera,
lambe um ossuário
de crianças no deserto.
esta veia sem sutura?
Este campo de destroços
em hemorragia?
A ausência das harpas
ainda verga os galhos
do salgueiro.
Mas o sol, imunda fera,
lambe um ossuário
de crianças no deserto.
Andréia
Carvalho
JUDAH
ouço
teu passo - irmão
manso de sandálias
emplastradas
sondo teus olhos
dois campos pardos
concentrados
e não te escuto o nome
abatido
e não te ouço os cânticos
pelos dentes afiados
branca munição
teu sorriso cúspide
tudo que me cospe
tudo que me cala
não
mais te coagulam pontes
no mar
vermelho do sangue
teus
frutos amordaçados
com a
fome de um jardim
suspenso
lamentam
a polpa
de tua
febre
não te
entendo o êxodo
fantástico
na fissura dos mapas
antes da promessa
era terra à vista
teu deserto mágico
antes da mesquita
era o filho do cosmos
era autêntico, o livro branco
de neve
tu te
lanças sobre muralhas
inventadas
desenhos
bombardeados
e
mutilas em seis
o que
te deram
em sete
hamurabi
coração
dilacerado
e cego
oro por ti
escarificado
Lígia
Dabul
PALESTINA
Despenca
o medo.
A
primeira pessoa
atravessa
o que
pretendo.
Não
esqueço
a fúria
da
visita. De novo
a pior
de todas
as
viagens.
Terrenos
interditos
e
barbárie
aberta,
vã,
acusam
o
direito da
resposta.
Khaled
Fayes Mahassen
GAZA
DA MORTE
O grito da morte
Gaza
Fronteiras fechada
saídas cerradas
Gaza da morte
Gaza da morte
quem faz a sorte?
A lua é triste,
a vida é triste
o sol! O sol é muito triste,
a Morte!
Ah! A morte é triste.
Gaza da Morte,
Aos olhos do mundo
casa caída
vida destruída,
criança que morre
na gaza da morte
Aos olhos do mundo
ao protesto surdo.
Oh!
O grito forte
da Gaza da morte.
Sorte?
Paz! Que Paz?
Paz com braço forte
com espada que corte
com povo unido
com governo unido
e o mundo decidido
a mudar a sorte
Gaza
Gaza da morte
Gaza da morte
Gaza
Gaza da morte.
Mudará , mudará a sorte!
O grito da morte
Gaza
Fronteiras fechada
saídas cerradas
Gaza da morte
Gaza da morte
quem faz a sorte?
A lua é triste,
a vida é triste
o sol! O sol é muito triste,
a Morte!
Ah! A morte é triste.
Gaza da Morte,
Aos olhos do mundo
casa caída
vida destruída,
criança que morre
na gaza da morte
Aos olhos do mundo
ao protesto surdo.
Oh!
O grito forte
da Gaza da morte.
Sorte?
Paz! Que Paz?
Paz com braço forte
com espada que corte
com povo unido
com governo unido
e o mundo decidido
a mudar a sorte
Gaza
Gaza da morte
Gaza da morte
Gaza
Gaza da morte.
Mudará , mudará a sorte!
[1] Conforme Paulo Farah, “A poesia e o envolvimento político de Darwish foram uma fonte contínua de conflito com as autoridades. Em 1962, ele foi acusado de incitamento à revolução por recitar um poema sobre Gaza em um festival de poesia. Nos anos seguintes, foi preso diversas vezes”.
[2]
Convém citar também as notáveis traduções de Darwish realizadas por Michel
Sleiman, poeta e professor de língua e literatura árabe na USP, publicadas na
revista Zunái, na página http://www.revistazunai.com/editorial/23ed_mahmouddarwish.htm.
[3] Artigo publicado na página
http://www.mallarmargens.com/2013/01/poeta-palestino-mahmoud-darwish-e.html
[4]
Prece recitada por um enlutado durante 11 meses após o falecimento de seu pai
ou mãe. Em caso de falecimento de um irmão, irmã, esposa, marido ou filho (a) é
recitado por apenas um mês.
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
PROGRAMAÇÃO DE DEZEMBRO DA CURADORIA DE LITERATURA DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
Poesia dos 4 Cantos: Noite Brasileira
Poesia
dos Quatro Cantos é uma atividade mensal dedicada à divulgação da poesia
internacional, num formato que inclui a leitura com danças e músicas típicas de
cada país, nos intervalos das leituras. Em dezembro, será feita a apresentação
de uma Noite Brasileira com os poetas Claudio Daniel Lelia Maria Romero, que
lerão poemas de autores brasileiros clássicos e contemporâneos, com a participação do bloco
afro Ilú Oba de Min.
Terça-feira,
dia 03/12/13, das 20h30 às 22h
Sala Adoniran Barbosa
CRIONÇAS CRIONÇOS
Show
do compositor Cid Campos, que apresentará poemas musicados voltados ao público
infanto-juvenil.
Sexta-feira,
dia 06/12/13, das 19h às 21h
Sala Adoniran Barbosa
Clube de Leitura de Poesia
A poeta Mariana Ianelli conversará com o público
sobre a sua carreira literária e fará uma leitura de seus poemas. Em seguida, o
público será convidado a fazer perguntas ao poeta, para um bate-papo informal.
Terça-feira, dia 10/12/2013, das 20h30 às 22h
Sala de Debates
Menu de Poesia
Recital
dedicado à poesia de Décio Pignatari, organizado por Maria Alice Vasconcelos.
Haverá tradução de libras.
Quarta-feira, dia 04/12/2013, das 20h30 às
22h
Sala Adoniran Barbosa
terça-feira, 19 de novembro de 2013
MÍDIA
corvo monossilábico rumina vermes
na lepra da
língua:
infecta o ar
com sua voz,
insulta o sol.
ave
monocromática,
repete a lepra,
repete a lepra da língua,
em textículos
venais:
multiplica
calúnias, entorpece letras,
mumifica o mar.
tudo é falso,
tudo que diz é falso,
vermes caindo
de seu bico
recurvado, como
quem diz:
“nunca mais!”
ave canalha, ave
venérea, ave vendida:
a palavra vermelha te desafia.
Claudio Daniel, 2013
sexta-feira, 8 de novembro de 2013
GAROTO DE RECADOS
O famoso crítico literário -- inventado
pela FALHA -- diz que a Companhia das Letras é "a melhor editora do
Brasil" porque VENDE mais livros e tem mais presença na mídia (que presta
serviços de assessoria de imprensa às grandes empresas editoriais, usando pessoas
como ele). Ou seja, para o prestigiado crítico, é o MERCADO, e não a QUALIDADE
literária, que importa. Eu, que sou inimigo declarado do mercado capitalista e
de sua mídia nojenta, fico com as pequenas editoras -- LUMME, PATUÁ, TRAVESSA
DOS EDITORES, DEMÔNIO NEGRO -- que publicam textos de qualidade e não precisam
fazer lobby na mídia.
POEMAS PARA A PALESTINA
O livro Poemas para a Palestina (Qasaed
ila Falastin) será publicado no início de 2014, em versão bilíngue,
português-árabe. Parte da tiragem será enviada a escolas e universidades
palestinas, como um presente de solidariedade dos poetas brasileiros.
O livro inclui poemas sobre a Palestina
escritos por poetas brasileiros -- Glauco
Mattoso, Marcelo Ariel, Lígia Dabul, Nina Rizzi, Andréia Carvalho, Jonatas Onofre, Khaled Fayes Mahassen (que também traduziu os textos para o árabe),
Nydia Bonetti, Celso Vegro, Célia Abila, Rosane Carneiro, Gabriel Resende
Santos, Paula Freitas, Lara Amaral e eu próprio (poema Fósforo Branco). Parte desses poemas foi lida no recital realizado
no Club Homs em memória das vítimas de Sabra e Chatila.
RETRATO DO ARTISTA
PALAVRAS SUJAS DE REALIDADE
Donizete Galvão desenvolve em sua poesia um catálogo de
motes obsessivos em que se destacam o tempo, a memória, a cidade, insetos,
animais, pequenos acontecimentos da jornada ordinária e a busca da epifania
possível numa era de “homens inacabados”. Mircea Eliade, no Tratado de história das religiões, define epifania (do grego epi, sobre, phaino, brilhar) como a manifestação inesperada do divino ou o
acesso súbito à sabedoria, tal como as revelações obtidas em sonhos, transes
xamânicos ou experiências rituais com alucinógenos. O conceito de epifania passou
a ser usado na modernidade por autores como James Joyce, num contexto laico e
profano, para designar percepções estéticas que causam uma reação emocional intensa
de horror ou deslumbramento. A escrita de Donizete Galvão apresenta diferentes
momentos epifânicos, em geral relacionados à contemplação da natureza (“Caminho
de vacas, / cascos / cavando / trilhas / na grama”), à escuta das canções de
Nina Simone (“Voz de soda cáustica / roendo a carne / até cavar um fosso”), ao
convívio com as obras de artistas plásticos como Paulo Pasta ou Renina Katz (“Paisagem
irreal, / onde se respira / um ar rarefeito: / o mundo suspenso / por um fio /
no limiar da dissolução”), mas especialmente à observação de cenas que são retiradas
de sua condição imediata e reconfiguradas em alegorias, como acontece em O grito: “O porco guincha / e sob a pata
dianteira / sai a golfada de sangue / que enche a bacia. // Horas depois, /
pronto o chouriço, / comemos o sangue preto, / as tripas, o grito” (do livro Ruminações). Este poema, de fortes cores
expressionistas, não é apenas a descrição minuciosa de um acontecimento que o
autor pode ter presenciado (ou não) em sua cidade natal, Borda da Mata, situada
no interior mineiro; é também a construção do pensamento por meio de imagens e
impressões sensoriais que envolvem a imaginação do leitor, fazendo com que ele compartilhe
a degustação das tripas misturadas ao grito, metáfora do desconforto da condição
humana.
Consciência de linguagem
Em Azul navalha, livro de estreia de
Donizete Galvão, publicado em 1988, o tema principal é a cidade – o espaço
perdido da infância, agora transformado em cenário mental (“Ele fundou uma cidade na memória, / território de sonhos
que a tudo acolhe. / Ruas que são matas / que são rios / que são abismos / em
ilógica geografia”). Em As faces
do rio, publicado em 1990, o autor amadurece a consciência de linguagem em
peças de maior elaboração formal, como a notável composição Prisioneiro na pedra, de versos breves,
enigmáticos e construção elíptica: “Na pedra, / ele espreita: / peixe, pássaro,
lua. / Seu olho-flecha / nunca fere a presa. / Pois que tudo se move; / rio,
céu, satélite / e até mesmo a pedra. / Não se move o homem, / cego à teia / que
à sua volta cresce”. A pedra é um elemento que comparece em diversos poemas de
Donizete Galvão (especialmente em seu terceiro livro publicado, Do silêncio da pedra, de 1996),
geralmente associada à “esterilidade do deserto e, em última instância, a
morte”, mas também a aspectos positivos, como “anteparo e abrigo”, segundo
Paulo Vizioli. A pedra se contrapõe à água, outro símbolo frequente na poesia
de Donizete Galvão: se a pedra é silêncio e imobilidade, a água é ruído,
movimento, devir temporal, rio heraclítico em que entramos e não entramos,
somos e não somos: “Tudo que nos é dado a maré leva / e devolve como restolho”.
Em A carne e o tempo, livro publicado
em 1997, com a reprodução de uma aquarela de Paul Klee, o tema central é o caráter
efêmero dos viventes e do mundo (“Somos homens de frágil arquitetura /
tessitura de finos fios de vidro, / renda tramada por aranhas”), embora o
sagrado também compareça – não como promessa de redenção futura, mas como
possibilidade de encantamento na vida presente com as pequenas coisas que nos
iluminam, seja a lembrança de figos maduros, a contemplação da chuva de
primavera, ouvir a música de Villa-Lobos, assistir à dança de Madhavi Mudgal ou
observar as litografias de Renina Katz. Para Donizete Galvão, há “um deus de
pedra / (...) deus que não pune / deus que não salva”.
Perguntas sem respostas
Ruminações, publicado em 1999, é o livro
mais telúrico do autor, formado por pequenas narrativas que incorporam
paisagens do interior mineiro, sem cair em fácil retórica nativista: o poeta
transforma o regional em universal em composições como Reboco (“Para quem não tem muito, / tudo tem serventia: / a argila,
a bosta da vaca, / o perfume da grama”), Escoiceados
(“Levamos / bons coices. / Meu pai e eu. / Os dois / nunca subimos / na vida”)
e Autorretrato como boi (“No curral
da insônia / rumino palavras pastadas / na ribanceira dos dias”). Um poema notável deste livro, pela técnica de
construção da narrativa, é Sexta-feira da
paixão: “A mulher que ganhou os peixes / não traz os olhos cabisbaixos /
nem os ombros arqueados. / Treze peixes finos e prateados / deslizaram para
dentro da sacola. / (...) Usará a frigideira preta / que fica no armário da
pia? / Vai passar os peixes na farinha, / fritá-los e servi-los bem sequinhos”.
O poema é arquitetado na forma de perguntas sem respostas, em que a descrição
minuciosa do cenário se mistura a um engenho imaginativo que completa as
lacunas com hipóteses ficcionais (“Quem dividirá os peixes com ela? / O marido
aposentado? Os filhos?”). A aparente simplicidade do poema oculta o seu caráter
alegórico, no sentido próprio da palavra: construção do pensamento por meio de
metáforas ou imagens, recurso frequente na poesia e na pintura barrocas. O lirismo de Donizete Galvão, centrado na
carnadura das palavras e das coisas, chega a um grau de ebulição em Mundo mudo (2003) e sobretudo em O homem inacabado (2010), de onde
extraímos essas linhas: “Num átimo, / a picada da serpente. / Abre-se a ferida
/ que nunca sara / Que não supura. / Coleção de escaras / que saem à unha / e
renascem / novas crostas. (...) A dor: / veneno. / Ninguém quer / sua companhia”.
(Artigo publicado na edição de novembro da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)
terça-feira, 5 de novembro de 2013
CÂNONE E ANTICÂNONE (IV): FERREIRA GULLAR
Ferreira Gullar é considerado pela crítica especializada um
dos melhores poetas brasileiros contemporâneos. Sua obra é marcada por
diferentes fases de pesquisa estética, desde o lirismo e o experimentalismo até
a poesia de cordel e a dicção coloquial de sua produção mais recente. No livro A luta corporal, de 1954, por exemplo,
encontramos composições intimistas de forte musicalidade, na série Sete poemas portugueses, e ainda poemas
em prosa, como a Carta ao inventor da
roda, peças concisas e substantivas que se aproximam de João Cabral de Melo
Neto, como Galo galo e ainda textos
experimentais que antecipam a Poesia Concreta, pela espacialização das linhas
na página, fragmentação da palavra e criação de neologismos. A respeito dessa
obra, que se afasta da tendência neoclássica da Geração de 45 e se insere no
campo das experiências de vanguarda da década seguinte, escreveu João Cabral de
Melo Neto: “O livro A luta corporal,
com que estréia o jovem poeta Ferreira Gullar, mostra uma justa compreensão do
que é a arte da tipografia. Impresso em papel absolutamente pobre, sem nenhum
desses adornos provincianos ainda tão usados entre nós (...), o livro é um dos
trabalhos gráficos mais simpáticos publicados ultimamente”. O poeta
pernambucano aponta as “pesquisas com a palavra e com o verso” e a visualidade
da “disposição de pretos e brancos (que) desempenha papel essencial” como
elementos de destaque na poética de Gullar, bem como a economia dos aspectos
gráficos, que coloca em primeiro plano a força semântica do texto: “O livro,
principalmente o livro de poesia, mesmo quando o autor não procure impor leis
especiais à leitura do verso, tem de estar subordinado ao texto: deve, quando
nada, não pesar sobre o texto, com todos os adornos e ilustrações que, em
geral, vemos associados à idéia de edição de luxo[1]”.
Um bom exemplo da arquitetura poética do livro A luta corporal é o poema O
anjo: “O anjo, contido / em pedra / e silêncio, / me esperava. // Olho-o,
identifico-o / tal se em profundo sigilo / de mim o procurasse desde o início.
// Me ilumino! todo / o existido / fora apenas a preparação / deste encontro.
// O anjo é grave / agora. / Começo a esperar a morte”[2].
Este poema revela várias características da poesia inicial de Gullar, como a
síntese verbal, a geometria, a mescla de termos concretos e abstratos (como a pedra e o silêncio) e a expressão subjetiva. No último poema do volume, sem
título, Gullar radicaliza a disposição espacial das linhas na página, buscando
dar uma dimensão plástica ao texto, ao mesmo tempo em que pulveriza as palavras
em sílabas e cria termos abstratos escritos em letras maiúsculas como “URR
VERÕENS / ÔR / TUFUNS / LERR DESVÉSLEZ VÁRZENS”[3].
O vil metal, que reúne poemas escritos entre 1954 e 1960, parece
prosseguir esse caminho de experimentação no poema que abre o volume,
intitulado Fogos da flora, mas, nas
páginas seguintes, verificamos uma profunda mudança na dicção do autor, que
apresenta textos discursivos, bem-humorados e em linguagem coloquial, como Ocorrência: “Aí o homem sério entrou e
disse: bom dia. / Aí o outro homem sério respondeu: bom dia / Aí a mulher séria
respondeu: bom dia / Aí a menininha no chão respondeu: bom dia / Aí todos riram
de uma vez”[4].
Esta peça, assim como outras incluídas no livro, afastam-se do concretismo,
praticado pelo autor entre 1957 e 1958 (com resultados notáveis, como o Formigueiro e o Poema enterrado) e revelam a influência da linguagem
conversacional e irônica do Modernismo, e em especial de Oswald de Andrade (a
quem dedicou o poema Oswald morto) e
Carlos Drummond de Andrade. A marca do experimentalismo, porém, ainda é visível
na peça Definições, composta de palavras
escritas em letras minúsculas, aglutinadas fora de uma ordem sequencial
lógico-sintática, com o uso frequente de recursos aliterativos e sem sinais de
pontuação: “fala fósseis sol / facho / farpa fogo / arco-sombra / faca jardim
archote /folha ou boca / flama / gasto em vão”[5].
José Guilherme Merquior aponta, nesse livro, uma “poesia de conquista crítica
do cotidiano[6]”. Podemos
notar a abordagem referida por Merquior no léxico dos poemas (lavatório,
gaveta, paletó, cadeira, sapatos), no olhar fotográfico, voltado às pequenas
ações ordinárias, e certo tom caricatural, que não se reduz ao mero
naturalismo, como no poema Um homem ri:
“O homem lançava o riso como o polvo lança a sua tinta e foge”[7].
Com as mudanças políticas ocorridas no Brasil a partir do
golpe militar de 1964, que derrubou o governo democrático de João Goulart, o
poeta escolhe um novo caminho para a sua criação, privilegiando os temas
sociais, o conteúdo ideológico e o diálogo com a cultura popular, como a poesia
de cordel, gênero que praticou entre 1962 e 1967 (Quem matou Aparecida, Peleja
de Zé Molesta com Tio Sam, História
de um valente, entre outros títulos). Segundo Fábio Lucas, nos Romances de Cordel, Gullar “passa ao
ritmo mais fluente e popular da língua portuguesa, as estrofes narrativas em
redondilhas, nos moldes dos cantadores de feiras. Falam alto no poeta a
nordestinidade, a visão urbana e o compromisso social”[8].
A leitura desses poemas hoje, porém, fora do contexto histórico em que foram
escritos, pode revelar certo anacronismo estético pelo proselitismo típico de
uma arte que se confunde com as tarefas de agitação e propaganda, como ocorre
em versos como esses: “o homem vem caminhando / para a plena liberdade; / tem
que se livrar da fome / para atingir a igualdade; / o comunismo é o futuro /
risonho da humanidade”[9].
O abandono das formas de experimentação estética em favor do compromisso
político inspira ainda um ensaio de Gullar publicado em 1969, chamado Vanguarda e subdesenvimento. O engajamento político permanece no livro
seguinte, Dentro da noite veloz
(1975), onde encontramos poemas dedicados a Che Guevara e de denúncia da guerra
do Vietnã, temas recorrentes no auge da Guerra Fria, que dividiu o mundo entre
as esferas de influência americana e soviética. Este talvez seja o livro de
menor impacto estético na obra de Gullar, pela ênfase na abordagem ideológica
dos fatos históricos do período, mas ainda encontramos aqui peças líricas e
bem-humoradas como Cantada: “Você é
mais bonita que uma bola prateada / de papel de cigarro / Você é mais bonita
que uma poça d’água / límpida / num lugar escondido / Você é mais bonita que
uma zebra / que um filhote de onça / que um Boeing 707 em pleno ar / (...)
Olha, / você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro / em maio / e quase tão
bonita / quanto a Revolução Cubana”[10].
O Poema sujo,
talvez o livro mais conhecido e admirado de Ferreira Gullar, publicado em 1976,
é bem recebido pela crítica, que reconhece nesse poema longo escrito no período
de exílio do autor em
Buenos Aires uma obra densa e consistente. Conforme José
Guilherme Merquior, “Uma das originalidades do Poema sujo consiste precisamente na conjugação dessa fixação carnal
com a insistência em cantar o corpo da cidade: da bela, pobre e úmida São Luís,
berço de Gullar. O realismo caricatural de Gullar, seu apego à dolorosa
finitude das pessoas e coisas, emprestam a vários momentos de seu poema um tom
único de abrupta humanidade. Ferreira Gullar é um François Villon participante
— um César Vallejo brasileiro — e sem dúvida é a pungência da sua rouca
melodia, a sua surpreendente capacidade de liricizar, sem nunca ‘estetizar’ o
chulo e o banal, que lhe permite evitar a erva daninha da literatura engajada —
o clichê ideológico”[11].
É preciso ressaltar, além dos aspectos referenciais — como as lembranças da
infância e a descrição de cenas do cotidiano da cidade —, a riqueza rítmica e
melódica do poema de Gullar, que aglutina as palavras criando efeitos sonoros
que se chocam por vezes com a própria sintaxe, como nas linhas iniciais: “turvo
turvo / a turva / mão do sopro / contra o muro / escuro / menos menos / menos
que escuro / menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo”[12].
Este é um dos livros mais importantes da poesia brasileira da segunda metade do
século XX, na opinião quase unânime da crítica.
Na vertigem do dia (1980) retoma o intimismo da fase inicial da poesia de
Ferreira Gullar, o mergulho em suas próprias incertezas e inquietações. No
poema intitulado Traduzir-se, por
exemplo, o poeta diz: ”Uma parte de mim / é todo mundo: / outra parte é
ninguém: / fundo sem fundo. // Uma parte de mim / é multidão: / outra parte
estranheza / e solidão. / (...) Traduzir uma parte / na outra parte / — que é
uma questão / de vida ou morte — / será arte?[13]”
O poema Bananas podres, por sua vez,
recupera os temas da passagem do tempo e da morte, alegorizados na imagem da
fruta que apodrece (metáfora já presente na composição As peras, incluída no livro A
luta corporal). O mergulho no mundo das memória e das emoções será
aprofundado nos dois livros que o poeta publicou em seguida, Barulhos (1987) e Muitas vozes (1999). Em Barulhos,
Ferreira Gullar apresenta poemas discursivos e confessionais em que se refere à
cidade do Rio de Janeiro, a amigos mortos, como Glauber Rocha, Clarice
Lispector e Mário Pedrosa, sem perder o foco no cenário social e no compromisso
político, como no poema Meu povo, meu abismo: “Meu povo é meu
abismo. / Nele me perco: / a sua tanta dor me deixa / surdo e cego. // Meu povo
é meu castigo / meu flagelo: / seu desamparo, / meu erro. // Meu povo é meu
destino / meu futuro: / se ele não vira em mim / veneno ou canto / — apenas
morro”[14].
Apesar de alguns bons achados, este é talvez o livro mais irregular do autor e
não revela nenhuma surpresa formal ou referencial. Muitas vozes, o livro de poesia publicado a seguir, também não
apresenta novidades: ali estão as obsessões registradas nos livros anteriores,
como a cidade natal, a infância, a família, o cenário urbano do Rio de Janeiro,
a realidade social. Dois poemas que chamam a atenção nesse volume são Nasce o poeta e Evocação de silêncios,
que retomam a concisão, a geometria e a literariedade de sua primeira fase
criativa.
[1] MELO
NETO, João Cabral de, in Cadernos de
Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998: 122-123.
[2] GULLAR,
Ferreira. Toda poesia. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 9-10.
[3] GULLAR,
Ferreira. Idem, 64.
[4] GULLAR,
Ferreira. Idem, 72.
[5] GULLAR,
Ferreira. Idem, 74.
[6]
MERQUIOR, José Guilherme, in Cadernos de
Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998: 123.
[7] GULLAR,
Ferreira. Toda poesia. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 77.
[8] LUCAS,
Fábio, in Cadernos de Literatura Brasileira.
São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998, 125.
[9] GULLAR,
Ferreira. Toda poesia. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 151.
[10] Idem,
173.
[11]
MERQUIOR, José Guilherme, in Cadernos de
Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998, 123.
[12] GULLAR,
Ferreira. Toda poesia. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 233.
[13] Idem,
335.
[14] Idem,
377.