Eugênio
de Andrade, assim como o poeta-samurai, também recebeu treinamento militar,
expressou o sentimento de vínculo com a aldeia natal e manteve sempre a referência
à natureza em seus poemas, numa perspectiva espiritual humanista e próxima ao panteísmo.
O crítico literário português Arnaldo Saraiva, ao enumerar as leituras que
marcaram a formação literária do poeta, considera “quase obrigatório falar nos
gregos (os elementos, o paganismo, o heraclitismo, a ‘melancolia estoica’
referida por Jorge de Sena), nos orientais (o haiku, o budismo zen), em Antônio Botto (...),
em Rilke (...) e nos espanhóis da geração de 27, em especial Garcia
Lorca ” (SARAIVA, 2005:
22). Eugênio de Andrade recusou filiação a Presença,
ao Surrealismo ou ao Neorrealismo e sua poesia sempre foi eclética e
universalista, bebendo nas mais diversas fontes. Desde os seus primeiros textos
publicados, entre 1942 e 1945, praticou o poema breve, em especial a quadrinha,
mas também composições com cinco, seis ou sete versos, como esta, intitulada Adágio: “O outono é isto – / apodrecer
de um fruto / entre folhas esquecido. / Água escorrendo, / quem sabe donde, /
ocasional e fria / e sem sentido” (ANDRADE,
2000: 14). Nesta notável composição não faltam a referência à estação do ano, a
montagem cinematográfica, o mistério, a indeterminação e o paradoxo. O poema,
escrito em meados da década de 1940, é provavelmente anterior à leitura de haicais
japoneses por Eugênio de Andrade, o que nos faz pensar, novamente, no caso de
Alberto Caeiro, em que houve extraordinária afinidade temática e estética com a
poesia japonesa, sem que houvesse uma relação intertextual planejada. Eugênio de Andrade nunca foi um estudioso do haicai, como Wenceslau
de Moraes ou Casimiro de Brito, nem um praticante sistemático dessa modalidade
poética, mas encontramos poemas breves, inclusive na forma do terceto,
em muitos de seus livros, como Ostinato
rigore (1964), Obscuro domínio
(1971), Véspera de água (1973), Matéria solar (1980), O outro nome da terra (1988) e Rente ao dizer (1992), para citarmos
poucos exemplos. O diálogo consciente
que Eugênio de Andrade estabeleceu com o haicai, como nos três tercetos de Rumores de verão, foi acima de tudo
estético, e ele não renunciou a sua própria linguagem poética, pouco afeita ao
humor e ao coloquialismo, para glosar a irreverência de Bashô (“Pulgas piolhos
/ um cavalo mija / do lado do meu travesseiro”, na tradução de Paulo Leminski).
A afinidade espiritual entre os dois poetas, podemos formular esta hipótese,
aconteceu sobretudo na relação com a terra, os animais, as aves e os peixes; a
mística do Eugênio de Andrade, assim como a de Bashô, não se situa num plano
transcendental, numa zona etérea além das dimensões do espaço e do tempo, mas,
ao contrário, ela acontece aqui e agora, em nossa relação com as estações,
paisagens, pessoas e objetos. Conforme observou Arnaldo Saraiva, o poeta
português “soube ainda revitalizar o veio do chamado lirismo tradicional, inventando
um ruralismo e um bucolismo” (SARAIVA,
1995: 22). Sua maneira de olhar para as coisas era quase fotográfica, extraindo
o lirismo possível dos objetos tangíveis. Eugênio de Andrade recorre por vezes à
alegoria e à metáfora, “mas nem por isso elas deixam de revelar um fulgor
concreto e objetivo que só lhes podia conferir a experiência concreta do mundo
(empírico), feita em lugares (concretos) que quase nunca são diretamente
nomeados” (idem, 37), embora saibamos, pela biografia do poeta e algumas referências
históricas e geográficas, a quais cidades ele em geral se refira, como Povoa,
Lisboa, Tavira, Porto ou Coimbra – assim como Bashô mapeou o seu percurso como
poeta-andarilho em seus diários de viagem, especialmente Sendas de Oku, redigido quatro séculos antes do nascimento do autor
português. A rã de Bashô ressoa na lírica de Eugênio de Andrade, viajando no
espaço e no tempo, transformada em outros batráquios, como vemos neste Noturno: “Coaxar de rãs é toda a melodia
/ que a noite tem no seio / – versos dos charcos / e dos juncos podres / casualmente,
com luar no meio” (ANDRADE, 2000: xx).
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