domingo, 28 de abril de 2013

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (XII)



2. 4 Herberto Helder e o princípio da estranheza

Herberto Helder (1930), companheiro de geração de Casimiro de Brito e participante do movimento da Poesia Experimental Portuguesa (PO-EX)[1], publicou no Jornal de Letras e Artes de Lisboa, em janeiro de 1963, artigos sobre a poesia clássica japonesa, e posteriormente dedicou-se à tradução de haicais de Bashô e seus discípulos para o português, que reuniria mais tarde na antologia O bebedor nocturno, lançada em 1968, que teve sucessivas edições, sendo a mais recente a de 2010. Conforme Maria Estela Guedes, o fascínio de Herberto Helder por diferentes discursos étnicos – dos haicais à poesia esquimó, dos textos orais dos peles-vermelhas aos hieróglifos egípcios, dos cantos mitológicos pré-colombianos ao Cântico dos cânticos do Antigo Testamento – acompanha o escritor desde o início de seu trabalho literário e se manifesta em diversos outros livros, como As magias, Oulof e Poemas ameríndios. “Ao verter para o português textos próprios das culturas e mesmo das liturgias de outros povos”, escreve Maria Estela Guedes, “HHelder busca uma ancestralidade literária, uma parentela que não pertence ao foro do DNA, e sim ao da imaginação criadora, ou do sonho, como lhe chama Alexandrian” (GUEDES, 2010: 53). Fascinado pelo aspecto mágico ou encantatório das línguas antigas, realçado pelos jogos sonoros aliterativos, pelas repetições e permutações de vocábulos, Helder irá pesquisar o artesanato semântico de várias literaturas, para incorporar procedimentos em seu próprio fazer poético. Conforme Maria Estela Guedes, “as sonoridades das línguas estranhas, por vezes apreendidas independentemente de significado, contando mais com o ritmo e a surpresa provocados pelos sons, aproximam-se da música” (idem, 44) e também dos “jogos infantis” (idem, 45), próximos a certas experiências dadaístas e surrealistas, como as praticadas por Antonin Artaud. “Glossolalias e fenômenos fonéticos com o mesmo impacto estão presentes n’As magias, em títulos de obras, como Eloi Lelia Doura e Oulof, e até em textos jornalísticos”, observa a autora (idem, 44). Em Photomathon & vox (1979), por exemplo, Helder cria insólitas palavras abstratas como LGOGERYCHWYRNDROBWLLLLANTYSILIOGOGOGOCH (idem). Poeta obscuro[2] como Heráclito, Helder se relaciona “com o misterioso, o mágico, a Esfinge que, às portas de Tebas...” (idem, 45) e faz da tradução uma forma de máscara dramática ou heteronímia. Ou ainda, como diz Maria Estela Guedes: “O poeta, mediante a tradução, participa diretamente na cultura a que pertence o poema tribal, apropriando-se dela. Essa apropriação tem consequências intelectuais e estéticas” (idem, 52) que são diferentes do enfoque colonialista, que banaliza ou descaracteriza a cultura do Outro, seja ele africano, oriental ou ameríndio, para dominá-lo. O diálogo estabelecido por Herberto Helder com as culturas não-ocidentais vai em sentido diverso: “No momento em que o poeta assimila o elemento exótico, hibridando-o com o endótico, contraria a tendência colonialista e simultaneamente cria algo de novo, no plano artístico” (idem, 52-53).

Os textos japoneses traduzidos por Herberto Helder em O bebedor noturno estão divididos em três seções: Poemas zen, conjunto de 16 dísticos sem informação sobre autoria ou procedência; Canções de camponeses do Japão, quatro peças breves traduzidas na forma do quarteto; e Quinze haikus japoneses, seleção de poemas de Bashô, Kikaku, Kyorai, Shikô, Buson, Issa e Ransetsu. Conforme observa Maria Estela Guedes, “uma vez que raramente identifica as suas fontes, vamos partir do princípio que verte do castelhano, do francês e do inglês” (idem, 50). Helder não reivindica a tradução como transposição rigorosa do sentido de uma língua para a outra, não adiciona notas explicativas, referências bibliográficas ou ensaios críticos para expor o seu método tradutório; o seu diálogo com a poesia japonesa não é o trabalho de um erudito, mas de um poeta acredita na capacidade imaginativa, na intertextualidade e na mestiçagem para evocar rutilâncias dos textos originais. Em seus “poemas mudados para o português” (subtítulo de O bebedor nocturno), Helder realiza “uma apropriação da cultura transportada no texto étnico, e seguidamente uma recriação de tais elementos na língua-mãe. Quer isso dizer que o resultado é sempre um texto mestiço” (idem). A prática tradutória de Helder afasta-se da historicidade e da busca de uma pureza original, da tentação ilusória de restabelecer uma suposta verdade de um determinado passado, sugerindo mesmo “a impossibilidade de resgatar o passado acumulado”, conforme diz  Izabela Leal no ensaio Da memória à tradução: o erro das musas distraídas (in JACOTO, 2011: 32). Segundo a autora, “no caso da tradução, há de fato uma limitação, que é a impossibilidade de recuperar o que está dito no texto original. A tradução nos faz ver o caráter fragmentário da linguagem, já que as línguas se diferenciam entre si ao mesmo tempo em que são aparentadas” (idem). A tradução literária, de acordo com a autora, revela não apenas “a distância entre aquilo que é visado e o que se atinge de fato” mas também o fato de que “não há incompletude apenas na relação entre texto original e texto traduzido”, porque “o próprio original já é portador de um princípio de estranheza, pois apresenta uma dessemelhança em relação a si próprio” (idem).

A partir destas considerações, Izabela Leal define a arte tradutória de Herberto Helder como “prática deformadora e violadora da língua materna” e como “desvio”, uma vez que recusa ser “reprodução do original” para se firmar como “vitalidade e esplendor” (idem). O ponto de partida da recriação helderiana é o “erro”, mas um erro criativo, que se converte em “erro feliz”, que “transforma o lugar do erro por meio de uma ‘invenção de movimento’, de passos em volta, e então ‘acerta (...) com a potência natural da poesia’” (idem, 33). O signo do erro, da errância, do deslocamento rege toda a poética helderiana, e em particular a sua poética da tradução, mas nem por isso devemos deduzir que o poeta, em suas criativas versões dos haicais japoneses para o português, cai no puro espontaneísmo, na variação aleatória ou em intuições divorciadas do espírito da cultura com que dialoga. Podemos observar o extremo cuidado com que Helder recria em português a concisão, visualidade e imaginário da poética japonesa nestes dois poemas, também “reimaginados” por Casimiro de Brito em seu livro Poemas Orientais:


Libélula vermelha.
Tira-lhe as asas:
um pimentão.

Kikaku (1661-1707)


Pimentão vermelho.
Põe-lhe umas asas:
Libélula

Bashô (1644-1694)


Tradução: Herberto Helder

A réplica de Bashô ao poema de seu discípulo Kikaku não é apenas um exercício imaginativo ou estético, mas é uma afirmação da piedade budista, que se manifesta por todos os seres vivos, inclusive a libélula. Em vez de mutilar o inseto para transformá-lo em um objeto semelhante ao pimentão, Bashô faz a operação inversa, para transformar o pimentão em símile da libélula. Casimiro de Brito assim traduziu estes poemas:


Uma libélula vermelha.
Tirai-lhe as asas:
Oh! Um pimento!...

(Kikaku)


Um pimento vermelho.
Daí-lhe umas asas:
Oh! Uma libélula!...

(Bashô)  


Tradução: Casimiro de Brito

As versões criativas de Herberto Helder obtêm força e consistência no idioma português pela extrema economia sintática, elemento essencial da arte poética japonesa, e pela espacialização das linhas, que dão mobilidade aos poemas e mimetizam a visualidade da escrita caligráfica. Casimiro de Brito, por sua vez, introduz interjeições e reticências que enfatizam de maneira exagerada o sentido da surpresa, já contido na própria referencialidade, e utiliza um vocábulo de uso pouco corrente (pimento) em vez da forma mais popular (pimentão). Coloquialidade, jogos verbais, compaixão budista e imaginário do universo infantil são recorrentes na poesia de Kobayashi Issa, também traduzido por Helder em seu pequeno caderno japonês:

Caracol,
lento, lento, lento – sobe
o Fuji.


Um cuco
cuja voz se arrasta
sobre as águas.


Tradução: Herberto Helder


O primeiro poema acentua ainda mais a visualidade como elemento essencial para a construção do sentido, com a palavra “caracol” isolada na primeira linha, sugerindo  solidão, e a tripla ocorrência da palavra “lento” na linha seguinte, a mais longa do poema, indicando na própria fisionomia semântica a vagarosa caminhada até o monte Fuji. O segundo poema, de construção sintática e visual mais simples, materializa a força metafórica pela extrema concisão, em medidas métricas ainda mais condensadas – Helder usou versos de 2-5-3 sílabas, em vez de 5-7-5, frequentes no haicai tradicional. A escolha dos poemas japoneses “mudados para o português” em O bebedor nocturno favoreceu as composições de caráter fanopaico, talvez por afinidade eletiva do tradutor, ele próprio um cultor da imagem rara, insólita, herdeiro da tradição de Lautréamont e Reverdy. Assim, encontramos haicais com imagens de alto impacto, como estes:


Crescente lunar.
O tubarão esconde a cabeça
debaixo das vagas.

(Shikô)


A lua deitou sobre as coisas
uma toalha de prata.
Azáleas brancas.

(Shikô)


Casa sob as flores brancas.
Onde bater?
Mancha sombria da porta

(Kyorai)

Ao mudar poemas japoneses para o português, Helder veste a máscara dramática de um autor clássico do século XVII, desenvolvendo temas e técnicas presentes em sua própria poesia – imagens desmesuradas, metáforas imprevistas – e recursos quase ausentes em sua lírica, como a escrita concisa, substantiva, com alta resolução e precisão de contornos. Ao contrário de Casimiro de Brito, não escreveu haicais, mas encontramos em sua escrita criativa a presença do koan, tipo de fábula transmitido pela escola zen-budista que perturba a lógica rotineira pela ação inesperada e inusitada.  O espírito do koan está presente numa notável composição de Helder publicada inicialmente nos Cadernos de Poesia Experimental e incluída posteriormente em seu único livro de prosa ficcional, Os passos em volta (1963):


TEORIA DAS CORES

Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe tranqüilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro a partir – digamos – de dentro. Era um nó negro por detrás da cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.

O problema do artista era este: obrigado a interromper o quadro que pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia agora o que fazer da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os elementos do problema constituíam-se na própria observação dos fatos e punham-se por uma ordem, a saber:

1)peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor;

2)peixe, cor preta, pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá dentro do aquário, o peixe, realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer notar que existia apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo.

(HELDER, 2004: 21)




[1] Herberto Helder participou do primeiro número dos Cadernos de Poesia Experimental com um fragmento de A máquina de emaranhar paisagens. Posteriormente, afastou-se do grupo.
[2] “Vamos relembrar: algures, n’Os passos em volta, o poeta suspira: Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.” (GUEDES, 2010: 46)


domingo, 21 de abril de 2013

SEMANA DE POESIA NO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO



JÚLIO CÉSAR MORTO POR UM DISPARO DE BROWNING 

Ricardo Corona, poeta, tradutor e editor da revista Bólide apresentará uma performance poética, a partir do conceito de que “livro” e “poesia” estão situados num mesmo espaço. Quando o livro não é mero suporte, mas poesia. Quando é objeto que participa da linguagem poética, num movimento que o aproxima do espaço da ação performativa e vice-versa. Quando autor, livro, texto, imagem se potencializam no espaço da performance. Na ocasião, haverá o lançamento do livro ¿Ahn? (edições brasileira e espanhola), de Ricardo Corona, e do primeiro número da revista de literatura e arte Bólide.

Terça-feira, dia 23/04/13, das 19h30 às 21h
Sala de Debates



POESIA DOS 4 CANTOS: NOITE LIBANESA

Poesia dos Quatro Cantos é uma atividade mensal dedicada à divulgação da poesia internacional, num formato que inclui a leitura com danças e músicas típicas de cada país, nos intervalos das leituras. Em março, será feita a apresentação de uma Noite Libanesa com a poeta Francesca Cricelli, com a participação dos músicos Claudio Kairouz, Rogério de Queiroz, William Bordokan, Semi el Khouri Bordokan e da dançarina Cristina Antoniadis Bordokan.

Quarta-feira, dia 24/04/13, das 20h30 às 22h
Sala Adoniran Barbosa



MENU DE POESIA

Recital dedicado à obra do poeta carioca Rodrigo de Souza Leão, organizado por Maria Alice Vasconcelos.

Quinta-feira, dia 25/04/2013, das 20h30 às 22h 
Praça Mário Chamie



POEMAS À FLOR DA PELE

Sarau poético realizado pelo grupo Poemas à Flor da Pele, com a participação de músicos e atores. Haverá também o lançamento de livros de poesia de novos autores.

Sexta-feira, dia 26/04/13, das 20h30 às 22h 
Praça Mário Chamie

domingo, 14 de abril de 2013

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (XI)


O diálogo entre Albano Martins e a poesia clássica japonesa atingirá maturidade criativa no volume Com as flores do salgueiro, publicado em 1993, em homenagem ao tricentenário da morte de Bashô, que comparece já na epígrafe: “As cigarras cantam / sem saberem que é a morte / que as escuta”. O livro, uma reunião de 48 poemas escritos na forma do terceto, sem métrica ou rimas (salvo exceções) e incluindo a referência sazonal – “Quando o verão / morre, as amoras / vestem-se de luto”, por exemplo (MARTINS, 2000: 257) – apresenta motivos tradicionais da poesia japonesa, como a gaivota, o rouxinol, a rã, a libélula, a abelha e a montanha, e por vezes conversa com haicais do cânone clássico japonês, como acontece no poema de abertura – “Um mar azul / pintou de branco / o voo das gaivotas” (idem, 251), que responde ao haicai de Bashô o mar escurece / a voz das gaivotas / quase branca” (in LEMINSKI, 1983: 36), numa inversão de luz e sombra. Em outro poema, Albano Martins refabula a saga da rã: “Despida, à tona / da água, a rã / vê-se ao espelho” (idem, 254), desafio também aceito por Eugênio de Andrade e Casimiro de Brito, em suas incursões na micropoesia. A rima – inexistente na lírica japonesa – aparece poucas vezes nesse conjunto de poemas, e nunca de maneira ornamental ou puramente retórica; quando ela é empregada, reforça a intenção temática ou emotiva, como neste poema que recorda a delicadeza e o imaginário lúdico das crianças que caracterizam a poesia de Kobayashi Issa: “Castanha é a cor / do sorriso / do ouriço” (idem, 252). O olhar infantil acompanha diversas outras peças do livro, que nos fazem lembrar, por vezes, da simplicidade e da comunicação direta de um Mário Quintana, ele próprio um poeta de haicai: “A andorinha faz / a sua casa / no vento” (idem). As imagens raras, elemento destacado na poesia de Bashô e Buson, são abundantes no livro de Albano Martins: “Com as flores / do salgueiro / fez a água uma grinalda”, composição que faz referência à árvore mítica da poesia japonesa, o salgueiro. Uma outra imagem inusitada, agora construída num feitio quase teratológico: “Uma concha bivalve: / borboleta do mar, / de asas fechadas” (idem, 257). A desmesura, elemento citado por Paulo Leminski como uma das características peculiares da poesia de Bashô, encontra, no livro de Albano Martins, exemplos como este: “Eclipse: a lua / joga às escondidas / com o sol” (idem, 258). A construção artificial e rebuscada de Teitoku, contraparte da simplicidade e objetividade de Soin, também comparece no volume, que não se prende a um único recurso ou estilo: “O insecto / pede à lâmpada / que lhe empreste os seus olhos” (idem, 260). Albano Martins experimenta várias possibilidades criativas na estrutura do terceto, sem temer o uso do paradoxo, do non sense e mesmo da imagem poética de feitio surrealista, como nesta composição, uma das mais belas do volume: “O rouxinol não sabe / que o seu canto / é verde” (idem, 253). A atribuição de características humanas a animais, a ideias ou objetos inanimados, recurso conhecido como prosopopeia, é cultivada em diversos haicais de Albano Martins, com uma fluência e aparente facilidade típicas da poesia de um outro brasileiro que, ao lado de Paulo Leminski, muito contribuiu para a divulgação do haicai em nosso idioma: Millôr Fernandes.  Poemas como este: “Mais cedo ou mais tarde / o silêncio virá / perguntar por ti”[1], com o seu humor refinado e a incorporação crítica de expressões tiradas da linguagem cotidiana, encontram-se na mesma sintonia que composições como “E o medo que mete / Esse espelho / Que não reflete” (Millôr Fernandes) ou “nem vem que não tem / nenhum navio ou trem / me leva a outrem” (Paulo Leminski). A linguagem coloquial, longe de ser uma dissonância no repertório da poesia clássica japonesa, retoma a liberdade formal e o despojamento da poesia de Bashô, que renunciou ao tom elevado e ao preciosismo da escola de Teitoku para incorporar a fala das ruas e a observação direta das coisas. Albano Martins, como observou José Fernando Castro Branco, não se limitou a seguir a divisão estrófica e métrica do haicai tradicional, mas buscou “o instante poético, a anotação rápida de um momento privilegiado, a fixação do efêmero pela palavra justa em que, como afirma Paz, ‘o instante é incomensurável’ ” (idem).
  



[1] MARTINS, 2000: 262.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

HAICAIS DE ALBANO MARTINS



Mais cedo ou mais tarde
o silêncio virá
perguntar por ti.


Quando uma abelha
se enamora,
nasce uma flor.


Eclipse: a lua
joga às escondidas
com o sol.


O rouxinol não sabe
que o seu canto
é verde.


A andorinha faz
a sua casa
no vento.


Quando o verão
morre, as amoras
vestem-se de luto.


O dia lega
à noite, em testamento,
a lua.


Castanha é a cor
do sorriso
do ouriço.


Nem sempre a neve
cai do céu: às vezes
explode numa flor.


Um mar azul
pintou de branco
o voo das gaivotas.

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (X)



Albano Martins – assim como Eugênio de Andrade – praticou a poesia breve desde os seus primeiros títulos publicados, como Secura verde (1950) e Outros poemas (1951-1952), sob o influxo da poesia grega (o autor licenciou-se em Filologia Clássica pela Universidade de Lisboa e traduziu poemas de Safo e Alceu), dos epigramas[1] e dísticos latinos, da quadrinha portuguesa e outras formas tradicionais, inclusive o terceto, como nesta composição incluída no livro Coração de bússola (1967): “A vida – essa invenção magnífica / da morte” (MARTINS, 2000: 44), revelando uma tendência “para a condensação, para a ascese vocabular rumo a um dizer essencial”, nas palavras do ensaísta português José Fernando Castro Branco, em seu livro Poética do sensível em Albano Martins (BRANCO, 2004: 51).  A busca da essência, ou antes dos “cernes e medulas” na expressão poética (para citarmos a conhecida frase de Ezra Pound), que no caso de Albano Martins deriva inicialmente de sua formação humanista, de sua predileção pela poesia greco-latina, se aproxima da arte verbal japonesa pela “concisão vocabular e estrutural inerente às duas situações” (idem), ao mesmo tempo que se avizinha dos procedimentos da vanguarda. A partir de Em tempo e memória, publicado em 1974, Albano Martins pratica uma escrita ainda mais concentrada, em consonância com as experiências construtivistas da época, desenvolvidas por poetas como Carlos de Oliveira em Micropaisagem (1969) e Haroldo de Campos em Lacunae (1969-1974) e Signância: quase céu (1979). Uma boa amostra da poética minimalista de Albano Martins encontra-se nestes fragmentos da terceira parte do poema Modulações:


3.

De inomináveis
obscuros,
refluentes
sinais
se tece
a polpa,
a medula
do espaço que habitamos.



*

O ritmo
do universo
cabe,
inteiro,
na pupila
dum verso.



*

Árvores
que me doem
na garganta
Quem as arranca?
Quem as planta?


*

Branco,
solúvel
veneno


ao rés
das pálpebras
arde
lento.


*

De lágrimas se molha
o tempo e a memória.

(MARTINS, 2000: 69-70).


Nesta composição, é notável o desenho sintático das palavras e frases, dispostas na página numa representação visual do movimento rítmico: “O ritmo / do universo / cabe, / inteiro, / na pupila / dum verso” (idem). Não há uma relação de continuidade referencial ou semântica entre as estrofes, que se combinam de acordo com o princípio da montagem ou superposição, como acontece na poesia japonesa. O elevado grau de abstração e subjetividade no poema de Albano Martins, no entanto, contrasta com a representação quase fotográfica do haicai, que busca o registro de paisagens e situações de contornos mais precisos – e recordemos aqui Haroldo de Campos, que no ensaio Visualidade e concisão na poesia japonesa afirma: “No pensamento por imagens do poeta japonês, o haicai funciona como uma espécie de objetiva portátil, apta a captar a realidade circundante e o mundo interior, e a convertê-los em matéria visível” (CAMPOS, 1977: 65). Albano Martins irá se aproximar desse princípio imagético/sensorial em outras seções da composição, como nesta pequena passagem:

Há folhas
no tempo
ainda verdes
ainda
à espera
dum
fictício
verão.

(BRANCO, 2004: 72).
Neste micropoema construído com apenas onze palavras, a simplicidade das “folhas / no tempo / ainda verdes” e a ação inusitada da “espera” de um “fictício verão” recordam algumas peças de Bashô, como esta composição traduzida por Paulo Leminski: “templo de suma / ouvi a flauta não soprada / debaixo das árvores” (in LEMINSKI, 1983: 56).  A representação da ausência, tão valorizada nas artes tradicionais japonesas, assim como os traços imprecisos, assimétricos ou inacabados na pintura, na poesia e na caligrafia serão elementos constantes na poesia de Albano Martins, que valoriza o espaço em branco da página, os cortes elípticos e o discurso paratático, em poemas cada vez mais condensados. A própria distribuição das palavras e linhas na página sugere a visualidade da escrita caligráfica, como acontece no poema Aproximações ao real:


Andaimes
para o vento:

nuvens.


*

Altas
e solitárias voam
as montanhas e as águias.


*


Pirilampos – acrí
licas vozes do sono.


*


Soltos ou não – quem pode vê-los? –,
de vento são os cabelos.


*

À laranja não
se lhe tira a casca,
mas o coração.

(BRANCO, 2004: 101).

Linhas breves, recortadas por sinais de pontuação e asteriscos, em que descobrimos nuvens e montanhas, águias e pirilampos, cabelos ao vento e laranjas descascadas, descritos com o mínimo de palavras, como se o poeta fosse um calígrafo japonês, que escreve o seu verso em rápidas pinceladas de nanquim sobre o papel. A concisão atinge o seu ponto máximo, talvez, neste poema de Sob os limos (1982):

*

De ciprestes
o templo

o tempo,

o cálcio,

a cinza.



Certifico o silêncio,
a podridão do vidro.


*


Das casas
a ruína
sem ruído


(idem, 131-132)


A última estrofe – ou micropoema – da composição sugere uma referência intertextual a um dos mais conhecidos haicais de Bashô, o primeiro que comparece entremeado à prosa de sua narrativa de viagem Sendas de Oku: “a cabana de ervas secas / o mundo tudo muda / vira casa de bonecas” (in LEMINSKI, 1983: 10). A similaridade temática e de procedimentos com a poesia japonesa, porém, não derivava – neste momento – de um diálogo consciente com a arte de Bashô e seus amigos, que Albano Martins então desconhecia[2]. Somente em 1992, quando publica o livro Entre a cicuta e o mosto (1992), a forma do haicai aparecerá na obra poética de Albano Martins, como por exemplo nesta série de poemas:


QUATRO QUARTETOS

1.

Se houve um paraíso, foi
depois, quando a maçã
foi mordida.


2.

A cabeça da lua
entre as coxas.
O sexo do luar.


3.

Solitários, solidários
ambos – Hermes
e Afrodite.


4.

A um passo
da luz fulguram,
grávidas, as espadas.

A primeira composição do conjunto não descreve um movimento ocorrido nas dimensões do tempo e do espaço, mas remete a uma hipótese de passado, redesenhando o mito do pecado original como metáfora erótica – tema desenvolvido nas peças seguintes, especialmente a segunda, a mais concisa e imagética do conjunto: “A cabeça da lua / entre as coxas. / O sexo do luar”.  Na terceira composição, aparecem personagens da mitologia greco-romana – Hermes e Afrodite[3] – que não participam de nenhum acontecimento, apenas expressam, simbolicamente, solidão e solidariedade. O  último poema, com sua imagem das espadas brilhando sob o sol, é a que mais se aproxima da imagética nipônica, apesar da presença do adjetivo que transforma o objeto visível em metáfora, logo, em pensamento. Os quatro poemas breves desta série, embora escritos na forma do terceto (sem divisão métrica), não guardam nenhuma proximidade com o espírito do haicai, forma poética indissociável da experiência vivida no tempo e no espaço.


[1] Paulo Leminski faz uma curiosa analogia a este respeito “Pela brevidade, o haicai guarda certo parentesco com o epigrama, a mais diminuta forma da poesia greco-latina, praticada no Ocidente durante o Renascimento e o Barroco” (LEMINSKI, 1983: 47), opinião compartilhada por José Fernando Castro Branco, para quem “se encontra no epigrama tudo o que de essencial caracteriza o haicai” (BRANCO, 2004: 51).
[2] Albano Martins declarou em entrevista a Baptista-Bastos: “... e se a minha poesia faz lembrar haicais japoneses (que todavia, é bom que se saiba, só tardiamente conheci), deixe-me lembrar-lhe que não são necessárias muitas palavras para dizer o amor, o deslumbramento, a paixão. Basta, às vezes, um oh!, um ah...” (BRANCO, 2004: 51-52).

[3] A mescla de referências na poesia de Albano Martins, como observou José Fernando Castro Branco, é capaz de conciliar “a ocidentalidade e a orientalidade, o espírito pagão e o espírito Zen” (BRANCO, 2004: 52).


quarta-feira, 3 de abril de 2013

RETRATO DO ARTISTA




A pesquisa de linguagem de Antônio Moura move-se em várias direções, incorporando materiais e procedimentos construtivos que dinamizam a escrita e a leitura. Podemos recordar, aqui, dos conceitos da poeta e ensaísta portuguesa Ana Hatherly sobre a “reinvenção da escrita” e a “reinvenção da leitura”, pois é exatamente isto o que o poeta brasileiro nos propõe desde o seu título de estreia, Dez, publicado em 1996, em que o leitor é convidado a percorrer vários caminhos possíveis para a leitura, fruição e interpretação dos textos poéticos. Neste livro, cujo projeto gráfico foi elaborado por Antônio Moura em parceria com o poeta e artista plástico Francisco dos Santos, os poemas são trabalhados em sua dimensão visual, o que verificamos na escolha de diferentes fontes e corpos de letras, na distribuição das palavras e linhas em cada página, na inserção de figuras geométricas, no uso do espaço em branco da página – que evidenciam ecos da vanguarda construtivista – mas também na inclusão de desenhos figurativos caricaturais, como o “cachorrinho da Barbie maconheira” e a página amarela, desdobrável, com um tipo de monstro mitológico ou folclórico que recorda as xilogravuras da arte popular do Nordeste brasileiro.

A imagem é forte sobretudo nos versos – ou linhas – dos poemas, onde a pesquisa vocabular do poeta faz um amálgama de palavras coloquiais e eruditas em construções insólitas, como nesta composição sem título: “A urina perde-se no mar, esquecida / O mar e o céu, o mar e o seu / eterno rancor contra a carne / sem escudos / -- crivada de setas -- “, composição que avança num crescendo monstruoso (no sentido da teratologia) até culminar nessa figura fantástica, digna do Inferno de Wall Street, de Sousândrade: “o monstruoso rosnado / (multilhões de aqua- / leões verdejubados)”. Répteis, ofídios e outras criaturas menosprezadas na lírica clássica aparecem aqui como atores principais, desafiando esclerosados conceitos de “bom gosto” com a brutalidade de passagens como esta: “O sangue / da serpente lambuzando a terra, fundindo / o medo” e “Um A em carne viva / na garganta da noite víbora”, até a “hora-trombeta / a febre do ouro cobrando / a ruína da obra, cobra / que nos destroça e se des / dobra em / nada”.

Em seu livro seguinte, Hong Kong & Outros Poemas (1999), conforme diz Carlos Ávila na “orelha” do livro, Antônio Moura,  “entre versos e não-versos, através de imagens cortantes e violentas (rosas & carnificina), assonâncias e dissonâncias (...) vai montando peças verbais fragmentárias, com um design peculiar que se espalha sobre o branco da página”. A ênfase na geometria, na fala concisa, áspera, recortada, não exclui, porém, um interessante trabalho de ritmo, cheio de nuances e sutilezas sonoras, cujo ponto máximo, talvez seja Outra manhã: “Por detrás do verde monte / (não-verde-oliva / não-verde-musgo / verde-não-verde / não-verde-mar) / por detrás do verde monte / (não-verde-mata / ver de perto: entulho) / por detrás do verde-azinhavrado monte / de sucata, surge sujo / grafitado /  -- cicatrizes, placas, logomarcas”. Os detritos da civilização industrial, os ícones do mercado, da cultura do consumo, aparecem aqui como signos de uma era que já anunciou o “fim da história” e que hoje mergulha num turbulento abismo de incertezas. A poesia de Antônio Moura está inserida no olho do furacão, e registra, em linhas afiadas e precisas, fotogramas do Império da Grande Insanidade. O eu lírico está presente, como na peça Abril, 22, 1999, rememoração lírica do falecimento de sua mãe, ou ainda em O Jardim do Palácio, com suas metáforas eróticas, mas a voz do poeta não se impõe, antes se retira, na maioria das peças, para focar a atenção na materialidade do mundo e da linguagem. Benedito Nunes, no prefácio que escreveu a este livro, aponta uma operação de despersonalização do autor, traço característico da lírica moderna: “Em Hong Kong & Outros Poemas, a despersonalização chega ao auge; o poeta enquanto pessoa se mantém como espectador de um drama cósmico que ele mesmo monta, e de que o dia e a noite, o sol e as estrelas, a floresta e a cidade, o sexo e o amor, inconciliáveis contendores, são as ‘personadramatis’ principais. Vendem-se estrelas no mercado, especula-se com o ouro do sol.”

A despersonalização do poeta e o diálogo estreito com a filosofia são ainda mais presentes no terceiro livro do autor, Rio silêncio (2004), que é um divisor de águas na obra de Antônio Moura.  Se em Dez e Hong Kong o autor privilegiou uma estética concisa, fragmentária, dissonante e imagética, que incorpora procedimentos das vanguardas recentes, em Rio silêncio temos uma poesia mais discursiva, linear, reflexiva, com o recuo da fanopeia, que cede lugar para a “dança do intelecto entre as palavras”.  De acordo com Benedito Nunes, neste livro singular há uma “pluralidade de vozes concorrentes”, que “já não são apenas mitológicas e literárias, mas também filosóficas” (...) Aqui o invisível tem seu lugar certo, seja como riacho ou rio –  ‘o invisível riacho ao encontro de outro’ a lembrar o ‘basruisseaucalonié, lamort’ de Mallarmé – seja como a sombra da sombra que o homem é”. Para ilustrar esta consideração, Benedito Nunes cita um dos mais belos poemas do livro: “considerando isso e lembrando que o dia /  é um punhado de pó de estrelas / que a noite, com sua pá, atira / sobre as pálpebras de sono, / que o céu tem som violeta sobre os / cabelos deste homem que trafega no poente / com cheiro de pólvora nas mãos”. Poesia filosófica, sim, mas que não abandona a alquimia verbal de Rimbaud, no uso de metáforas, sinestesias, paradoxos e outros jogos de linguagem, ela própria um espelho do mundo. Outro poema que se destaca no volume é Quando,  construído numa estrutura de oito dísticos em discurso contínuo, sem ponto final, como se todos os 16 versos fossem um único verso, “em ritmo imprevisível”, a anunciar que “nada ao mundo faltará e nada se / abalará a este pequeno movimento / de asa, que, ao decolar, vibra, / imperceptivelmente, a folhagem”. Este poema recorda não apenas a óbvia herança da filosofia grega (já apontada por Benedito Nunes), mas ainda a linguagem enigmática dos koans, pequenas histórias sapienciais e enigmáticas da tradição zen-budista. Antônio Moura é um poeta que dialoga com a cultura, do Ocidente e do Oriente, de modo inventivo, sem cair no pastiche da erudição ou numa lírica filosofante em que a referencialidade se sobrepõe ao engenho poético.   

A sombra da ausência (2009), título mais recente do poeta publicado no Brasil, é um cadinho de síntese, em que Antônio Moura revisita temas e estilemas de seus três livros publicados, aprofundando a densidade do pensamento e da construção semântica, que fazem do autor um dos nomes mais consistentes da poesia produzida hoje no Brasil. Segundo Júlia Studart, que assina o posfácio da obra, aqui “há uma armadilha com a imagem que a aproxima da vertigem, uma imagem discreta, serena, que parece recuperar uma ancestralidade perdida, uma certa cena mitológica ancestral, mas que é ao mesmo tempo a sua constituição dialética do poema, que só lhe parece servir como uma série de contrários”. Nem sempre, porém, a imagem é discreta nesse livro, talvez o mais pessoal do autor, em que a ausência anunciada no título é depois explicitada numa série de composições cujos títulos são nomes e datas, como Armanda, 1920-2001 e Heloísa, 1963-1977.  No poema em prosa que abre esta série, temos construções quase surrealistas, como no parágrafo inicial: “A morte desmonta relógios. A cada dia, a cada hora, mundo afora, por onde passa. Relógios-pássaros atravessados por dardos – ponteiros -- certeiros – em pleno vôo. Relógios-leões com vastos minutos de juba, nuvens-relógios que brisam um só segundo”.

A composição mais ambiciosa do livro, porém, talvez seja o Monumento a Pascal, escrito em Paris e dedicado a Nilson Oliveira. O poema, dividido em sete partes, começa com estes versos notáveis: “Nunca buscamos as coisas / mas sim a busca das coisas. / O rei está rodeado de gente / que não pensa senão em divertir o rei / e impedi-lo de pensar em si mesmo. / Com o coração oco / e cheio de imundície / corremos despreocupados / para o abismo / -- o último ato, / sempre sangrento, por mais belo / que tenha sido o resto da comédia”, em que o autor vanguardista parodia o conceptismo barroco para expor o seu desencanto com o “desconcerto do mundo”. Antônio Moura é um palimpsesto onde, em cada camada de leitura, encontramos novas e imprevistas referências, que fazem da leitura – e releitura – de sua obra uma operação lúdica, de fruição intelectual.

(Artigo publicado na edição de abril da revista CULT, com fotos e poemas inéditos do autor)

terça-feira, 2 de abril de 2013

EM DEFESA DO ESTADO LAICO!




Caros, foi criada uma petição em defesa do estado laico e no Brasil e contra a aprovação da proposta do deputado federal João Campos (PSDB), integrante da chamada Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional, que permitirá a entidades religiosas questionar leis e decisões judiciais, como as relativas ao divórcio, ao aborto, à pesquisa genética ou à união civil entre pessoas do mesmo sexo, aprovada em 2011 pelo Supremo Tribunal Federal. A nosso ver, essa proposta viola o artigo 19 da Constituição Federal, que no inciso III veda à União, aos estados e municípios “criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”, além de colocar em risco o caráter laico do estado, que por definição é oficialmente neutro em matéria religiosa. Quem estiver de acordo com a petição, publicada na páginahttp://www.peticaopublica.com.br/?pi=ZUNAI, por favor, assine e divulgue junto aos seus amigos, contatos e entidades.

 Há braços laicos,

Claudio Daniel 

segunda-feira, 1 de abril de 2013

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (IX)


Eugênio de Andrade, assim como o poeta-samurai, também recebeu treinamento militar, expressou o sentimento de vínculo com a aldeia natal e manteve sempre a referência à natureza em seus poemas, numa perspectiva espiritual humanista e próxima ao panteísmo. O crítico literário português Arnaldo Saraiva, ao enumerar as leituras que marcaram a formação literária do poeta, considera “quase obrigatório falar nos gregos (os elementos, o paganismo, o heraclitismo, a ‘melancolia estoica’ referida por Jorge de Sena), nos orientais (o haiku, o budismo zen), em Antônio Botto (...), em Rilke (...) e nos espanhóis da geração de 27, em especial Garcia Lorca” (SARAIVA, 2005: 22). Eugênio de Andrade recusou filiação a Presença, ao Surrealismo ou ao Neorrealismo e sua poesia sempre foi eclética e universalista, bebendo nas mais diversas fontes. Desde os seus primeiros textos publicados, entre 1942 e 1945, praticou o poema breve, em especial a quadrinha, mas também composições com cinco, seis ou sete versos, como esta, intitulada Adágio: “O outono é isto – / apodrecer de um fruto / entre folhas esquecido. / Água escorrendo, / quem sabe donde, / ocasional e fria / e sem sentido” (ANDRADE, 2000: 14). Nesta notável composição não faltam a referência à estação do ano, a montagem cinematográfica, o mistério, a indeterminação e o paradoxo. O poema, escrito em meados da década de 1940, é provavelmente anterior à leitura de haicais japoneses por Eugênio de Andrade, o que nos faz pensar, novamente, no caso de Alberto Caeiro, em que houve extraordinária afinidade temática e estética com a poesia japonesa, sem que houvesse uma relação intertextual planejada. Eugênio de Andrade nunca foi um estudioso do haicai, como Wenceslau de Moraes ou Casimiro de Brito, nem um praticante sistemático dessa modalidade poética, mas encontramos poemas breves, inclusive na forma do terceto, em muitos de seus livros, como Ostinato rigore (1964), Obscuro domínio (1971), Véspera de água (1973), Matéria solar (1980), O outro nome da terra (1988) e Rente ao dizer (1992), para citarmos poucos exemplos.  O diálogo consciente que Eugênio de Andrade estabeleceu com o haicai, como nos três tercetos de Rumores de verão, foi acima de tudo estético, e ele não renunciou a sua própria linguagem poética, pouco afeita ao humor e ao coloquialismo, para glosar a irreverência de Bashô (“Pulgas piolhos / um cavalo mija / do lado do meu travesseiro”, na tradução de Paulo Leminski). A afinidade espiritual entre os dois poetas, podemos formular esta hipótese, aconteceu sobretudo na relação com a terra, os animais, as aves e os peixes; a mística do Eugênio de Andrade, assim como a de Bashô, não se situa num plano transcendental, numa zona etérea além das dimensões do espaço e do tempo, mas, ao contrário, ela acontece aqui e agora, em nossa relação com as estações, paisagens, pessoas e objetos. Conforme observou Arnaldo Saraiva, o poeta português “soube ainda revitalizar o veio do chamado lirismo tradicional, inventando um ruralismo e um bucolismo” (SARAIVA, 1995: 22). Sua maneira de olhar para as coisas era quase fotográfica, extraindo o lirismo possível dos objetos tangíveis. Eugênio de Andrade recorre por vezes à alegoria e à metáfora, “mas nem por isso elas deixam de revelar um fulgor concreto e objetivo que só lhes podia conferir a experiência concreta do mundo (empírico), feita em lugares (concretos) que quase nunca são diretamente nomeados” (idem, 37), embora saibamos, pela biografia do poeta e algumas referências históricas e geográficas, a quais cidades ele em geral se refira, como Povoa, Lisboa, Tavira, Porto ou Coimbra – assim como Bashô mapeou o seu percurso como poeta-andarilho em seus diários de viagem, especialmente Sendas de Oku, redigido quatro séculos antes do nascimento do autor português. A rã de Bashô ressoa na lírica de Eugênio de Andrade, viajando no espaço e no tempo, transformada em outros batráquios, como vemos neste Noturno: “Coaxar de rãs é toda a melodia / que a noite tem no seio / – versos dos charcos / e dos juncos podres / casualmente, com luar no meio” (ANDRADE, 2000: xx).