domingo, 26 de junho de 2011

CANTIGA


Penso em você eroticamente.
Até a fabulação
de outra margem,
na estranha habitação onde os números,
pares e ímpares, enlouquecem.

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Um minúsculo leão branco habita a sua fenda.


***

A ferocidade
no limiar da noite,
quando a pele —
desmedida, irremissível,
se projeta em outra pele:
nenhum destino além do nervo tumultuário.


2011

(Poemas inéditos de Claudio Daniel)

quinta-feira, 23 de junho de 2011

ARAMES, RETALHOS

I

esqueletos do nunca
onde o áspero da palavra,
brutais de dezembro.
porque esta não é a minha língua:
retorcidos de mistério,
caranguejo onagro.
onde se desdobra a pedra, onde se
desdobra o nojo desse nunca,
que se anuncia indesejoso:
são palavras em seu verde, em seu asco;
são vértebras de escárnio,
entulhos-de-orelhas à procura da mulher-dos-gatos.
porque nada faz sentido, eu sei,
neste reverso em que me falas,
primitiva, reverberante,
com a nudez que me cala os arames, os retalhos;
com a nudez de um estuque de plantas,
ruidosa, em expansão — e só me resta confessar
os fumos de aranha, inconcluso,
quando indagas sobre o meu labirinto.

2011

(Poema inédito de Claudio Daniel)

UM POEMA DE WALLACE STEVENS

TREZE FORMAS DE OLHAR UM MELRO

1

Entre vinte montanhas nevadas
A única coisa a mover-se
Era o olho do melro.

2

Eu tinha três pensamentos
Como uma árvore
Em que há três melros

3

O melro girava nos ventos de outono.
Era uma pequena parte da pantomima.

4

Um homem e uma mulher
São um.
Um homem e uma mulher e um melro
São um.

5

Não sei o que preferir:
A beleza de inflexões
Ou a de insinuações,
O melro assoviando
Ou o imediatamente após.

6

Sincelos cobriam a longa janela
De vidro barbaresco.
A sombra do melro a atravessava,
p'ra lá e p'ra cá.
A disposição de espírito
Traçava na sombra
Uma causa indecifrável.

7

Oh homens magros de Haddam,
Por que imaginais pássaros dourados?
Não vedes como o melro
Caminha à volta dos pés
Das mulheres à vossa volta

8

Sei nobres tons
E ritmos lúcidos, inevitáveis.
Mas sei também
Que o melro está envolvido
Naquilo que sei.

9

Quando o melro sumiu de vista,
Marcou a orla
De um entre muitos círculos.

10

À simples visão de melros
Voando numa luz verde,
Mesmo as alcoviteiras da eufonia
Emitiriam uivos agudos.

11

Atravessou Connecticut
Num coche de vidro.
Uma vez o medo o trespassou:
Foi quando tomou por melros
A sombra da carruagem.

12

O rio se move.
O melro deve estar voando.

13

A tarde toda era um fim de tarde.
Nevava
E ia nevar.
0 melro estava assentado
Nos galhos do cedro.

Tradução: João Moura Jr.

UM POEMA EGÍPCIO

HINO AO NILO

Festa a ti Nilo quando sobre esta terra
te manifestas
A paz é teu caminho vida vida vida ao Egito
Escondes entre as trevas a tua travessia
Hoje se canta a tua passagem
Onda nos jardins frutos e flores ao sol
A tudo que tem sede vida você vida e vida
Sobre os desertos não amas chover
O Nilo desce e o deus da terra faz pão
Em grãos se abre a deusa e outro deus anima as oficinas

Senhor dos peixes vem além da catarata
Nenhum campo mais o pássaro invada
Criador do trigo ventre da cevada
Em teus tempos perdurem todos os templos
De trabalhar não parem teus dedos
Homem, mulher, mulher, homem quem não morre de fome?

(Autoria desconhecida)

Tradução: Paulo Leminski

POESIA DA ÍNDIA (IV)

coração pelo avesso?

a brisa sopra fogo

o luar queima

corro a cidade toda
como um coletor de impostos

vá a ele minha menina
devolvo-lhe a razão
traga de volta o ciumento

meu senhor branco-jasmim
não suporta

sermos dois

* * *

maya é minha sogra
o mundo meu sogro
três cunhados animais

na cabeça do marido
há só mulheres rindo
esse cara não presta

não suporto a cunhada
vou passar a perna nessa biscate

corneio o meu marido
fodo com deus

(Poemas shivaítas do século XI a. C.)

Tradução: Décio Pignatari (extraído do livro 31 Poetas, 214 Poemas, publicado pela Companhia das Letras, em 1996).

POESIA DA ÍNDIA (III)

não por uma duas três quatro
mas por 84.000 bucetas
eu vim
e vim
percorrendo mundos impossíveis

encharcada
de prazer e dor

quantas vidas anteriores
eu tenha sido

tenha piedade

hoje
só hoje
senhor branco-jasmim

* * *

o que é para amanhã
que venha hoje

o que é para hoje
que venha já

meu senhor branco-jasmim
não me venha com "vamos ver"

* * *

você cavalga montanhas de safira
calçando sandálias de pedra lunar
soprando longas trombetas
quando vou apertá-lo
nos potes dos meus peitos?

senhor branco-jasmim
quando vou juntar-me a você
sem a vergonha do corpo
sem o pudor do coração?

(Poemas de Madeviaca, século XI a. C.)


Tradução: Décio Pignatari (extraído do livro 31 Poetas, 214 Poemas, publicado pela Companhia das Letras, em 1996).

POESIA INDIANA (II)

A tortuosidade da cobra
é reta para a sua cova.

A tortuosidade do rio
é reta para o mar.

A tortuosidade do servidor do Senhor
é reta bastante para o meu Senhor.

* * *

Não entendo nada de acentos e metrificações
nem da aritmética das cordas e tambores
e não distingo um iambo de um dátilo.

Como nada o ofende
canto como gosto
Meu Senhor dos Rios Que Se Encontram.

* * *

Bebo a água que lavou seus pés
Como os restos da oferenda
Digo que tudo é Seu
Bens vida honra
Você é como a puta
que arranca até o último tostão
a que tem direito
e não aceita conversa
ou desculpa
como pagamento

Ó meu Senhor dos Rios Que Se Encontram.

(Poemas shivaítas do século XI a. C.)

Tradução: Décio Pignatari (extraído do livro 31 Poetas, 214 Poemas, publicado pela Companhia das Letras, em 1996).

POESIA DA ÍNDIA (I)

do meu corpo um alaúde da minha cabeça a caixa
de meus dedos faz tarraxa meus nervos sejam fios

então pega e me toca toca em mim
tuas (uma duas três quatro cinco) trinta e duas canções
senhor dos entrerrios

Basavana

Tradução: Paulo Leminski

segunda-feira, 6 de junho de 2011

POEMAS AMERÍNDIOS (III)


POEMA ASTECA

Vivermos, será que na vida se vive?
Não para sempre na terra
só um pouco no tempo.
Jade seja, jade quebra,
ouro, desdoura,
pena de quetzal, pena voa.
Não para sempre na terra,
só um pouco no tempo.

Tradução: Paulo Leminski

(Este mesmo poema foi traduzido por Herberto Helder, confiram no primeiro post da série.)

POEMAS AMERÍNDIOS (II)

POEMAS ASTECAS

CANTO DA SERPENTE DE NUVENS OU DA VIA LÁCTEA

Ela vem das Sete Cavernas,
vem da Região das Árvores de Espinhos.
Eu desci, eu desci e trouxe comigo o meu dardo
feito com uma vara da árvore de espinhos,
desci e trouxe o meu dardo
feito com uma vara de árvore de espinhos.
Desci com o meu laço.
E lacei-a, lacei-a,
e lacei-a, lacei-a,
e está laçada.

Tradução: Herberto Helder

(Do livro Poemas Ameríndios. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.)