quinta-feira, 28 de abril de 2011

RECADO DO ADEMIR ASSUNÇÃO


CADÊ A BOLSA FUNARTE DE CRIAÇÃO LITERÁRIA?

Ano passado, o edital da Bolsa Funarte de Criação Literária foi lançado no dia 12 de abril. Estamos quase fechando o mês e até agora ninguém do Ministério da Cultura falou absolutamente nada sobre a edição deste ano. As informações que chegaram até agora é que todas as ações ligadas à literatura, livro e leitura, vão ser centralizadas na Biblioteca Nacional. Uhn, sei não. Discussão de criação literária junto com mercado editorial é sempre muito complicada. Os interesses não são os mesmos. Por experiência, já deu pra perceber: há aqueles que amam o conhecimento, a literatura (em seu sentido amplo) e há aqueles que amam o dinheiro. Se bobearem, os escritores correm o risco de perder o pouquinho que conseguiram até agora. Se liga, rapaziada. (Publicado no site Espelunca, do Ademir Assunção, http://zonabranca.blog.uol.com.br/.)

UM SONETO DE PETRARCA

Não tenho paz nem posso fazer guerra;
Temo e espero e do ardor ao gelo passo
E voo para o céu e desço à terra;
E nada aperto e todo o mundo abraço.

Prisão que nem se fecha ou se descerra,
Nem me retém nem solta o duro laço,
Entre livre e submissa esta alma erra,
Nem é morto nem vivo o corpo lasso.

Vejo sem olhos, grito sem ter voz;
E sonho perecer e ajuda imploro;
A mim odeio e a outrem amo após.

Sustento-me de dor e rindo choro;
A morte como a vida enfim deploro:
E neste estado sou, Dama, por vós.

Tradução: Jamil Almansur Haddad

UM POEMA DE HERBERTO HELDER

FONTE

VI

Estás verdadeiramente deitada. É impossível gritar sobre esse abismo
onde rolam os cálices transparentes da primavera
de há vinte e dois anos. Quando aperto as pálpebras
ou descubro o teu nome como uma paisagem,
só há grutas virgens onde os candelabros se apagam.
Mãe, pouco resta de ti na exaltação deste mundo. Às vezes
misturas-te um pouco nos terrores da noite ou olhas-me,
vertiginosa e triste,
através das palavras impuras da minha vida
de poeta.

No outro lado da mesa estás inteiramente
morta. Parece que sorris de leve ao meu
pensamento, mas sei que é apenas
a solidão espantada. Como pudeste morrer assim
tão violenta e fria,
quando ainda meus dedos começavam a agarrar-te
a cabeça inclinada dentro
das luzes? Não podes levantar-te dos retratos antigos
onde procuro afogar-me como uma criança
nocturna. E não atravessaremos juntos as cidades redentoras,
perdidos um no outro, sorrindo,
como se estivéssemos debaixo de uma árvore inspirada e eterna.

Conheço algumas cidades da europa e a fantasia vagarosa
da cidade da minha infância.
Tu desapareceste. É um erro
das musas distraídas. Não há guindaste que te levante
do coração das águas,
onde apodreceste envolvida no halo do teu amor invisível,
ou recolhida na tua carne rápida, ou ainda
ligeiramente tocada pelo ardor
de uma existência pura. Conheço grandes casas
onde não habitas, flores que cheiro, tarefas
silenciosas que cumpro humildemente, e luzes,
instrumentos de música,
laranjas que devoro sentindo o gosto da vida, desde a garganta
às mais finas raízes das vísceras. Tu
desapareceste.

Imagino que seria possível tocares porventura
a minha boca. Tocares-me tão viva ou tão misteriosamente
que eu estremecesse nas trevas
da cega inspiração. Poderias estar vergada sobre os meus
ombros, até que as lágrimas
na minha boca se confundissem com a ansiosa subtileza
dos teus dedos, e eu me sentisse
perdido entre os pilares e os túneis das cidades
ressoantes.

-Depois talvez pudesses vir com o rosto um pouco coberto de poeira,
e os olhos delicados de mulher restituída,
e os pés brilhando sobre os caminhos do meu silêncio exaltado,
-talvez
pudesses salvar-me, como uma palavra pode
salvar um pensamento, ou uma
breve música pode acordar do abismo inocente
da noite
um instrumento encerrado em suas cordas extenuadas
- e firmes.

domingo, 24 de abril de 2011

MANUEL BANDEIRA, 125 ANOS
















Marcelino Freire fará uma palestra sobre Manuel Bandeira comentando a biografia do autor, sua época, a importância do poeta pernambucano para a renovação da literatura brasileira e, sobretudo, a sua experiência pessoal como leitor da poesia de Manuel Bandeira. Sexta-feira, dia 29 de abril, das 19h30, na Sala de Debates do Centro Cultural São Paulo. O evento faz parte do ciclo mensal Poetas de Cabeceira. Em maio, Donizete Galvão fará uma palestra sobre Carlos Drummond de Andrade e em junho Marcelo Tápia falará sobre Augusto de Campos.

UM POEMA DE ANDRÉ BRETON

A UNIÃO LIVRE

Minha mulher com o cabelo de fogo de lenha
Com pensamentos de relâmpagos de calor
De talhe de ampulheta
Minha mulher com a talhe de lontra entre os dentes de tigre
Minha mulher com a boca de roseta e de buquê de estrelas de última grandeza
Com dentes de rastro de camundongo sobre a terra branca
Com língua de âmbar e de vidro em atritos
Minha mulher com língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de inacreditável pedra
Minha mulher com cílios de lápis de cor das crianças
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E de vapor nos vidros
Minha mulher com espáduas de champanhe
E de fonte com cabeças de delfins sob o gelo
Minha mulher com pulsos de fósforos
Minha mulher com dedos de acaso e de ás de copas
De dedos de feno ceifado
Minha mulher com axilas de marta e de faia
De noite de São João
De ligustro e de ninho de carás
Com braços de espuma de mar e de eclusa
E de mistura do trigo e do moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e de desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de chaveiros com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com a garganta de Vale d’Ouro
De encontro no leito mesmo da torrente
Com seios de noite
Minha mulher com seios de toupeira marinha
Minha mulher com seios de crisol de rubis
Com seios de espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com ventre de desdobra de leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolada e de giz molhado
E de queda de um copo do qual se acaba de beber
Minha mulher com ancas de chalupa
Com ancas de lustre e de penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e de amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de gladíolo
Minha mulher com sexo de mina de ouro e de ornitorrinco
Minha mulher com sexo de algas e de bombons antigos
Minha mulher com sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e de agulha magnetizada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de madeira sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.

Tradução: Priscila Manhães e Carlos Eduardo Ortolan

sexta-feira, 22 de abril de 2011

ZUNÁI, REVISTA DE POESIA E DEBATES


















Ano VI, edição XXII, abril de 2011

Roberto Piva: poesia e crime ou blasfêmias eróticas heróicas & assassinas, de Ricardo Mendes Mattos


Guerra Dentro da Gente: uma fábula zen leminskiana, de Danielle Marinho


José Agrippino de Paula e seu romance pós-moderno Panamérica, de Chiu Yi Chih


Especiais: A reinvenção do saber pela orgia e pelo riso: o antipensamento de Templiakov



O pensamento alegórico de Paul Valéry, de Claudio Daniel


Et mutabile: uma conversa com Horácio Costa


Contos de Virna Teixeira, Lara Amaral, Daniel Lopes e Célia Musilli



Mostra de Poesia Visual: Colectivo Bu


Galeria: videopoemas de Gabriela Marcondes


Tradução: poemas de Ovídio, Allen Ginsberg, Wallace Stevens, Paul Celan, Octavio Paz, Valério Magrelli, Heiner Muller, Leon Felipe, William Carlos Williams

Zunái, Revista de Poesia & Debates: www.revistazunai.com.
Preço: Inefável; inconcebível.
Onde encontrar: no ciberespaço.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

KOAN


Um lagarto atravessa o jardim do pátio de um aeroporto e avança em direção a uma moça bonita que sorri como se estivesse sonhando. Ou sendo sonhada. Por um homem? Pelo lagarto? Ou por ambos?

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS


Caros, minha pesquisa de doutorado no programa de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo é sobre o tema “A recepção da poesia clássica japonesa no Brasil e em Portugal”. A partir desse tema, desenvolvi um texto curto chamado “Imagens do Japão na Poesia Contemporânea Brasileira” (publicado neste blog), que apresentei como comunicação no I Simpósio Semioartes, realizado em abril no Museu de Arte Contemporânea da USP. Claro que o assunto é amplo e que por estar no início da pesquisa fiquei limitado a abordar questões conceituais relacionadas ao haicai e à filosofia da arte japonesa e os reflexos dessa cultura em nosso Modernismo literário. Não tive tempo hábil de escrever sobre a relação entre a visualidade do ideograma e a poesia concreta, bem como sobre as consequências do diálogo literário entre o Brasil e o Japão na poesia de Paulo Leminski, Alice Ruiz, Wilson Bueno e autores mais recentes, como Rodrigo Garcia Lopes, Maurício Arruda Mendonça e Ademir Assunção. O que publiquei aqui, portanto, foi um texto incompleto, notas fragmentárias de um estágio inicial de pesquisa, mas darei continuidade a essa exposição aqui em futuro breve.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

IMAGENS DO JAPÃO NA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (V)


O Modernismo brasileiro, como vimos, entrou em contato com a poética da brevidade nipônica pela via europeia, especialmente a francesa, desconhecendo a presença em nosso país de um autêntico mestre japonês do haicai: Nenpuku Sato, que desembarcou no Porto de Santos em 1927, assim como milhares de outros imigrantes, para dedicar-se à pecuária e à agricultura. Em sua bagagem, junto às roupas e livros, fotos e recordações, trouxe as palavras de seu mestre, Takahama Kyoshi:

Faça um país de poesia
aonde leve esse navio
vento de primavera

(Tradução: Maurício Arruda Mendonça)

Ao receber a missão de divulgar o haicai no Brasil, Sato foi reconhecido como mestre, pois só um mestre poderia cumprir essa tarefa. Nenpuku instalou-se na Colônia Aliança, em Mirandópolis, no interior de São Paulo; ali, trabalhou na lavoura do café, e depois na criação de gado. Fascinado com a beleza da nova terra, com nossas árvores e pássaros, flores e frutas de estação, Nenpuku criou um novo estilo de haicai. Ele manteve a forma clássica da tradição de seu mestre Kyoshi, mas ao mesmo tempo foi inovador, incorporando cenários e personagens da realidade brasileira, em poemas que falam da família e do trabalho, da natureza e do tempo, como nesta peça, traduzida por Maurício Arruda Mendonça:

Flor do café
lavando essa roupa
flutua mais branca

Em versos de intenso lirismo, vemos a presença do yugen, princípio básico da estética japonesa, que pode ser traduzido como “beleza misteriosa” ou “charme sutil” Por exemplo, nestes poemas:

pássaros migrando
por toda a minha vida
ceifar tudo o que planto

sementes de algodão
agora são de vento
as minhas mãos

É preciso destacar, também, o trabalho de Nenpuku Sato como professor de haicai, no âmbito da colônia japonesa. O poeta viajou por diversas cidades do interior de São Paulo e do norte do Paraná, dando cursos, fazendo conferências e orientando cerca de 6.000 alunos. Criou a primeira coluna na imprensa brasileira dedicada ao haicai, no jornal Brasil jiro, e fundou a revista literária Kokage, que durou até 1979. Considerado um dos dez maiores poetas do gênero pela revista japonesa Hototogisu, Sato obteve reconhecimento do próprio imperador Hiroíto, que ofereceu a ele uma medalha, recusada pelo poeta. Por uma estranha ironia, o inventor do haicai no Brasil sempre escreveu em japonês; ele nunca chegou a dominar o novo idioma, embora tenha insuflado aos ideogramas o espírito do cravo e da canela.


A adaptação do haicai à realidade brasileira não foi algo fácil. Como o próprio Sato reconheceu, logo no início, ele sentiu dificuldade em reconhecer as estações, o elemento essencial para a composição do haicai. Sato chegou a dizer o seguinte: “Levei vinte anos da minha vida para compreender a direção dos ventos, que é completamente diferente da do Japão. Levei vinte anos da minha vida para perceber que o vento sul é frio e o vento norte, quente”. Uma outra dificuldade vivida pelo poeta era o fato de que a maneira como o brasileiro se relaciona com a natureza é diferente daquela do povo japonês. Uma outra frase de Sato: “O japonês é sensível às quatro estações. Ele não pode conter sua emoção. Disto nasce o espírito do haicai. Os brasileiros parecem não perceber estas mudanças climáticas. Encontram-se brasileiros que desconhecem os nomes de flores próprias de cada estação. Brasileiros que sabem o nome de plantas e sentem as estações são pessoas muito especiais.”

segunda-feira, 18 de abril de 2011

IMAGENS DO JAPÃO NA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (IV)


Manuel Bandeira, que traduziu quatro haicais de Bashô a partir de versões para línguas ocidentais, também dialogou com a forma do haicai, como nesta conhecida composição:

HAICAI TIRADO DE UMA FALSA LÍRICA DE GONZAGA

Quis escrever “Amor”
No tronco de um velho freixo:
“Marília” escrevi.

O poema de Bandeira não tem o rigor métrico e formal das peças de Guilherme de Almeida, mas apresenta o signo da estação do ano, ou kigo (“No tronco de um velho freixo”), deslocado do primeiro para o segundo verso, e faz um interessante jogo entre o concreto e o abstrato, a natureza e o mundo subjetivo, que remetem à tradição poética japonesa, além da curiosa aproximação intertextual com Tomás Antônio Gonzaga, autor de Marília de Dirceu. Em outra composição de Bandeira, intitulada Vozes da noite, o poeta pernambucano se aproxima ainda mais da dicção de Bashô:

Cloc cloc cloc...
Saparia no brejo?
Não, são os quatro cãezinhos policiais bebendo água.

O humor, a irreverência, a aparente ingenuidade do poema, que recorda jogos verbais infantis, o uso da onomatopeia para reproduzir o som dos sapos na água (referência direta ao poema de Bashô) e o recorte quase fotográfico dos quatro cães policiais bebendo água indicam a nítida presença da arte poética japonesa, que Bandeira conheceu nas traduções disponíveis na época para o espanhol, o inglês e o francês. É possível verificarmos a presença do haicai em outros autores de nosso Modernismo, como Oswald de Andrade, cuja poesia-pílula materializa o ideal de síntese e concisão, além da forte presença de imagens, da fala coloquial, de paisagens do cotidiano e do humor. Como exemplo dessa lírica miniaturizada, citamos aqui o poema Noturno:

Lá fora o luar continua
E o trem divide o brasil
Como um meridiano

Paulo Prado, no prefácio que escreveu para o livro Pau-Brasil (1924), de Oswald de Andrade, faz inclusive uma referência à “concisão lapidar” do haicai, e transcreve uma composição de três versos em francês, sem mencionar a autoria: “Lê poete japonais / Essuie son couteau: / Cette fois l’éloquence est morte”. A citação de Paulo Prado não é casual, já que os poetas e intelectuais brasileiros tinham como principal fonte de informação literária os jornais e revistas franceses, por onde devem ter entrado em contato, pela primeira vez, com a poesia japonesa, em traduções literais (além da aproximação que se pode estabelecer entre a extrema concisão vocabular do haicai e os experimentos estéticos da vanguarda europeia, em especial as “palavras em liberdade” do futurismo italiano). Guimarães Rosa, em seu único livro de pomas, Magma, datado de 1937 (mas publicado postumamente, 60 anos depois) também apresenta interessantes criações que dialogam com o haicai, como na peça intitulada Pudor estóico:


Acuado entre brasas,
um escorpião volve o dardo
e faz o hara-kiri...

Neste poema, além da brevidade, temos a imagem como força propulsora da ação poética e o diálogo semântico com a língua e a cultura japonesas, pela incorporação da palavra hara-kiri (o suicídio ritual dos samurais, também conhecido como seppuku), que torna mais evidente a intertextualidade. A incorporação de elementos japoneses, chineses, indianos, escandinavos e de outros repertórios é uma constante na criação literária de Rosa, culminando no romance Grande Sertão: Veredas (1945), onde podemos encontrar ressonâncias da saga islandesa, do romance de cavalaria anglo-saxão e da delicada construção de paisagens que remete à lírica tradicional japonesa.

domingo, 17 de abril de 2011

IMAGENS DO JAPÃO NA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (III)


Como traduzir essa vivência estética e filosófica para o universo cultural do Ocidente, em que predominam as distinções dualistas entre matéria e espírito, sentimento e inteligência, natureza e artifício, vida e linguagem? A história das relações entre o Japão e o Ocidente, e em especial com as nações de língua portuguesa, é uma história de fascinação, conflito e estranhamento que começa no século XVII, na chamada era dos ditadores, entre o final do período Ashikaga (1333-1582) e o início do período Edo (1616-1868). Os navegantes, missionários e comerciantes portugueses foram os primeiros ocidentais a entrar em contato com a sociedade japonesa (lembremos que o Japão é citado nos Lusíadas de Camões), e essa aproximação resultou em acordos comerciais, trocas culturais e práticas de evangelização.

A primeira referência ao haicai em Portugal, por exemplo, data de 1604, quando o padre João Rodrigues publicou a sua Arte da lingoa de Iapam, publicada antes da expulsão dos jesuítas do arquipélago japonês, que permaneceu fechado aos estrangeiros até a Restauração Meiji (1866-1912), quando o imperador japonês decide restabelecer as relações comerciais e culturais com a Europa. Somente a partir do final do século XIX a cultura japonesa volta a ser estudada em profundidade pelos portugueses, destacando-se a obra de Wenceslau de Moraes, que realizou várias viagens ao Extremo Oriente e publicou livros como Cartas do Japão (1904), O culto do chá (1905) e Relance da alma japonesa (1928). O escritor português, longe de assumir uma postura eurocêntrica, deixou-se contaminar pelo novo ambiente cultural, adotando inclusive o modo de vestir e os hábitos alimentares nipônicos, além de adotar o budismo zen como prática religiosa. O interesse despertado pelas artes tradicionais japonesas nesse período encantou também os poetas e pintores franceses, em especial aqueles ligados ao Simbolismo e do Impressionismo, o que contribuiu para a divulgação internacional de criações originais da cultura japonesa, como as gravuras coloridas chamadas de ukyo-ê, ou “imagens do mundo flutuante”, as peças de teatro nô, as cerâmicas tradicionais e, a partir de 1905, do haicai, com a publicação de uma antologia de poesia clássica japonesa traduzida para o francês por Julian Vacance.

Esta tradução, assim como muitas outras que se seguiram, nas décadas seguintes, valorizaram sobretudo a descrição de cenários, eventos, personagens, o clima temático e emocional dos poemas, com ênfase nos aspectos folclóricos ou míticos, interpretados à moda ocidental, deixando em segundo plano os elementos estético-formais, reduzidos à forma do terceto de cinco, sete e cinco sílabas. Ou seja, a poesia japonesa é traduzida, inicialmente, na forma de texto, excluindo-se as particularidades de sua escrita, em que a construção do sentido se dá por analogia, pela associação de diferentes ideogramas que reproduzem imagens, e não apenas sons e conceitos. Os ideogramas, dispostos em colunas verticais que devem ser lidos de baixo para cima, da direita para a esquerda, são desenhados com uma intenção estética, não apenas comunicativa. Conforme Kunio Komparu, “poderíamos comparar o enredo” (de uma peça nô) “a um poema do tipo haicai, caligrafado num cartão especial: não se lêem apenas as palavras, mas se apreciam o arranjo e a forma dos caracteres, a utilização das pinceladas de tinta e mesmo os espaços deixados em branco, assim como no teatro nô admiramos não apenas o entrecho, mas o modo de atuar, o canto e o ritmo”. No livro A arte no horizonte do provável, Haroldo de Campos afirma o seguinte: “O elemento visual na poesia japonesa é algo que lhe é intrínseco, que participa de sua própria natureza. Não se trata, apenas, da metáfora visual, daquilo que Ezra Pound denominava ‘fanopeia’ (...), mas de alguma coisa ainda mais essencial, que radica na própria estrutura do kanji, o ideograma chinês que os japoneses importaram para sua escrita na segunda metade do século III de nossa era. O kanji, que evoluiu de uma fase pictográfica (desenho do objeto) para uma notação extremamente sintética e estilizada, é em si mesmo uma verdadeira metáfora gráfica, tanto mais complexa quanto mais ‘abstratas’ as ideias a veicular, pois com este sistema de escrita se podem, como é óbvio, representar não apenas coisas do mundo real, como também emoções, sentimentos etc. (daí a pertinência do termo ideograma, ou representação gráfica de ideias).” Como assinala Haroldo de Campos, “o primeiro orientalista a chamar a atenção dos ocidentais para a importância do ideograma” foi Ernst Fenollosa, autor de Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia, publicado postumamente, por Ezra Pound, em 1936. Neste trabalho, Fenollosa aponta o caráter analógico do princípio de composição do ideograma, afirmando que “nesse processo de compor, duas coisas que se somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação fundamental entre ambas. Por exemplo, o ideograma para ‘convidado’ mostra um homem e uma fogueira.”

O cineasta russo Sergei Eisenstein, em seu ensaio O principio cinematográfico e o ideograma (1929), também aborda o caráter analógico da escrita ideográfica, afirmando o seguinte: “A questão é que a cópula (talvez fosse melhor dizer a combinação) de dois hieróglifos da série mais simples não deve ser considerada como uma soma deles e sim como seu produto, isto é, como um valor de outra dimensão, de outro grau; cada um deles, separadamente, corresponde a um objeto, a um fato, mas sua combinação corresponde a um conceito. Do amálgama de hieróglifos isolados saiu o ideograma. A combinação de dois elementos suscetíveis de serem ‘pintados’ permite a representação de algo que não pode ser graficamente retratado. Por exemplo, o desenho da água e o desenho de um olho significam ‘chorar’; o desenho de uma orelha perto do desenho de uma porta = ‘ouvir’. Mas, isto é... montagem! Sim, é exatamente isto que fazemos no cinema, combinando tomadas que pintam, de significado singelo e conteúdo neutro – para formar contextos e séries intelectuais”. A montagem, inerente ao princípio da escrita ideográfica, também comparece, no plano semântico, num recurso peculiar da poesia japonesa chamado kakekotoba, ou “palavra pendurada”, que Haroldo de Campos define como “um recurso de compressão semântica e ambiguidade poética, algo como a ‘palavra-valise’ de Lewis Carrol e Joyce. Assim, matsubara significa ‘pinheiral’ (matsu, pinheiro; bara, campo), mas, ao mesmo tempo, matsu é um verbo, com a acepção de esperar.” E Donald Keene, citado por Leminski em Matsuo Bashô, A Lágrima do Peixe, faz o seguinte comentário: “A palavra shiranámi, que significa ‘ondas brancas’, poderia sugerir a um japonês a palavra shiráni, que quer dizer ‘desconhecido’, ou ‘námida’, que quer dizer ‘lágrima’ ”. A função do kakekotoba, conclui Keene, “consiste em ligar duas idéias diferentes mediante um giro ou desvio do seu significado próprio”. Fazendo um paralelo com as sagas escandinavas, estudadas por Jorge Luis Borges em Antigas Literaturas Germânicas, poderíamos citar o kenning, tipo bizarro de metáfora em que o sangue é chamado de “água da espada” e o escudo de “lua dos piratas”; porém, a comparação seria imprecisa, pelo alto grau de síntese e ambiguidade da construção poética nipônica. Todos estes aspectos formais, inerentes à língua e à literatura da Terra do Sol Nascente, foram desconsiderados nas primeiras traduções de poesia clássica japonesa, como a de Julian Vacance, e também nas tentativas iniciais de se escrever ou interpretar o haicai em línguas ocidentais, como o português. No livro Trovas populares brasileiras, publicado em 1919, Afrânio Coutinho diz: “Os japoneses possuem uma forma elementar de arte, mais simples ainda que a nossa trova popular: é o haicai, palavra que nós ocidentais não sabemos traduzir senão como epigrama lírico”. A palavra epigrama, conforme diz Massaud Moisés, em seu Dicionário de termos literários, designava, entre os gregos, “toda sorte de inscrição, em túmulos, monumentos, estátuas, medalhas, moedas etc. em verso ou prosa”. A dimensão híbrida do epigrama permite a aproximação com o haicai, que, conforme já vimos, era desenhado num quadro ou inserido num diário de viagem, dialogando assim com as artes visuais e a prosa narrativa. Já a trova, que segundo Moises era sinônimo de cantiga, na Idade Média, e que após o século XVI era equivalente ao que chamamos de quadrinha, também permite um paralelo com o haicai, que se tornou um tipo de poesia bastante popular, sendo praticado tanto nas cortes aristocráticas quanto nos bairros populares e burgueses. No entanto, nem o epigrama nem a trova traduzem, com eficácia, todos os aspectos formais e conceituais do haicai, que é um gênero poético autônomo, sem equivalentes na tradição literária ocidental. No Brasil, houve uma tentativa de recriação do haicai por Guilherme de Almeida, que em 1937 publicou um artigo intitulado Os meus haicais, no jornal O Estado de S. Paulo e dez anos depois o livro Poesia vária, que inclui várias composições em forma de terceto que dialogam com a forma japonesa. O haicai de Guilherme de Almeida tem estrutura métrica rigorosa (e podemos recordar aqui a semelhança entre as medidas japonesas e a redondilha da poesia de língua portuguesa), além de título e rimas, que são inexistentes na poesia nipônica. Podemos observar também artifícios rítmicos e sintáticos que destoam da espontaneidade e naturalidade do haicai, mais próximo da fala coloquial do que da erudita. Vamos comparar um poema de Guilherme de Almeida, intitulado Cigarra, com outro de Bashô, traduzido por Leminski:


Diamante. Vidraça.
Arisca, áspera asa risca
o ar. E brilha. E passa.

(Guilherme de Almesda)


Pulgas piolhos
Um cavalo mija
do lado do meu travesseiro

(Matsuo Bashô)

IMAGENS DO JAPÃO NA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (II)

A criação artística, nesse contexto cultural, não é vista como mera representação da natureza ou de conceitos éticos e metafísicos, mas como modo de conduta, ascese, prática para iluminação espiritual. A esse respeito, vale a pena citar Daisetz Suzuki, para quem “O aspecto prático e racional da pintura (vijnana) consiste no manuseio do pincel, na combinação de cores, no desenho das linhas, em resumo, na sua técnica. A mera maestria da técnica, porém, não satisfaz; nas profundezas de nossa consciência, sentimos que há algo mais profundo a ser atingido ou descoberto. Enquanto não descobrirmos este mistério, nenhuma arte será verdadeira. O mistério pertence ao reino da metafísica, está além da compreensão; surge do prajna, da sabedoria transcendental. Partindo desse ponto de vista, o povo japonês considera cada arte como uma forma de aprendizagem que confere uma percepção profunda da beleza da vida. Pois a beleza transcende todo pensamento racional e utilitário; ela é o próprio Mistério. No Japão, não se estuda a arte apenas pela arte em si, mas também como um meio de acesso à iluminação espiritual. Se a arte não transcendesse seus próprios limites, conduzindo a algo mais profundo e fundamental, isto é, se não se convertesse na equivalência de algo espiritual, os japoneses não a considerariam digna de estudo.” Um princípio essencial da filosofia da arte japonesa é o makoto, que pode ser traduzido “palavra verdadeira”, “essência”, “sinceridade”, “fidelidade”, “dedicação”, “lealdade”, “honestidade” ou “coração”. Esse princípio diz respeito a uma atitude interior, e ao mesmo tempo a um princípio cósmico. É “a lei suprema do universo”, segundo o tratado Chuang-Yung, a essência mais profunda do homem e do cosmo. Um poema tem makoto se ele tem sinceridade, se vem do coração, e não é apenas um artifício ou ornamento. Outro princípio importante é yugen. Yugen significa “mistério”, “charme sutil”. Os dois ideogramas que compõem a palavra significam, respectivamente, mistério e obscuridade. Segundo Darci Yasuco, “yugen possui um significado além das aparências.” “Os fatores primordiais que constituem o yugen são a beleza e a elegância, aliadas à suavidade; o refinamento físico e espiritual.” “São igualmente expressões de yugen a beleza ideal, sublime, com uma aura de mistério”.


Um haicai tem yugen se ele consegue enfocar o tema de modo raro, brilhante, mas com sutileza, leveza, sem ostentação ou vulgaridade. Assim, por exemplo, neste poema de Bashô, que trata do silêncio: “dia de finados / do jeito que estão / dedico as flores”. Ushin refere-se ao poema que consegue expressar uma emoção poética profundamente sentida. O ideograma de ushin é formado por dois kanjis que se traduzem por “ter coração”. Esse conceito, a princípio, denominava um estilo poético em que as qualidades predominantes eram a gentileza e a elegância; depois, passou a designar o poema que está repleto de emoção, como neste haicai de Buson, também traduzido por Leminski: “outono a tarde cai / penso apenas / em minha mãe e meu pai”. Já mushin significa a beleza transcendente e intuitiva, que não pode ser analisada ou explicada. Ela nomeia um estágio de desenvolvimento espiritual em que vigora a pura intuição e que só encontra paralelo na visão unificadora do satori. Por fim, vamos falar de mais dois conceitos essenciais à arte japonesa: sabi e wabi. Sabi se aplica a poemas caracterizados pelo clima de solidão e de tranqüilidade. Um texto tem sabi quando mostra a calma, a resignada solidão do homem em meio à grandeza do universo. Como neste poema de Issa, cheio de recolhimento e interiorização: “Em solidão, / como a minha comida / e sopra o vento de outono”. Wabi também conota solidão, mas desta vez com referência à vida do eremita, do asceta. Designa a tranqüilidade da pobreza voluntária, do despojamento que liberta o espírito dos desejos que prendem ao mundo. A arte que tem wabi trabalha com o mínimo de elementos, apenas com aqueles suficientes para indicar a integração entre homem e universo. É a perfeição do imperfeito, a beleza do assimétrico, humilde, irregular, que corresponde à visão budista da realidade como algo efêmero e mutável. Um exemplo de wabi é o jardim de pedra e areia de um templo em Kyoto. Outro exemplo de wabi consta numa história tradicional, que conta um episódio do mestre zen Riyoki: convidado por um nobre poderoso a mostrar sua perícia na arte dos arranjos florais, Riyoki é recebido no palácio, mas entregam a ele apenas as flores e uma bacia de água, sem os apetrechos necessários para fazer o arranjo. Em poucos minutos, Riyoki cortou as pétalas e as dispôs de maneira harmônica na água da bacia, com elegância e beleza. Um exemplo de wabi em haicai é este poema de Shiki, traduzido por Maurício Arruda Mendonça: “No meio do mato / a flor branca / seu nome desconhecido”.

IMAGENS DO JAPÃO NA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (I)


A poesia clássica japonesa, cujo primeiro registro é a antologia Manyoshu, ou “coletânea de dez mil folhas”, publicada no século VIII, durante o período Heian (794 - 1192), influenciou o processo criativo de autores brasileiros desde o início do século XX, especialmente após a publicação, em 1919, do livro Trovas populares brasileiras, de Afrânio Coutinho, que colocou em circulação entre nós o haicai (ou haiku), poema breve japonês composto de três versos, de cinco, sete e cinco sílabas, sem rimas ou título, geralmente inserido num diário de viagem (haibun) ou numa pintura (zen-ga). Escrito no alfabeto de kanjis, que representam figuras abreviadas de objetos ou conceitos, ao contrário do ocidental, que faz um registro fonético, e desenhado em refinada caligrafia, o haicai não era uma arte exclusivamente verbal, mas uma síntese de texto e visualidade, uma criação intersemiótica orientada por princípios de economia construtiva e alta definição de contornos: uma flor é uma flor, a lua é a lua, um gato é um gato, não há metáforas aqui, mas a representação direta do mundo dos fenômenos, em linguagem substantiva e dicção coloquial, ainda que o inusitado, a ironia, a sutileza e a própria estrutura da língua japonesa criem sensações de estranheza e imprevisto, como no conhecido poema de Bashô: “velha lagoa / salta uma rã / rumor de água”.


Conforme diz Paulo Leminski em sua biografia do poeta japonês, o primeiro verso de um haicai “expressa em geral uma circunstância eterna, absoluta, cósmica, não humana, normalmente uma alusão à estação do ano, presente em todo haicai”. Leminski cita, como exemplos de kigo, o signo da estação ano, versos como “lua de outono”, “vento de primavera” e “tempestade de verão”, que fazem parte de numerosos poemas do cânone japonês. O segundo verso do haicai, ainda segundo Leminski, “exprime a ocorrência do evento, o acaso da acontecência, a mudança, a variante, o acidente casual. Por isso, talvez, tenha duas sílabas a mais que os outros. A terceira linha do haicai representa o resultado da interação entre a ordem imutável do cosmo e o evento. Resultado distinto da conclusão de um silogismo da lógica grega aristotélica. No poema japonês não há ‘logo’, ‘portanto’ nem ‘contudo’. As articulações sintáticas são soltas, ambíguas em suas funções lógicas, abertas, plurais.” Os três versos do haicai, como as três varetas de um arranjo floral, ou ikenana, estabelecem uma relação entre o Céu, o Homem e a Terra, vale dizer, entre o eterno e o efêmero, resumindo a filosofia zen-budista, que enfatiza a mutabilidade e a impermanência de todas as coisas.


O caráter temporário de cenários, personagens e acontecimentos é ressaltado, no haicai e em outras artes tradicionais japonesas, como a caligrafia (shodô) e a pintura (sumi-ê), pela valorização do espaço vazio, do traço imperfeito, inacabado ou borrado, que coloca em primeiro plano o contorno abreviado das figuras, e não os volumes. A tensão entre preciso e impreciso, presença e ausência, concreto e abstrato, real e imaginado é frequente nesse repertório cultural, e deriva das concepções estéticas e filosóficas do taoísmo chinês e do I Ching, o Livro das Mutações, que valorizam a perfeição do imperfeito, do inacabado ou desfeito, índices da fugacidade da matéria e do tempo. A interferência criativa do acaso na elaboração da obra de arte e a ação intuitiva do artista são outros elementos valorizados na arte japonesa, porque remetem à simplicidade, à espontaneidade, ao insight, rompendo com as limitações da lógica rotineira e das convenções formais. Um mestre, no sentido japonês da palavra, não é aquele que maneja com habilidade as técnicas de composição poética, de pintura à nanquim ou de luta com a espada, mas sim aquele que, tendo assimilado essas técnicas, superou o mero domínio formal, atingindo shado, a arte sem arte, ou criação natural e sem artifícios, que corresponde ao ideal zen-budista de desapego e volta à natureza original da mente, que é o estado de vacuidade, ou sunyata, a harmonia que transcende todas as oposições entre sujeito e objeto, o interno e o externo, o efêmero e o eterno.

terça-feira, 12 de abril de 2011

CLUBE DE LEITURA DE POESIA






Caros, no dia 13 de abril, quarta-feira, a partir das 19h30, o poeta, professor e crítico literário Frederico Barbosa conversará com o público sobre a sua carreira literária e fará uma leitura de seus poemas na segunda edição do ciclo mensal Clube de Leitura de Poesia, que acontece no Centro Cultural São Paulo -- Café Graffiti, localizado na rua Vergueiro, n. 1.000, próximo ao metrô. O evento tem entrada franca e não é necessário retirar ingressos com antecedência.

POEMAS DE TRISTAN TZARA

PRELIMINAR

cabelos desfeitos sentem a nuvem de sangue
do teu sangue frágil
lenta ao presságio do amor
lenta
pelas veias rumo à vibração hospitaleira
do teu sangue
lenta
febre frágil hipótese sem amor
dorme sem pálpebras os pés de lado
sobre a escala das costelas a tosse
balbucia sua pequena repetição aritmética


EU ESTOU IMPREGNADO

eu estou impregnado da tua presença
eu me formo em tudo e me transformo
eu me banho no perfume sedentário de teus vinhos
mas mil cabras oscilam no vazio
e se penduram nas paredes do teu canto
quando se levanta a aurora da tua voz
já não há mais a noite pois tudo é consciência
e fervor cintilante
é através de ti que as árvores florescem
e a primavera já desperta tremendo do frio
que passou
todo esquecimento se enraiza no teu riso
fronte erguida eu penetro na floresta estremecida
da tua alegria


AS JANELAS SE ABRIAM

as janelas se abriam sobre uma erva de sonho
confundidas entre os cursos da água
no calor dos tijolos selvagens
encharcavam no vinho
os espessos triunfos de poentes partidos
em breve a dor já não estará viva
e o último luar ceifará e sua emoção
e a dura amizade que uma mola em tensão
ligava à sua sombra - eu era apenas sua sombra-


VIA

qual é este caminho que nos separa
através do qual eu retenho a mão do pensamento
uma flor está escrita ao final de cada dedo
e o final do caminho é uma flor que caminha contigo


* * * * *

na escapada
o mundo
um chapéu com flores
o mundo
um anel feito por uma flor
uma flor flor para o buquê de flores flores
uma cigarreira repleta de flores
uma pequena locomotiva com olhos de flores
um par de luvas para as flores
na pele de flores como nossas flores flores de flores
e um ovo

Traduções : Virna Teixeira

quinta-feira, 7 de abril de 2011

ZOONA, ENCONTRO LITERÁRIO DE CURITIBA

PROGRAMAÇÃO GERAL


SEXTA - 15/04

10h - mostra de vídeo

O mistério da japonesa (2005), de Beto Carminatti e Pedro Merege

Repontual (2007), de Adriano Esturilho e Henrique Faria

Generoso (2007), de Eduardo Baggio

Mar paraguayo (2004), de Nivaldo Lopes

só tenho um norte (2007), de júlia studart, manoel ricardo de lima, demétrio panarotto e alexandre veras


14h30 - mesa-redonda: Escritas – contaminações entre literatura e artes visuais

Debatedores: Joana Corona (Curitiba-PR), Raquel Stolf (Florianópolis-SC) e Manoel Ricardo de Lima (Rio de Janeiro-RJ)

Mediadora: Eliana Borges (Curitiba-PR)



17h - mostra de vídeo

Entrevista com Valêncio Xavier e com Wilson Bueno. Projeto Encontros: Memória da Literatura Paranaense (2004), coordenado por Silvanah Santos


18h15 - breve depoimento de Luiz Carlos Pinto Bueno


19h - performance: Pletórax

Marcelo Sahea



20h - mesa-redonda: Poéticas da simulação e do dilatamento

Debatedores: Ricardo Corona (Curitiba-PR), Victor Sosa (México) e Claudio Daniel (São Paulo-SP)

Mediador: Ricardo Pedrosa Alves (Curitiba-PR)


22h - lançamentos e poema ao vivo

lançamento do suplemento literário vagau

lançamento dos livros e publicações: ZOA'E, de Luis Serguilha, crostácea, de Joana Corona, musga, de Mário Domingues, Poesiaénão, de Estrela Leminski, oAtlas, de Eliana Borges, Rostos e rastros do século XX, de Victor Sosa, os anomenos, de Manoel Ricardo de Lima, Poemas de 3000 anos, de Emerson Pereti e lab #2 - laboratório de crítica de arte.


poema ao vivo: Andréia Carvalho, Adriano Esturilho, Francine Canto, Luiz Felipe Leprevost, Vanessa Rodrigues, Manoel Ricardo de Lima e Luiz Carlos Pinto Bueno (lendo textos de Wilson Bueno).


intervenção: Poluição sonora

Eliana Borges


SÁBADO - 16/04


11h - mostra de vídeo / sessão Valêncio Xavier

O pão negro (1994), de Valêncio Xavier

Carta ao signore Fellini (1979), de Valêncio Xavier


14h30 - mesa-redonda: A prosa do mínimo

Debatedores: Luci Collin (Curitiba-PR), Carlos Henrique Schroeder (Jaraguá do Sul-SC) e Luis Serguilha (Portugal)

Mediadora: Assionara Souza (Curitiba-PR)


17h - mesa-redonda: A prosa de arte e o subespaço urbano

Debatedores: Paulo Sandrini (Curitiba-PR) e Luiz Ruffato (São Paulo-SP)

Mediador: Mário Domingues (Curitiba-PR)


19h30 - performance: tsantsa

Ricardo Corona e Eliana Borges


20h30 - mesa-redonda: Fronteiras linguísticas, em Wilson Bueno, e de linguagens, em Valêncio Xavier

Debatedores: Joca Terron (São Paulo-SP) e Paulo Venturelli (Curitiba-PR)

Mediadora: Joana Corona (Curitiba-PR)


23h - lançamentos e poema ao vivo

lançamentos dos livros e revistas: arquitetura da luz, de Francine Canto, barato, de Ricardo Pedrosa Alves, Eita! (n. 5, dez. 2010) - revista de literatura, Tatuí Crítica de Arte 11, Antônio Maria - crônicas de escritores contemporâneos do Recife, Os justos, de Cristhiano Aguiar, ocupado, de Adriano Esturilho, manual de puts sem pesares, de Luiz Felipe Leprevost.

poema ao vivo: Cristhiano Aguiar, Emerson Pereti, Mário Domingues e Denis Nunes (sound-design), Alexandre França, Sabrina Lopes, Estrela Leminski, Victor Sosa e Luis Serguilha.


DOMINGO - 17/04

11h - mostra de vídeo

preamar (2010), de Joana Corona

FORA [DO AR] - Kit para terceiros socorros (2003-2004), de Raquel Stolf

zero-sufur, de Mário Domingues

pulso descalço, de Glauco Pessoa

medo (fear) (2009), de Marcelo Sahea


14h30 - mesa-redonda: A autoridade do original e a autoria da tradução

Debatedoras: Sabrina Lopes (Curitiba-PR) e Virna Teixeira (São Paulo-SP)

Mediador: Claudio Daniel (São Paulo-SP)


17h - poema ao vivo: Claudio Daniel, Virna Teixeira, Edson Falcão, Leonarda Glück, Rodrigo Madeira, Ricardo Pedrosa Alves, Fernando Karl e Ricardo Pozzo.


A exposição apegos faz parte do ZOONA literária e é uma mostra documental com objetos e manuscritos de Valêncio Xavier e Wilson Bueno, que está no Museu da Gravura Cidade de Curitiba, Solar do Barão, do dia 16 de março a 17 de abril de 2011.

UM POEMA DE ANTONIN ARTAUD

TUTUGURI- O RITO DO SOL NEGRO


E lá embaixo, no pé da encosta amarga,
cruelmente desesperada do coração,
abre-se o círculo das seis cruzes
bem lá embaixo
como se incrustada na terra amarga
desincrustada do imundo abraço da mãe
que baba.

A terra do carvão negro
é o único lugar úmido
dessa fenda de rocha.

O Rito é o novo sol passar através de sete pontos antes de explodir
no orifício da terra.

Há seis homens,
um para cada sol
e um sétimo homem
que é o sol
cru
vestido de negro e carne viva.

Mas este sétimo homem
é um cavalo,
um cavalo com um homem conduzindo-o.

Mas é o cavalo
que é o sol
e não o homem.

No dilaceramento de um tambor e de uma trombeta longa
estranha,
os seis homens
que estavam deitados
tombados no rés do chão,
brotaram um a um como girassóis,
não sóis
porém solos que giram,
lótus d'água,
e a cada um que brota
corresponde, cada vez mais sombria
e refreada
a batida do tambor

até que de repente chega a galope, a toda velocidade
o último sol
o primeiro homem,
o cavalo negro com um

homem nu,
absolutamente nu
e virgem
em cima.

Depois de saltar, eles avançam em círculos crescentes
e o cavalo em carne viva empina-se
e corcoveia sem parar
na crista da rocha
até os seis homens
terem cercado
completamente
as seis cruzes.

Ora, o tom maior do Rito é precisamente

A ABOLIÇÃO
DA CRUZ

Quando terminam de girar
arrancam
as cruzes do chão
e o homem nu
a cavalo
ergue
uma enorme ferradura
banhada no sangue de uma punhalada.

Tradução: Claudio Willer

POEMAS DE ROBERT DESNOS (II)

I – A VOZ DE ROBERT DESNOS

Tão semelhante à flor e à corrente de ar
Ao curso d’água às sombras passageiras
Ao sorriso entrevisto essa famosa noite à meia-noite
Tão semelhante a tudo à felicidade à tristeza
É a meia-noite passada que levanta seu dorso nu acima das
Torres e dos álamos
Chamo até a mim aqueles perdidos nos campos
Os velhos cadáveres os jovens carvalhos cortados
Os retalhos de tecido que apodrecem sobre a terra e o linho
Que seca nos arredores das fazendas
Chamo até a mim os tornados e os furacões
As tempestades os tufões os ciclones
As ressacas do mar
Os tremores de terra
Chamo até a mim a fumaça dos vulcões e a dos cigarros
Os círculos de fumaça dos cigarros de luxo
Chamo até a mim os amores e os amantes
Chamo até a mim os vivos e os mortos
Chamo os coveiros chamo os assassinos
Chamo os carrascos chamo os pilotos os pedreiros e
os arquitetos
os assassinos
chamo a carne
chamo aquela que amo
chamo aquela que amo
chamo aquela que amo
a meia-noite triunfante abre suas asas de cetim e se põe
Sobre minha cama
As torres e os álamos se dobram ao meu desejo
Aquelas desabam aqueles se envergam
Os perdidos no campo se reencontram ao me achar
Os velhos cadáveres ressuscitam por minha voz
Os jovens carvalhos cortados se cobrem de verdor
Os retalhos de tecido que apodrecem na terra e sobre a terra estalam à
minha voz como o estandarte da revolta
o linho que seca nos arredores das fazendas veste adoráveis mulheres que
eu não adoro que vêm a mim obedecem à minha voz e me adoram
os tornados giram em minha boca
os furacões enrubescem se é possível meus lábios
as tempestades murmuram aos meus pés
os tufões se é possível me pintam
recebo os beijos de embriaguez dos ciclones
as ressacas do mar vêm morrer aos meus pés
os tremores de terra não me abalam mas fazem tudo desabar à
minha ordem
a fumaça dos vulcões me veste com seus vapores
e a dos cigarros me perfuma
e os círculos de fumaça dos cigarros me coroam
os amores e o amor há tanto perseguidos se refugiam em mim
os amantes escutam minha voz
os vivos e os mortos se submetem e me saúdam os primeiros
friamente os segundos familiarmente
os coveiros abandonam os túmulos arduamente cavados e declaram que
apenas eu posso comandar seus noturnos trabalhos
os assassinos me saúdam
os carrascos invocam a revolução
invocam minha voz
invocam meu nome
os pilotos se guiam sobre meus olhos
os pedreiros sentem vertigem ao me escutar
os arquitetos partem para o deserto
os assassinos me benzem
a carne palpita a meu apelo
aquela que amo não me escuta
aquela que amo não me ouve
aquela que amo não me responde

14-12-1926

SONHEI TANTO CONTIGO

Sonhei tanto contigo que tu perdes tua realidade.
É ainda tempo de alcançar este corpo vivo e de beijar sobre esta
boca o nascimento da voz que me é cara?
Sonhei tanto contigo que meus braços habituados abraçando tua sombra à se
cruzar sobre meu peito não dobrariam a contorno de teu corpo,
talvez.
E que, diante da aparência real do que me ocupa e me governa
há dias e anos tornar-me-ei uma sombra sem dúvida.
Ó balanças sentimentais.
Sonhei tanto contigo que não é mais tempo sem dúvida que eu desperte.
Durmo ereto, o corpo exposto a todas as aparências da vida e
do amor e tu, a única que conta hoje para mim, eu
poderia menos tocar tua fronte e teus lábios que os primeiros
lábios e a primeira fronte que vieram.
Sonhei tanto, caminhei tanto, falei, deitei com teu fantasma que não
me resta mais talvez, e entretanto, senão ser fantasma entre os
fantasmas e mais sombra cem vezes que a sombra que passeia e
passeará alegremente sobre o quadrante solar de tua vida.


OS ESPAÇOS DO SONO

À noite há naturalmente as sete maravilhas do mundo e a grandeza e o trágico e o encanto.
Nela as florestas se chocam confusamente com criaturas de lenda escondidas nos bosques.
Há você.
Na noite há o passo do caminhante e o do assassino e o do agente de polícia e a luz do revérbero e a da lanterna do trapeiro.
Há você.
Na noite passam os trens e os barcos e a miragem dos países onde é dia. Os derradeiros sopros do crepúsculo e os primeiros arrepios da aurora.
Há você.
Uma ária de piano, um brilho de voz.
Uma porta range. Um relógio.
E não somente os seres e as coisas e os ruídos materiais.
Mas ainda eu que me persigo ou sem cessar me ultrapasso.
Há você a imolada, você que eu espero.
Por vezes estranhas figuras nascem no instante do sono e desaparecem.
Quando cerro os olhos, florações fosforescentes aparecem e murcham e renascem como carnosos fogos de artifício.
Países desconhecidos que percorro em companhia de criaturas.
E há você sem dúvida, ó bela e discreta espiã.
E a alma palpável do espaço.
E os perfumes do céu e das estrelas e o canto do galo de há 2 000 anos e o choro do pavão em parques em chama e beijos.
Mãos que se apertam sinistramente numa luz baça e eixos que rangem sobre estradas medusantes.
Há você sem dúvida que não conheço, que conheço ao contrário.
Mas que, presente em meus sonhos, te obstinas a neles se deixar adivinhar sem aparecer.
Você que permanece inapreensível na realidade e no sonho.
Você que pertence a mim por minha vontade de possuí-la em ilusão mas que não aproxima seu rosto do meu como meus olhos fechados tanto ao sonho como à realidade.
Você que a despeito de uma retórica fácil em que a onda morre nas praias, em que a gralha voa em usinas em ruínas, em que a madeira apodrece rachando-se sob um sol de chumbo.
Você que está na base de meus sonhos e que excita meu espírito pleno de metamorfoses
e que me deixa sua luva quando beijo sua mão.
À noite há as estrelas e o movimento tenebroso do mar, dos rios, das florestas, das
idades, das relvas, dos pulmões de milhões e milhões de seres.
À noite há as maravilhas do mundo.
À noite não há anjos da guarda, mas há o sono.
À noite há você.
No dia também.

Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho