DONA VIRGO (FINAL)

O mund’ é torvado e, de pran, cuidamos que quer fiir. Tudo treva, pó, tudo triste treva, só o solo seco, chão sem erva; estou só, sem Deus, sem dom, sem nada. Eu, Gil Eanes, em Finisterre tendo chegado, findo o canto, digo adeus, sem pranto. Vem, esposa-irmã, filha-esposa-irmã, ama de minha alma, agora é o começo do fim: noite em noite dissolvida, consumida, fado todo consumado, saga contada, fava masca-da, sabre partido, dados lançados, ciclo cumprido, caso encerrado: o fim da picada. Aqui é o fim do mundo, Fisterre, Finis Terrae. E agora, o que dizer de mim, de nós, do irado sultão otomano e sua airada odalisca, airosa corista, toda ajaezada, flores de amaranto nos cabelos, escura écharpe de zibelina no pescoço de passarinha? O que dizer do tempo passado, escuna azinhavre no mar de marfim, tempo de pletora, de carmim, de índigo gozo em leito alecrim? O que falar daquilo que foi flor, fera, faca, e hoje é fezes, menos que fezes, reles nada? O que pensar, após tanto pesar? O que dizer do que em mim fizeste, de como me feriste, e sugaste, sem lagunas de lágrimas, escumas na face, como algures o orvalho na nervura das folhas?

Os óio da cobra verde, hoje só que arreparei, se arreparasse há mais tempo, não amava a quem amei. Mas agora, pelo sim, pelo não, tanto faz, tanto fez, que não vales um conto de réis, um vintém, valete de ouros ou sete de paus, e sei de outras cem, ali além, que valem mais. E não cortarei os pulsos, e não beberei veneno, e não poderei apertar contra as têmporas o gatilho. Aqui é o fim do suplício, James Finícius, e voltarei ao velho lar, ao início, livre do vero vício, do pubendo precipício. Sim, santa, voltarei a Sampa, de cara lavada, barba cortada, de terno e gravata, e, new yuppie third world, poderei abrir um bingo, bordel ou boteco, e gastar a grana na gruta da Greta Garbo de plantão: Sharon Stone, Demi Moore, Winona Ryder, ok, gurias, podem vir, façam fila, uma por vez, a meus braços amargos. Que tal? Poderei, ainda, talvez, virar um boêmio francês, ou bardo inglês, ou sábio chinês, usar saiote escocês, beber minha urina, fazer-me de poeta, de profeta, declarar-me o messias, virar-me do avesso, até tornar-me a sombra de mim. O que achas? Em nada mais creio: de tudo e de todos me despeço, e digo apenas isto, epitáfio do que fui: um homem sincero, de poucos amigos, que escreveu seu nome nas areias de Vigo. Sim, é o fim. Réquiem. Descanse em paz. toquem os sinos. Close, ação!


* * *
Intermezzo: E depois, ah, sim, meu amigo, e depois, o que houve em nossa história? Onde eu estava? Já perdi o fio da moela, da medula, da medusa, da meada, fio de Ariadne no labirinto do minotáurico racconto, texto bestial de autor animálico olímpico. Mas logo eu me acho, e junto os meus cacos, lascas, trapos, tragos e trecos e retomo o conto porque eu quero contar. O conto é o osso da prosa, é osso e sangue, carne e sangue, é só sangue, célere no corpo da prosa, irrigando as palavras-células, suas inervações. O conto é o canto que não se canta, que só se ouve sem ouvir, música de papel que encanta sem cantar. Sim, Don Pelegrin, pouco fiquei em Finisterre; nem quis ver o farol, as altas dunas e a pedra de abalar. Entejado com tudo, de tudo enojado, segui para Madri, de carro, com o amigo Arnaldo Gandolfi, que encontrei por acaso e me ofereceu carona, para por fim ao caso. Lá chegando, comprei passagem para o Brasil, terra de palmeiras e papagaios, de tristes heróis e larápios. Antes de embarcar, porém, fui a um cibercafé, próximo ao aeroporto, tomar uma boa cerveja irlandesa, e, por um cômodo vício de recirculação, acessei a internet e abri a minha caixa postal, onde li um e-mail da beladona, que por mim esperava em vicus sacorumdixit a diva — por astúcia de Carlos Cazali, diabos o levem ao décimo círculo do Hades.

Arrenego de quem diz que o nosso amor se acabou, ele hoje está mais firme do que quando começou. It’s a long way. Só vi o avião decolar após a quarta dose, meu amigo, da janela oval da taberna, e pensei em suas asas flamejantes de sol, em seu caudaloso rastro no céu, no denso cortejo das nuvens. Paguei a garçonete, deixei o jornal amassado sobre a mesa e corri para chamar um táxi. Já no centro de Madri, fiquei só o tempo preciso para alugar um carro, comprar comida e um par de brincos de prata, mimo para a mina mimada. Tomei a estrada, em seguida, e, caminho inverso, reverso da moeda, avesso do vento, pensei: aquele que ama, na face da amada vê o divino, e, em amá-la, ama o divo, Odin-Osíris-Krishna-Oxalá, e se diviniza. Deus é tudo só amor. E assim me guardei.


* * *

Gran prazer viron os olhos meus. O ponto de partida é o ponto de chegada. Voltei a Vigo, meu amigo, e lá vi Vera, a moçela alvura-densa-escura, olhos vivos de gazela, seu tênue torso em fulvo quimono sobre a tanga. Ah, moça-mel, dama das miçangas, dos muiraquitãs, mascando mariscos na praia cor de prata sob o céu nimboso. E nós olhamo-nos, olhar molhado, e éramos olhos sem pés nem bocas, depois fomos mãos e braços sem olhos, e, por fim, fomos apenas lábios. Ao rugir da procela, caminhamos pela orla, e segui a leona hermosa, de longa sedosa cabeleira, até o seu chalé perfumado a almíscar, máscara balinesa na porta, luminária de crochê no teto e largo leito acolchoado. Ali entrelaçados, as cortinas cerradas, o quimono no biombo de treliças, eu e ela fomos uma só carne, um só espírito, ao som das ondas do mar de Vigo.

terça-feira, 29 de junho de 2010

MÚSICA CLÁSSICA JAPONESA (I)

Dueto instrumental de shamizen (viola clássica japonesa) e shakuhachi (flauta de bambu).

DONA VIRGO (V)

Quand’eu un dia fui en Compostela en romaria. Vaguei por veredas e várzeas seguindo a concha vieira, e vi mantos de verde relva, rebanhos e alvoradas, ora um riacho, um lagarto, um cão, os olhos prenhes de beleza e beleza. Após muito vagar, o corpo exaurido, cheguei à terra da Via Láctea, São Tiago do Campo da Estrela; e só então chorei, Don Pelegrin. Recordei a saga do apóstolo, decapitado por Herodes Agripa; seu corpo foi levado da Palestina para as terras da Ibéria, em barca marmórea, por Atanásio e Teodoro, e sepultado no bosque Libredón. Ali restou oculto, até que uma chuva de estrelas guiou Pelayo, o eremita, ao sacro túmulo, no século oitavo. Sim, chorei, mas logo senti estranha felicidade, feita de matéria sem tempo, impalpável; e assim fiquei, por alguns minutos, estático e mudo. Depois, fiz uma pequena refeição, e segui até a Praça do Obradoiro, onde avistei a catedral, o verbo feito carne feito pedra, o eterno em rocha temporal manifestado. Entrei pelo alto pórtico, sentei-me no banco, e era meio-dia; o botafumeiro incensava o ar com um odor de beatitude e martírio, enquanto o padre, em voz monótona e turva, recitava, em vernáculo, a missa dos peregrinos. Pensei no Codex Calixtinus, de Aimeric Picaud; numa das páginas proféticas do Apocalipse; nas manhãs de Pontevedra; nas ondas do mar de Vigo; no rosto oval da núbil núbia; numa fuga de Bach; e nas linhas finais do Fédon de Platão. Eu já sabia, em meu coraçon, que não haveria paz para minha alma, e que tudo fora em vão. Pouco depois, ao falar com padre Guedes, tive a certeza: Vera nunca estivera em Campus Stelle. Tudo reles nada, noves fora, zero. Andei pela cidade por horas, vendo sem ver o Palácio do Ayuntamento, o Hospital de los Reyes Caóticos, hoje um parador, as pequenas casas baixas, as pombas e os niños rosados de largas bochechas. Sabe o que penso, Don Pelegrin, amigo João Airas? Tutti é burla nel mondo. Tudo é sonho. Somos cegos e loucos, tolos mancebos sem siso, sem eira nem beira. Vivemos de lucro em logro, de mágoa em malogro. Só a dor é real. Deus? Não creio. Só no demo. Que está aqui, na rua, no meio do redemunho.

En santiago, seend’ albergado en mia pousada, chegaron romeus, preguntei-os e disseron: — par Deus, muito levade-lo caminh’ errado, ca, se verdade quiserdes achar, outro caminho conven a buscar, ca non saben aqui dela mandado.

Onde está o teu paradiso, jardim edênico, Shamballa, Vrajabhumi, Vrajadhama? Onde está o teu Brahma, em que lótus de áurea flama? Som de búzios, luz de prata em prata refletida, seda rara em seda entretecida, o mais puro branco em rosa infinita; onde está a tua terra prometida? Que rios a banham? Qual Nilo, Ganges, Tigre ou Eufrates? Em que prística era primeva estão o tonto Adão e sua velha Eva, Noé, sua barca e a arca da aliança? Onde as ninfas do céu e suas danças? Tua aérea Meca diamantina está na mente de Deus: Qual Deus? E se o divino não há? Nele já não creio, pois negou-me a minha dona:

Deus nunca mi a mi nada deu e tolhe-me bõa senhor: por esto, non creo en el eu nen me tenh’ en pecador, ca me fez mia senhor perder. Catad’o que mi foi fazer, confiand’ eu no seu amor!

Tudo é névoa, nébula, néquia de nadas, nicas de nuncas, fábula, fumaça de fervura ou coisa alguma. E você, o que me diz, Don Pelegrin? O quê? ahn? êee... ah, louco, o que ouço! O que é isso? Esse dizer entre o roxo cetim, o ouro fosco e o açafrão merino? Esse falar de fábula, tão mascavo, tão melaço de cana? Sua língua é polpa de fruta, gomo de tangerina, mar de Sargaço onde me perco. Mas eu insisto, resisto e recuso teu canto-de-engano, sereia-só-escamas! Teus sofismas? Inumeráveis; não estrelas trêmulas, mas negras listras em pele brônzea de fera. E não tens o rubor violeta nas faces, nem sulcos no rosto albino que me olha. não, não creio em tua fala, amigo João Airas, Don Pelegrin! Ah, encantador de serpentes! Olhos-de-flama-e-gume! Mas vá em paz, irmão. Dei gratia. Salam, shalon, shante. Se Deus não me der a parda leoparda, gata galatéia de lácteos túmidos mamilos, metade da minha alma, nele não crerei. E mais não digo. Vou seguir, danado, penado, condenado, até o limite da terra, que, diziam, é plana como um prato, circundada de águas por todos os lados. Na manhã seguinte, caminhei, e caminhei por dias e dias, até Finisterre, a fronteira do abismo, para olvidar quem me olvidou (e como me olvidaste!).

DONA VIRGO (IV)

Céu pavão-alvura-esperma. Casas baixas e antigas ao longo do caminho. Moças galegas de xales e lenços sobre as madeixas, manadas de bois, pedras, arbustos, um pássaro azul-safira, odor de estrume, não toca um sino. Aqui é Pontevedra, meu amigo, lugar de maravilhas várias, valha-me a virgem, milagres ou miragens, tão belas e raras como a pena do faisão, o reflexo da lua em espátula de prata ou máscara chinesa em verde jade esculpida. Após léguas, a língua já seca, o corpo à míngua, cheguei à Vila Vasco, mio caro fratello, onde vi um velho cego tocando mudo violino, seus olhos brancos, em pele negra rugosa, plenos de solfejos e melancolia; crianças viçosas de rubor violeta e longos cachos corriam atrás de um porco em latão coroado; e um rapaz sandeu, quase nu, com tonel-capacete e vassoura-alabarda, terçava armas com sua sombra. Ninguém dizia meia palavra, e eu, mudo fingido, não disse patavim. Tendo encontrado — Cristo louvado! — um bom albergue, por puro acaso, fiz menção, com sinais, do que queria: e recebi, para o almoço, um prato de feijões e legumes com forte pimenta, grossa fatia de pão e vinho. depois, deitei-me na dura cama de ferro e li mais alguns trechos da Imitação de Cristo, até a hora de dormir:

O verdadeiro sinal de virtude sólida e de grande merecimento é combater os movimentos desordenados da alma, e desprezar as sugestões do demônio. Não te perturbem as imaginações que te ocorrem de qualquer espécie que sejam.

No dia seguinte, fui à praça, e lá vi mulheres que bailavam como loucas no gramado; um palhaço vestido de frade com peruca de mulher que virava cambalhotas; e um pipoqueiro ruivo que imitava um macaco. Nos degraus da igrejinha, velhas beatas surdas e mudas recitavam sem voz suas preces, e num banco de pedra da praça um senhor inglês de terno xadrez, bigodes pequinês e cachimbo sherloquês lia o jornal em branco com o seu pince-nez. E eu pensei: sim, pirei, estou maluco, doidão, gira, dedéu, insano. o que é isso tudo? Que diabos!? Nisso, um fox terrier mordeu a batata da perna do velho cego, que o espancou com o violino; Sherlock Holmes fez strep-tease, ficou nu para as beatas, o palhaço vestido de frade foi dançar com as moças e o pipoqueiro de repente ficou com os olhos serenos de quem alcançou a iluminação. Levantei-me para voltar ao albergue quando a niña judia de Tétuan passou por mim, numa metálica Yamaha verde-escura, e fez sinais para que eu sentasse na garupa. Fiz isso, sem saber por quê, e ela voou na estrada, como o arcanjo da trombeta do juízo final.

Ah, maga magana, mana marrana, onde me levas, madre magriça, mina macanja, onde me levas, mirrada morgana? Vais a Belém, a Jerusalém? Talvez a Jafa, Haifa, Arava, Mizpe Ramon? Baruj ata Adonai, eloheinu melech aulam, acher quidechanu vemits votab, benatanlam Torat hemed, baruj ata Adonai, Adonai ehad. Ah, meraviglia! Miraculo! Estamos chegando, enfim, signorina? Diga para mim, moça-de-jasmim! Seus longos cabelos, como revoam ao vento! Baruj elohenu, baruj adonenu, baruj malkenu, baruj moshienu, atau elohenu, atau adonenu, atau malkenu, atau moshienu, atau sheiktidu, abotenu lefaneha, ektoret azamim. Ah, morena macabéia, meninha da Judéia, herética hebréia, levas-me ao Jordão? Ou ainda, quem sabe, ao rei Salomão? Salame, salaminho, salmão, Josafá, Josafá, e a rainha de Sabá! há, há, há! Seu cavalo fogo-fátuo, faceira-fogosa-feiticeira, vai ao reino de Judá? Shema Israel, Adonai eloheinu, Adonai ehad. Então, mio caro fratello, ela parou sua macchina malva móbil, bem em frente a uma velha capela. Apeei, o sol a pino, e entrei no lugar santo, na pedra viva de São Roque, Kyrie eleison, Chryste eleison, Kyrie eleison. Mal pude ver suas imagens e vitrais, amigo romeiro, e digo de boa fé: ao fundo, sobre o altar, per nostro senhor, vi a cabeça do Salvador, lacerada de espinhos, inclinar-se à direita. Pater noster qui est in coelis, santificetur nomem tuum. Caminhei nessa direção, o coração tumultuado, os membros trêmulos, e encontrei, numa meseta de mogno, um arcaico Macintosh, que irradiava rubra luciferina auréola. sentei-me em frente ao mefistofélico bruxedo, inicializei, e, para meu espanto, surgiu a seguinte mensagem, na tela de cristal líquido:
o G r Q n D z

Estava em sonho? Bêbado sorumbático, sonâmbulo lunático? Num átimo, sem pensar, apenas abri o envelope, prenda cabalística da ninã de Tétuan e retirei o talismânico CD; coloquei-o no drive e comecei a limpar a winchester do vírus. And has thou slain the jabberwock! Come to my arms, my beamish boy! O frabjous day! Callooh! callay!

— Ah, júbilo de júbilos, alegria-oh-aleluia, está morto o Ogre-que-Não-Diz!

— Foi você, meu rapaz?

— O quê?

— Ah, não! ele?

— É, sim, ah, esse tem culhão!

— Parabéns, querido! Vá com Deus. Passe bem.

— Esse é o herói? Duvido.

— Não foi, não.

— Esse João-ninguém, brasileño, fracote, Zé-bosta, borra-botas?

— Não foi, não!

— Foi, eu vi!

— Fui eu, eu, eu, que matei o Ogre-que-Não Diz!, disse um garoto imberbe.

— Meu filho, ah, filho meu!

E todos falavam, gesticulavam, cantavam e rezavam, e muitos agradeciam a São Roque e a São Tiago. Quando pude ver-me livre da turba, de seus dentes amarelos, de seus olhos baços e bocas tortas, de suas toucas, lenços e cachimbos, de seus grossos dedos que tocavam em minhas roupas, como quem toca um grifo, elfo, silfo ou basilisco, saí correndo, o mais célere que pude. foi então que aconteceu uma aventura de maravilha, mas isso eu não vou contar. Digo apenas que parti de Pontevedra, e voltei a pôr o pé na estrada, rumo a Compostela.

domingo, 27 de junho de 2010

CONVITE À VIAGEM

Poema de Charles Baudelaire, Invitation au voyage foi musicado por Henri Duparc, compositor francês da segunda metade do século XIX. Há uma bela tradução desse poema por Guilherme de Almeida, incluída no livro Flores das flores do mal.

DONA VIRGO (III)

Non me posso pagar tanto do canto das aves nen de seu son, nen d’amor nen de mixon, nen d’armas. Ah, Afonso X, que bem sabia trobar! Cantigas compôs à Santa Maria, Don Pelegrin, a la Madona col bambino, mulier vestida de sol, coroada d’estrelas; e, por sua fé, do mouro tomou Granada. Eu não sei mais cantar, meu amigo, e por que cantaria? Já eu non ei por quen trobar e já non ei en coraçon, por que non sei já quen amar. Sem a fremosa dama louçana que me doma, zero a soma, perco tudo e resto mudo. Pensei: que fazer para limpar o coraçon, para merecer o amor da núbia, o nímio dulce amor da minha núbil fada? E, per Nostro Senhor, resolvi caminhar até Santiago, seguir a ninféia ribeirinha, madona oriana négresse, com sincera devoção, com délicatesse, pois nada mais desejo, digo em minha prece, além do olhar da bela, que bailou entre as flores. Com’ antr’ as pedras bon rubí sodes antre quantas eu vi. No dia seguinte, pus-me na estrada, em direção a Pontevedra; e lá aconteceu algo estranho e raro, que non direi, que non direi, que non direi.

* * *

Peç’eu tant’a nostro senhor que mud’êsse coraçon. E caminhei sobre pó, paus, pedras, galhos, folhas, fezes, orando, cantando e meditando, assim: Pater noster qui est in coelis, santificetur nomem tuum, adveniat regnum tuum, fiat voluntas tua, sicut in coelo et in terra, pelo bem de minha alma, para o perdão de meus pecados. Após muito andar, Don Pelegrin, fui ter a uma aldeia curiosa, cujos moradores eram surdos ou mudos, pois dizer nada diziam, nem pá nem bá, e, parece, não ouviam, nem sequer me viam; só me restava conversar com as árvores altas. Então continuei a viagem, meu amigo, e, na estrada enlameada, ouvi um som atrás de mim; virei-me, e vi um cervo com chifres de prata correr atrás da moita. Segui o animal, mas, em seu lugar, achei um eremita, Matusalém em rugas, trapos em nesgas de tufos, de finos cabelos brancos, a coxa esquerda chagada, e ele me olhou sem dizer nada. Sem saber o seu nome, abri minha sacola, para fazer-lhe um curativo, quando o anacoreta desapareceu, e, em seu lugar, surgiu uma senhora linda, de loura e longa cabeleira, angélica aparição de nívea face, que me disse assim:

— Dom Gil, vá em paz, que o abençoe Nosso Senhor. Evite o Ogre-que-Não-Diz, a fera-oh-fúria.

Dizendo isso, a alva dama anja sumiu, e deixou-me assombrado. Por dias e noites, em veredas várias, andei e andei, sem nada encontrar, às vezes dormindo sobre o ventre da terra. Certa manhã, após lavar-me no riacho, encontrei uma niña judia de Tetuán, que assim cantava:

Desde hoy la mi madre, la del cuerpo lozano, tomeris vos las llaves, las del pan y del vino. Que yo irme queria a servir buen velado, a ponerle la mesa, la del pan y del claro. Para hacerle la cama, y para echarle a mi lado, y atana y tanaora que sea en buena hora. Y atana Y tanataile que sea en buen simane.

Interpelei a dona hebréia, dama macabéia, sobre o seu triste cantar em tão bela modinha, e ela me respondeu:

— Eu sou Rebeca, a que casou com Salomon, o cantor, filho de Natanael; a niña lozana de longas tranças, que sabe fiar e cozer. Ai, caro senhor, o meu marido está mudo! Ele não mais pode cantar os meus olhos, os meus cabelos, ao som de guitarra e tambor, nem sussurrar em meus ouvidos, à noite, doces palavras, enquanto aperta os meus seios, nem pode ouvir o que lhe digo, nem sequer ler a Torá, na sinagoga, nos shabats; ai, meu senhor! Não vá ao bairro Moureira, à capela de São Roque, pois esse lugar é o covil da besta olhos-de-chama, do Ogre-que-Não-Diz, que a todos encanta e engana. Por onde ele passa, os homens ficam mudos, as palavras somem dos livros, páginas e páginas em branco; os cães não ladram, os pardais não chiam, os corvos não crocitam, os burros não zurram, as ovelhas perdem o balir. Tome seu caminho, se és judeu ou gentio, e vá para longe, pelo seu bem e de sua amiga. Dito isso, ela voltou a cantar sua toada, depois lavou os seus cabelos, e, sem me dizer outra palavra, partiu, como se não houvera nada. Tentei chamar a moça judia marroquina, pois ela esquecera, ou deixara, uma carta quadrada sobre a pedra em que se lavara; como não me ouvisse, guardei a prenda, caso a visse novamente, e voltei a caminhar pela estrada. O sol arde, arde como viva brasa, os pés e as costas dóem, e, para me distrair, e alimentar a alma, tirei do bolso a Imitação de Cristo, de Kempis, o cônego regrante de Santo Agostinho, e fui lendo ao acaso, em voz alta, enquanto andava.

Considera o que te dizem, sem se importar com quem o diz. Os homens passam, mas a verdade do senhor permanece para sempre (Sl 38,7; 116,2). Deus fala-nos de diversas maneiras, e por mui diferentes pessoas. (...) Pergunta de boa vontade e ouve em silêncio as palavras dos santos; e não desprezes as sentenças dos velhos, porque não as dizem sem causa.

DONA VIRGO (II)

Bernaldo, Bernaldo de Bonaval, o segrel, já senil, louvara em verso dama de má fama: a dona que eu am’ e tenho por senhor amos-trade-mh-a deus, se vos en prazer for, se non dade-mh-a morte. Quem ama a alma evita a lama, mas, no amor às donas, tudo é cegueira, loucura, pandemônio. Só o coraçon pensa, mal de Provença, e o dom da dor assoma, purga e adensa. Pera que demo queredes puta que non á mester?, cantou em escárnio Pero da Ponte, o infançon, que aprendera a arte de Bernaldo, mestre do bom cantar. Pero da Ponte, êh, ah!, o bardo bastardo, bebum blasfemo, femeeiro, faminto, fementido, Pero pervertido, é dele que fala Afonso X, o sábio, que o expulsou de sua corte por ser (segundo se dizia) mau poeta, ladrão, bêbado e assassino: En mao ponto vós tanto bevestes. Mas, quê! O senhor acredita? Pero, puro, não, mas poeta, sim, e dos bons: abusava do copo? Não sei dizer, mas ele assim trobava, meu amigo: senhor do corpo delgado, en forte pont’ eu fuy nado! que nunca perdi cuydado nen afan, des que vos vi. En forte pont’ eu fuy nado, senhor, por vós e por mi!

Enfim cheguei ao hotel, Chastel D’Avignon, mon chévalier, todo nanquim-espelhado, em modern style, o luminoso alumínio e o opaco acrílico em sua entrada, sauna-piscina-american bar. Fui ao restaurante, La Cuisine de Lacan, e pedi arroz integral, sopa de legumes, torta de queijo e um suco de uva espumoso. No salão, adocicado por Vivaldi, vi turistas suecos, japoneses, brasileiros, eslovacos, poloneses e uma alemã de seios pontudos em saia de couro dark e cabelos cor-de-rosa que lia Schopenhauer. Depois de jantar, sem sono, resolvi dar uma volta pela cidade. Fui à Taberna Montemor, meu senhor, branca casa de pedra erma do tempo de el-rey Dom Afonso, onde se bebe boa cerveja em mesetas toscas circundadas por azulejos azuis, decorados com motivos de marinheiros e monstros do mar. Ali encontrei Carlos Cazali, o fotógrafo, e perguntei a ele se vira a moçela, a meninha de olhos verdes:

Digas-me mandado de mia senhor, ca se eu seu mandado non vir’, trist’ e coitado serei; e gran pecado fará; se me non val. Ca en tal ora nado foi que mao-pecado! Amo-a endõado, e nunca end’ ouvi al!

Ele me respondeu assim:

— Vera? Oh, sim, Vera Veiga, a irmã siamesa de Veneza, top model da Stylus, ela tirou fotos em Vigo, para uma revista, mas isso foi há dois dias, e já foi embora, meu caro.

— Ah, dame sans merci, magra maga mulata, maja naja noir em boá de marabu, em popeline, cambraia, musselina; dama em adamascado, dalmático, debrum, merino, gonflé, godet, matelassé; seminua em papel couché, formato tablóide, o rosto ovalino na capa, suas pálpebras cetinosas, os olhos manhosos, a tez de anoitecer em Marrakesh.

— Ela ia a Pontevedra, e de lá para Compostela, você sabe, a Via de Santiago. Tome conosco um copo de cerveja, e mais um, e mais outro! E eu disse para mim, ao meu coraçon: vai, esquece essa nega galega, niña nagô, núbia dúbia, boca-de-mandinga, e vamos encher a cara! E depois, ah, depois? Posso sair, dizer alô a um poço, ficar de quatro, roer um osso. É isso, seu moço?

Frei Leonardo, o goliardo, o glutão, o gargalo-de-garrafa, per nostro senhor, falou assim para mim:

— Ora, pois! deixe essa mera megera, o amigo deve é sair com uma boa putana, com uma fulana de olhos sacanas, loura ou preta, de fartas tetas!, e cantou, em bom latim: Veni, domicella, cum gaudio, veni, veni, pulchra, iam pereo! Oh, oh, oh!, e cantou, também: Ave, formosissima, gemma pretiosa, ave, decus virginum, virgo gloriosa, ave, mundi rosa, branziflor et helena, Venus generosa.

E celebrou sua eucaristia, o monachus maroto: do vinho madeira, fez sangue de Cristo, do pão italiano, carne de Madalena, púbicas melenas, madeixas de morena, in nomine pater, filius et espírito de porco, amém.

Nós três comemos, bebemos e cantamos até a madrugada, a nossa mesa sempre cheia de grossas fatias de pão, queijos, carne de carneiro, cerveja e vinho, meu amigo. Éramos a tríade do érebo, da glacial geena. Frei Leonardo, o pândego infançon, contou-nos seus amores por uma nívea-blonde-meninha, moça-flor carismática, fremosinha de sacristia, em seus lácteo-nectáreos quinze anos, que muito ofereceu e pouco cedeu, entre cantos de salmos e contas do rosário. O caso valeu ao réprobo frade censura episcopal e ameaça de expulsão da ordem; o cônico conego blasfemou conosco a genealogia do bispo geriátrico, e, de ofensa em ofensa, cantou: Nunca se Deus mig’averrá, se mi non der mia senhora; mais como mi o corregerá? destroia-m’, ante ca morra. om’é: tod’aqueste mal faz, como fez já, o gran malvaz, en Sodoma e Gomorra. Ei-lo agora ante nós, libertino sem batina, bonachão sem credo. Carlos-Cazzo-Cazali, o viúvo das esposas que não teve, Dom Juan imperito de mucamas de madamas, é o colecionador de nomes para o albergue-de-vênus de suas mimosas moçoilas: paqueta, pagode, pandora, viola, violinha, violeta d’amore. Carlos, mercenário de kodak, longa barba alaranjada, jaqueta de brim, óculos escuros, foi fotógrafo de moda, cobriu a guerra da Bósnia, clicou defuntos em tiroteio e piranhas do meretrício. Eu o achava vulgar, mas ele fez fotos para a Stylus, e o suportei pela dica da sina de mia dona. Saímos da taberna, às cinco horas da manhã, sob chuva finíssima, e fomos à praça Dom Dinis; sentamos num banco de pedra, em frente ao chafariz netúnico-ninfático, e a garrafa passou de mão em mão, entre risadas e piadas obscenas, até que Carlos Cazali fez um desafio, propôs uma tençon, e aceitei a contenda. O vilão começou, cantando:

Gil Eanes Brás morreu con amor en seus cantares, par Santa Maria, por ua dona que gran ben queria; e, por se meter por mais trobador, por que lh’ ela non quis (o) ben fazer, feze-s’ el en seus cantares morrer; mais resurgiu depois ao tercer dia.

O frei riu, o gajo riu, os dois riram, riram de prazer de pilhéria, mas eu, Gil Eanes, respondo bá com bá, e bi com bi, e respondi:

Carlos Cazali, parou-se-vos mal: per ante o demo do fogo infernal, por que con Deus, o padre spirital, minguar quisestes, mal per descreestes? E ben vej’ ora que trobar vos fal, pois vós tan louca razon cometestes.

E o tzigano mundano disse-me então:

Esto fez el por ua sa senhor que quer gran ben; e mais vos en diria: por que cuida que faz i maestria, enos cantares que fez, á sabor de morrer i e des d’ar viver. Esto faz el, que x’o pode fazer, mais outr’ omen per ren nono faria.

Ah, Carlos-sabugo, rebento-refugo, digo-lhe isso:

— E pois razon a tan descomunal fostes filhar, e que tan pouco val, pesar-mi-á en, se vos pois a ben sal ante o diaboo, a que obedeecestes. E ben vej’ ora que trobar vos fal, pois vós tan louca razon cometestes.

O gaiteiro, então, ao final da tençon, sacou navalha escocesa; não sou adamado, meu bom amigo, peguei a garrafa, quebrei-a, encarei o canalha; mas frei Leonardo, acordado do porre, num salto pôs-se entre nós, e tudo ficou acabado. Após o embate, voltei ao Chastel, sem prez nem joy, sem Deus, dom ou dona; e enojei-me de Gil, o porco, traedor, imigo de mim, per mia malaventura.

(Continua)

quarta-feira, 23 de junho de 2010

DONA VIRGO (I)

Ondas do mar de Vigo, verde mar, musgo, mofo, muco; verde malva, jaspe, jade ou junco. Vera viçosa, fremosa, velida, tecido sem vinco; negra ninfa, niña de Mama África, de São Salvador, filha de Oxum, en las calles de vieja España, onde os teus olhos, onde os teus peitos, moça de virgo? Vera olhos verdes, vê-la é vício, não vê-la é vírus, seu cheiro: folha de ipê, folha de figo, só folhas; aloés, baobá, broto de bambu, begônia, branco alecrim, visgo. Penso em tua pele, não prata, aljôfar ou espuma, mas seda azeviche, seda escura, de brancaflor noturna , em tua voz, que sussurra ao coraçon, e em teus olhos, que falam para a alma. Praza-vos já que vos veja no an, hua vez d’un dia! Só ela, a moura moçela, faz o meu sangue ferver: a que partiu sem me ver, sem se dar. Eu me lancei à viagem, sem temer a voragem, cruzei terras e mares, atrás dessa dona de mim, que me fez danado, e nulhas guardas migo non trago, ergas meus olhos que choran ambos. Estou aqui, em Vigo, Vicus Sacorum, nas encostas de Cerro Castelo, na Galícia, há três dias já, e esta cidade é todo lugar, é lugar nenhum, sua estranha beleza: escamas argênteas de peixe ao sol. Sigo e persigo essa molher em vilas, vales, vielas, como a seta persegue a caça, mas, esforço inútil, de todo fútil: ela se evola, de viés, desvanece, dissolvida no ar do ar. Jogo de esconde entre o nada, o nenhures e o coisa alguma, que começa em qualquer parte e termina, talvez, além-alhures, dois passos à esquerda de lugar algum. Ela, a moçelinha, dona de mui ben parecer, apartada de mim, por quê, para quê?, pergunto a São Simeão, em sua ermida. Quand’ eu vejo las ondas e las muyt’ altas ribas, logo mi veen ondas al cor pola velyda: maldito sea l’ mare, que mi faz tanto male! Sou Gil Eanes Brás, o gatuno, garanhão, desgrenhado, deserdado, desconjunto, bebum sem ofício, poeta sem arte. Sigo e persigo Brancaflor, a louçana de doces garcetas, e pergunto a São Simeão: por quê, para quê?, em sua ermida. Molher tão sem amor: sem você, já sandeu, não sou homem: sou lagarto, locusta, lagostim, látego, ladrilho, sou menos que tudo, uma coisa, uma cousa.

* * *

Eno sagrado, en Vigo, bailava corpo velido: amor ei, cantou Martim Codax, o jogral, cortesão de Fernando terceiro, rei de Castela. Sim, ele padeceu de coita por uma dona de corpo delgado, por uma dama fremosa, que bailava junto à fonte dos cervos, com suas amigas. Também ele viu a lua em um poço, e perguntou, na hora da alvorada, onde estava a sua amada. Martim Codax, o trovador? Sim, Don Pelegrin, apenas sete canções nos deixou, descobertas por Pedro Vindel, livreiro em Madri. Jamais saberemos quantas outras escreveu. Mia irmana fremosa, treides comigo a la igreja de Vigo, u é o mar salido: e miraremos las ondas. Alba, água, areia, onde está a minha sereia? Só vejo o céu alvo, algo de algas, mágoa de mágoas. Vera, Vênus de Vigo, molher marinha, eu a sonhei saindo das águas, nudez até o umbigo, nascendo da espuma-esperma do mar de vidro. E caminhei ao longo da praia, nesta manhã, praia de pedras e areia, de escuro mar piscoso sem gaivotas, e só vi a alta grama, areia, musgo, lama, areia. Sem ela, tudo é treva, pó, tudo triste treva, noite em noite dissolvida. Amigos, non poss’eu negar a gran coita que d’amor hei, ca me vejo sandeu andar, e com sandece o direi: os olhos verdes que eu vi me fazen andar assi. Fui à igreja de São Marcos, meu amigo, no escarpado vicariato, fazer uma oração à Virgem Santa Maria. O sol carmim crestava a pele e a longa ladeira ensejava ladainhas de romeiros de passagem para Compostela. A igreja é velha, grave, austera, lascas e vincos em pedra e madeira; suas lajes e vigas, capitéis e colunas, seus altos arcos alvos, já desgastados, como a fé dos mundanos, digo ao senhor, meu bom amigo. Ao fundo, na nave escura, em delicado nicho, sob o alvadio baldaquim, vi a imagem da Virgem Santa, Dona Mística, em seu manto azul: os olhos tristes de coração trespassado, o rosário que quase escorrega das mãos, a coroa de estrelas. Cantei ora pro nobis, ora pro nobis, e passei o dia todo a rezar em ladainha, a rezar em ladainha, a rezar em ladainha, à Celeste Regina, pela paz de minha alma, pelo sossego de meu coraçon. Com’ ome que ensandeceu, senhor, con gran pesar que viu, e non foi ledo nen dormiu depois, mia senhor, e morreu: ay mia senhor, assi moir’eu! A noite é negra como o ébano, a graúna, é negra como o ônix, a perla escura, é negra como a pele de minha amiga, a malvada mourisca, a ladina saladina, sarracena, mas amo-a endõado. E caminhei de volta para a cidade, Don Pelegrin. E que farei eu, pois non vir’ o vosso mui bon parecer? Non poderei eu mais viver, se me deus contra vos non val. Mais ar dizede-me vos al: senhor fremosa, que farei?
(Fragmento inicial do conto Dona Virgo, que publiquei no livro Romanceiro de Dona Virgo. Rio de Janeiro: ed. Lamparina, 2004.)

QUE SAUDADE, POETA-IRMÃO...





Caros, a revista eletrônica Germina publicou um caderno em homenagem ao escritor Wilson Bueno, com a colaboração de Cronópios e da Zunái. Estão disponíveis ali três entrevistas com o escritor, contos, fragmentos do Mar Paraguayo e do romance Amar-te a ti nem sei se com carícias, além de depoimentos de autores como José Kozer, Victor Sosa, Reynaldo Jiménez, Andrés Ajéns, Charles Perrone, Christopher Larkosh e um artigo de José Castello. Confiram na página http://www.germinaliteratura.com.br/

DO CADERNO DE ESTUDOS (II)

Somos dementes como a fera —
esqueléticas figuras musicais
que se entreespelham.

Ruídos ásperos
perseguem o tempo;
somos apenas figuras rotas,
moídas pelo medo.

* * *

Com a brutalidade
de uma caveira cantante.
Com um morto em cada linha,
e uma rosa para cada morto,
ela pergunta aos seus lagartos:
o que existe além da pele?

Mistério algum além da verde céspede numerável até o infinito.

(Esboços imaturos para um futuro poema)

DO CADERNO DE ESTUDOS (I)

A ferocidade

no limiar da noite,

quando a pele —

desmedida, irremissível,

se projeta em outra pele:

leões minúsculos de ouro,

nenhum destino além do nervo tumultuário.

(Esboço de poema de Claudio Daniel)

UMA CONVERSA COM CLAUDIO WILLER (IV)

CD: Em seus “poemas da loucura”, o romântico alemão Hoelderlin antecipou recursos da poesia moderna, como a estética do fragmento e o texto não-linear. O psicanalista Isaías Mehlson, a esse respeito, fez um interessante comentário, afirmando que “o inconsciente é uma consciência não-discursiva”. Essa ruptura com a lógica narrativa e sintática está presente em diversos experimentos de vanguarda, como o Lance de Dados de Mallarmé, o futurismo, o dadaísmo. Já a poesia surrealista foi acusada por certos críticos, ligados à poesia concreta, de ser uma tentativa de restabelecer o verso, ou seja, o discurso e a sintaxe. O que você pensa a respeito?

CW: Eu cito essa visão fenomenológica do inconsciente de Isaías Mehlson em alguns lugares. Hölderlin louco e Gérard de Nerval em surto são modernos justamente por produzirem obra não-discursiva. Agora, veja que interessante, com relação a críticas ao surrealismo: há duas vertentes de crítica, dizendo exatamente o contrário. Uma crítica de um marxismo mais soviético, acusando-o de irracionalismo, e (isso até mesmo em um crítico da envergadura de Antonio Candido, e confesso que não entendo como é que pode, ao mesmo tempo ele apontar a importância de Clarice Lispector e, com relação a Rosário Fusco, fazer esse tipo de afirmação) reduzindo-o a sintoma de uma crise burguesa. E a outra crítica, acusando-o justamente do contrário, de racionalismo, em Haroldo de Campos, que o chamava de filho bastardo da lógica, ou em Leila Perrone Moisés, que chegou a indigitar Breton como sendo racionalista ou cartesiano ou algo assim, tempos atrás em um artigo no Jornal da Tarde que eu precisava recuperar).

Pois bem. Então, vamos distinguir entre pensamento lógico, fundado no princípio da identidade, de que, A sendo A, e B sendo B, então, A não pode ser B, e pensamento analógico, enxergando as correspondências (no sentido de Baudelaire, mesmo) entre A e B. Recentemente, em palestra no congresso internacional “O Surrealismo: Atualidade e Subversão”, realizado no campus da Unesp em Araraquara, entre 14 e 16 de agosto, mostrei como a ensaística de Breton recorre muito mais ao pensamento analógico do que lógico (até no Segundo Manifesto, em pleno furor marxista, ele se permite tecer considerações sobre a mesma conjunção planetária que teria presidido ao nascimento dele, de Eluard e de Aragon — olha, se recorrer à astrologia não é pensamento analógico, então não sei o que é). Permiti-me apontar como exemplo de leitura surrealista o capítulo em Volta, a minha narrativa em prosa, sobre Nadja de Breton, mostrando como essa leitura é aberta, ao contrário daquela que utiliza paradigmas, teorias literárias, forçosamente fechadas, pelo modo como vou atrás de sincronias, correspondências, acasos objetivos por sua vez tomados como reais. Quanto à poesia surrealista, ela é plural, inclui muita coisa tendente ao que faziam e viriam a fazer os construtivistas. Agora, é sempre regida pela analogia. Até perguntei, no meu artigo na Cult, por que, então, quando registramos sonhos, eles se parecem com obras surrealistas, enquanto poesia concreta, na sua manifestação mais típica, nem em pesadelos...

CD: Ainda é possível o surrealismo hoje?

CW: Acho que, em primeiro lugar, as pessoas têm que ler surrealismo, aqui no Brasil — tem muita gente dando opiniões as mais disparatadas, sem saber direito do que se trata. O fundamento, a idéia da contradição entre poeta e sociedade, do prosseguimento da rebelião romântica, continua valendo. Movimentos e ações coletivas inspiradas no surrealismo, acho perfeitamente possíveis, e seria muito bom se acontecessem. Percebo, hoje em dia, um tipo de cultura ou de movimentação underground que tende ao surrealismo, incorporando, é claro, a beat e outras tendências rebeldes e marginais. Isso está acontecendo, neste momento, nos Estados Unidos, com o grupo de Chicago. Algo disso, vejo em um projeto como o da revista Azougue — também em nossa revista eletrônica, do Floriano Martins e minha, Agulha, http://www.elsonfroes.com.br/www.agulha.cjb.net , entre outros lugares, os quais vejo como registros, estações retransmissoras, não exclusivamente surreais, é claro. Neste número da revista Cult, que saiu enquanto respondo a suas perguntas, trato de burocratização do conhecimento. Surrealismo continua um grande antídoto, um instrumento de combate.

CD: O sonho das vanguardas era unir o “mudar a vida” de Rimbaud ao “mudar o mundo” de Marx. Como você vê a atual crise das utopias?

CW: Olha, “crise das utopias”, tem muita gente falando nisso pelo encerramento do ciclo dos regimes fechados, burocráticos, de planejamento central, da esfera do “socialismo real”, enfim, do modelo soviético. Mas essa nunca foi minha utopia, nem esta é minha crise, pois jamais esperei qualquer coisa desse tipo de regime, sempre os achei autoritários. Sou anarquista, e minhas utopias estão no mesmo lugar onde sempre estiveram. A rebelião individual, inspirada em Rimbaud e tantos outros, continua um caminho, talvez o caminho pelo qual seja possível seguir.

CD: Além do naufrágio do stalinismo, que colocou em crise as outras propostas de esquerda também, você não vê uma crise mais ampla, no sentido de ausência de uma proposta ética, espiritual ou humanista? Não houve um retrocesso em relação às rebeldias libertárias da década de 60? A sociedade neoliberal, com suas longas jornadas de trabalho e o ideal yuppie não trocou a contestação pelo conformismo, o peiote pela cocaína, droga de executivos que querem produzir mais?

CW: Sim, houve retrocesso. Mas na mesma proporção em que contracultura teve algo de modismo, de cultivo de uma exterioridade, de estereótipo, padronização, massificação, como se puxar um fumo ou tomar um alucinógeno ou escolher um repertório musical fosse, em si, mudar alguma coisa. O retrocesso já estava dentro, contido naquele período. Agora, neste momento, há crise, talvez esgotamento do projeto neoliberal. Mas quero saber o que irão propor em seu lugar. Não pode servir como defesa ou justificativa dos regimes fechados. Propostas éticas, espirituais, humanistas, existem. A questão é se irão adquirir caráter coletivo, como irão se projetar em forma de movimentos, de algum modo de ação.

CD: A opinião de um escritor tem importância, hoje, no Brasil? O que a UBE tem feito no sentido de resgatar o papel do escritor como consciência crítica da sociedade?

CW: Escritor consagrado é formador de opinião, sem dúvida, além de produzir realidade. Jorge Amado, que morreu há pouco — ele produziu Brasil, constituiu identidade. Era sócio da UBE, participou de um congresso de escritores, em Portugal, 89, do qual eu era um dos organizadores. Bela figura. Olha, diante de certas políticas literárias meio mafiosas, acho exemplar o comportamento dele — levar o Campos de Carvalho para ser publicado na Civilização Brasileira, apadrinhá-lo, quase — ele, Jorge, realista, Campos de Carvalho surrealista, ele militante, o outro nem aí...

A UBE procura defender os direitos do autor, políticas culturais democráticas, enfim, age em um plano institucional, além de promover atividades associativas. É uma entidade plural, com um quadro de sócios grande, que abrange uma diversidade de escritores, correspondendo a níveis e registros distintos do que se poderia chamar de consciência crítica da sociedade. Acho que o escritor desempenha esse papel através de sua obra, independentemente de uma entidade tentar resgatá-lo ou não. UBE pode ser um espaço de convivência, de diálogo, e instrumento ou meio para manifestações e tentativas de intervenção política nessas questões que mencionei acima, a começar pela democracia e liberdade de expressão. Sempre foi. Que interessante isso, Jorge Amado e Zélia se conheceram naquele congresso de escritores de 45, da ABDE, entidade da qual a UBE é sucessora... Você vê o que pode rolar (rolou bastante, no que me diz respeito) em entidades de escritores... Quem pensa que é de uma austeridade imitando cerimonial de Academia está enganado. Ao menos, comigo de presidente... Aliás, nesse aspecto, o informal, o não-oficial, o currículo da UBE é bom. Uma hora lhe conto umas histórias.

CD: A poesia é uma forma de sapiência, de loucura ou de retorno à infância?

CW: Tudo isso e muito mais. A imagem do Octavio Paz — a outra voz — acho perfeita.
(FINAL)

UMA CONVERSA COM CLAUDIO WILLER (III)

CD: Dentro da tradição da poesia em língua portuguesa, com quais autores você sente mais afinidade?

CW: Comecemos pelos portugueses mesmo. Ah, mas como líamos Fernando Pessoa! E Sá Carneiro. Menos, mas devíamos ter lido mais, Almada Negreiros. Portugal, como tem bons poetas, os surrealistas, António Maria Lisboa, Mário Cesariny. Os de hoje, olha, Herberto Helder, que bom que saiu aqui, coloco-o em um primeiro time mundial. Dos brasileiros, meu poeta é Jorge de Lima, já falei várias vezes, que para Invenção de Orfeu ser reconhecido como monumento literário mundial, tem que ser primeiro lido e reconhecido por nós. Murilo, também. Há uma frase inteligente de Roland Barthes, em O Prazer do Texto, quando ele diz que Proust é uma matexis para ler Flaubert. Ou seja, começar pelos contemporâneos, os mais próximos, para aí remontar aos clássicos. Quanto a mim, já cheguei ao simbolismo, nesse trajeto. Em termos, também não vamos exagerar, pois houve uma primeira formação romântica, para todos nós.

CD: Você trocou cartas com Allen Ginsberg, durante o seu trabalho de tradução de poemas do autor norte-americano, reunidos na coletânea Uivo, Kaddish & Outros Poemas. Fale um pouco sobre esse diálogo.

CW: Quando se acertaram os direitos de tradução, consultei-o sobre algumas dúvidas que tinha, ele foi muito atencioso, respondeu a minhas consultas. Tenho as cartas. Depois que saiu Uivo, Kaddish & Outros poemas, mandei-lhe, e ele me mandou os livros dele que saíram desde então, inclusive essas edições da poesia reunida e diários pela Harper & Collins, com cartões para o dear translator friend. Queria trazê-lo para o Brasil, na época em que estava na Secretaria de Cultura, mas não havia mais condições, ele já estava mal de saúde.

CD: Como tradutor, além de Ginsberg, você publicou os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, Escritos de Antonin Artaud, poemas de Octavio Paz. Estes são os poetas que marcaram a sua formação literária?

CW: Os poetas, não — alguns dos poetas — tem muito mais, é claro. Dei sorte, as ocasiões em que me convidaram para traduzir algo, Lautréamont, Artaud, Ginsberg, eram autores com os quais, de algum modo, convivia, que, para mim, tiveram valor de revelação. Foi coincidência, acaso objetivo.

CD: Fale um pouco sobre o processo de criação de seus livros Dias Circulares (1976) e Jardins da Provocação (1981).

CW: Dias Circulares, quando, pela segunda vez, em 1976, o Massao Ohno enunciou o fatídico chamado, “Willer, quero te publicar!”, reuni o que tinha, poemas em prosa e alguns com versos espalhados pela página, fiz um novo manifesto, e apresentei-lhe tudo isso. Em Jardins da Provocação, há poemas temáticos, mas também escritos espontaneamente, direto, que coexistem com os em prosa, assim como no meu próximo livro, Estranhas Experiências. Há, continua havendo, notas da véspera, como as passei.
CD: Em Jardins da Provocação, você incluiu, junto com os poemas, um manifesto em que fala sobre o poder mágico da palavra poética, com o enfoque da semiologia e da teoria literária. Afinal, qual é a relação entre poesia e magia? Concorda com Huidobro, de que a poesia inaugura um mundo próprio, com sua própria fauna e flora?

CW: Concordo. A poesia produz realidade. É possível uma teoria literária aberta, incorporando a magia, o pensamento mágico. É só abrirem-se as cabeças desse pessoal, alguém realmente querer ir além do cientificismo.

CD: Você define sua poesia como lírica, no sentido de expressão do sujeito, do eu lírico, e também quanto à temática amorosa. A vocação subjetiva, herdeira da rebelião romântica, contrapõe-se à materialidade cabralina, centrada na visão objetiva das coisas. Sua opção de mergulhar no mundo interior, nos sonhos e obsessões, afastaram-no da crítica social, sátira política? Acredita ser possível conciliar o mergulho existencial com a reflexão do estar no mundo, ou concorda com Piva de que “todo ato individual é anti-social”?

CW: Concordo, sim. O que Piva diz não é antagônico com estar no mundo. E insisto: eu nunca programei como iria escrever. Lembro a frase famosa de Octavio Paz: o poeta não se serve das palavras; é o seu servidor. Crítica social, sátira, faço mais em meus ensaios. Na criação, na leitura, até na crítica, e muito, muito mesmo no ensino, é preciso recuperar a dimensão da emoção, da magia e encantamento, assim tornando-as (criação, crítica, ensino) menos assépticos, menos burocráticos. O que essa gente faz é desestimular leitores.
(CONTINUA)
P.S.: o livro Estranhas Experiências saiu em 2004, pela editora Lamparina.

UMA CONVERSA COM CLAUDIO WILLER (II)


CD: Acredita que a poesia tenha relação com estados alterados de consciência, com a experiência visionária?

CW: A questão não é “acreditar” — a questão é aquilo que é. Baudelaire escreveu aquela quantidade de paginas sobre haxixe, a troco de quê? Falava de um meio de passar o tempo, só? Experiências visionárias? E Mallarmé, aquelas enormes crises, ele ouvindo o refrão, la penultiéme est morte, e aí escrevendo, ou melhor, transcrevendo O Demônio da Analogia, obviamente o tipo do texto que, digamos assim, baixou, que certamente nem ele conseguiu entender o que significava, como traduzir, decodificar, e que até hoje é tido como obscuro, hermético. E Ginsberg ouvindo a voz de William Blake? E o próprio Blake? E...? Podia escrever páginas e páginas sobre episódios de criação poética como revelação, êxtase, algo baixando. É claro que não estou fazendo nenhuma condenação a priori da escrita a frio, pensada. Apenas estou dizendo como as coisas são, ou foram, ou têm sido, historicamente, e não só para mim.

CD: Mircea Eliade, autor de Técnicas Arcaicas do Êxtase, foi uma influência intelectual marcante entre os poetas de seu círculo literário? Você tem interesse pelo esoterismo e por tradições iniciáticas?

CW: Sim e sim, as duas partes da sua pergunta. Com tudo o que se escreveu depois sobre mito e sobre xamanismo, Mircea Eliade me parece ainda insuperado. Há, nele, um fundamento filosófico, ontológico, que é a idéia da relação entre o homem e o mundo como algo vivo, animado e sagrado, nas sociedades tribais, no mundo arcaico. Quanto a esoterismo e tradições iniciáticas, trato disso em minha narrativa em prosa, Volta. Nunca fui adepto, de fazer parte de uma seita ou grupo, a exemplo, digamos, de Yeats e a Ordem da Aurora Dourada. Interessa-me o movimento oposto, da experiência poética se tornar mágica, de, no contexto da criação poética, acontecerem antevisões, revelações, o acaso objetivo. Esoterismo e poesia se aproximam por ambos terem como fundamento um modo de pensar analógico, oposto à razão da herança cartesiana ou aristotélica.

CD: Fale um pouco sobre o seu livro de estréia, Anotações para um Apocalipse (1964). Como ele foi recebido na época?

CW: É uma série de poemas em prosa, escritos automaticamente, e um manifesto, em um tom bretoniano, mas que vale, penso, por antecipar o que vinha pela frente, a rebelião contracultural, e mais coisas, e falar de Ginsberg e outros em primeira mão, aqui no Brasil. Recepção? Amigos gostaram. Tanto o meu livro, Anotações para um Apocalipse, quanto os do Piva, Paranóia e Piazzas, fora daquele ambiente, ninguém entendeu nada, silêncio total. Crítica, nem pensar. Levamos uns 15 ou 20 anos para ser lidos.

CD: Como os poetas do modernismo receberam a tua poesia? Tomaram posição a respeito? Faço essa pergunta porque, em minha opinião, o teu trabalho, como o de Piva, não tem nada a ver com o modernismo dos anos 30 e 40... Claro, há certos paralelos com Murilo Mendes e Jorge de Lima, na imagética, em especial. Mas a impressão que eu tenho é que a poesia de vocês existiria mesmo sem o modernismo, pois descende de outras fontes, do romantismo, do simbolismo, de Breton, dos beats, da contracultura dos anos 60... o que você pensa a respeito?

CW: Penso um monte de coisas! Modernista, remanescente da semana de 22, havia Sérgio Milliet, bela figura, mas, no início dos anos 60, não tomamos conhecimento, freqüentava o bar ao lado (ele e a turma dele no Paribar, eu e minha turma mais no Leco ou La Crémerie, lugar mais agitado), mas ainda assim era muito burguês, muito establishment para nosso gosto. Não nos interessou qualquer interlocução pessoal com modernistas e afins, embora não tivéssemos dúvidas quanto à importância de Drummond e admirássemos Murilo. Bandeira, nunca gostei, simplesinho demais. Guilherme de Almeida, o então Príncipe dos Poetas Brasileiros, de enorme prestígio, nem chegar perto, de jeito nenhum, representava tudo o que não suportávamos, oficialismo, academicismo, restauração do beletrismo etc. Idem os demais corifeus do retorno dos modernistas ao academicismo, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo. O contexto literário imediato era dado pela Geração de 45. Nem foi preciso romper, nos afastarmos, tomar posição contra, bastou saírem Paranóia e Piazzas do Piva, e o meu Anotações para um Apocalipse, e eles imediatamente esfriaram conosco.

Agora, você tocou em uma questão importantíssima ao falar em simbolismo. Pelo seguinte — na França, em especial, modernismo estava dentro do simbolismo! Houve aquilo que Breton denominou de correia de transmissão entre simbolismo e surrealismo. Vanguardas recolheram um legado simbolista. Veja bem: Jarry (e Jarry já é tudo, em sua obra colossal, está tudo lá, ele produziu século XX como ninguém) era simbolista, freqüentava Mallarmé e os outros, foi quem proclamou como fundamentos da nova literatura Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé. O primeiro tradutor de Jarry, para o italiano, foi Marinetti... Apollinaire, o ideólogo do novo, idem, freqüentava Jarry, o admirava. Os surreais adotaram como referências, a exemplo de Jarry, a Lautréamont e Rimbaud. Os formalistas, Eliot e Pound inclusive, a Corbière e Laforgue. Linha direta, conexão, em todos esses casos, e em outros.

Aqui não, o pessoal de 22 maravilhou-se com futurismo e vanguardismo, mas não reparou em nosso próprio simbolismo, no que havia de moderno em Kilkerry, na poesia em prosa de Cruz e Souza. Não sabiam de Sousândrade, e olha que em seus momentos simultaneístas, em muito de Oswald, até lembram Sousândrade. Não perceberam o anti-beletrismo de Lima Barreto. Nacionalistas que não souberam olhar a seu redor, algo muito estranho, que associo a uma certa caretice modernista, especialmente em Mário de Andrade, um discurso como: sim, vamos inovar, mas espere aí, até certo ponto, devagar, loucura, isso não, como ele diz em seus primeiros textos críticos. Isso posto, muito do que Mário fez, gostamos. E, sem dúvida, Oswald, o mais inquieto e criativo de 22.
(Continua)

UMA CONVERSA COM CLAUDIO WILLER (I)

Poesia como vertigem, experiência visionária, no limite entre vida e linguagem. A escritura não como reflexo do cotidiano imediato, em sua banalidade autoritária, mas como construção de uma realidade com sua própria morfologia do desejo, que não se distingue do sonho ou de estados alterados da consciência. A poesia surrealista é um território onde a lógica habitual, no campo do discurso e da ação, cede lugar à multiplicidade de outras formas possíveis de composição de cor e som, idéia, forma e movimento. Nesta entrevista, o poeta, tradutor e ensaísta Claudio Willer, um dos principais nomes do surrealismo no Brasil, comenta sua trajetória poética, sua visão de um mundo fragmentado e faz a defesa dessa estética alucinada que não distingue a arte da magia, o sonho construído da fugaz realidade.

Claudio Daniel: Qual é o sentido de escrever poesia hoje, numa sociedade regida pela mídia e pelo mercado?

Claudio Willer: Precisamos ser claros ao usar a expressão “hoje”. Hoje é quando? Há 150 anos, Baudelaire já transmitia a idéia do poeta como ser à parte, isolado e marginalizado na sociedade de massas, o albatroz obrigado a levar vida pedestre, como naquele poema de As Flores do Mal, e em tudo o que ele escreveu sobre a vida na metrópole. A contradição poesia/sociedade (sociedade burguesa, industrial, pós-industrial, de massas, de mercado, midiática, o que for), já foi claramente estabelecida no Romantismo, e não mudou em sua essência, a não ser pelo fato de a sociedade burguesa, hoje, ser menos fechada, mais permeável. Por exemplo, você não tem censura direta, não toma processos por escrever poemas — e este é um avanço recente. Aliás, sempre houve, na civilização ocidental, tensão entre poesia, descontado o beletrismo eloqüente, e sociedade — basta lembrar que Camões foi em seu tempo criticado, excluído, visto com desconfiança por suas inovações, e só depois convertido em nosso autor mais canônico. Isso, entre tantos outros exemplos.

CD: Sim, podemos considerar que esse “hoje” começou em 1789, quando o Bispo e o Rei cederam o assento ao fabricante de vinhos ou cortiça e aos futuros especuladores financeiros. Nesse período, que evoluiu da guilhotina à internet, surgiram diferentes idéias sobre por que fazer poesia. Para alguns, ela é uma ferramenta para mudar o mundo; para outros, é um severo exercício estético, que se justifica na própria escritura; alguns querem que a poesia altere o comportamento social, influencie outras mídias ou o idioma, e outros acham que a poesia, realmente, não serve para nada. Em sua opinião, por que escrevemos poesia, atividade que consome tempo, inteligência, esforço e que não interessa a quase ninguém, além de nós mesmos?

CW: Exatamente. Romantismo é um produto da mesma configuração de que faz parte o Iluminismo. Um de seus componentes. Possível a partir do momento em que destamparam a panela – que aliás continua sendo destampada, o processo não se encerrou, e nele a rebelião individual desempenha um papel decisivo — com a queda dos absolutismos e do poder temporal da Igreja. Queda dos absolutismos, não — redução considerável, não simplifiquemos as coisas. Poesia consome tempo? Pois então, é um bom modo, bem prazeroso, de consumir tempo. Olha, se poesia não me proporcionasse um certo nível de prazer, de satisfação pessoal independente de resultados como a repercussão, eu não mexia um dedo sobre o teclado ou segurando a caneta para fazer isso. Em segundo lugar, “nós mesmos” é bastante gente. Dirigimo-nos a pessoas que partilham um código, ou um mesmo repertório, sei lá. E, é evidente, a poesia se projeta, tem um resultado exterior à subjetividade do autor, embora saia de dentro dela. Em caso contrário, seria um solipsismo, escrever para o próprio umbigo, para sua imagem no espelho. Seria paranóia aguda, galopante, alguém se pôr a escrever para ser Dante, Camões ou Baudelaire, isso, citando exemplos mais evidentes de autores cuja poesia se projetou, constituiu cultura, portanto, produziu realidade. No entanto, concordo, tanto quanto concordava a primeira vez que o li, décadas atrás, com o trecho de Octavio Paz, em O Arco e a Lira, em que ele diz que a poesia, sendo histórica, produz história.

CD: Como é o seu processo criativo? A escrita automática, método de composição do surrealismo, ainda é válida?

CW: Claro. Com a ressalva que Aragon já havia feito no Traité du Style, nos anos 20, de que um imbecil, se fizer escrita automática, irá escrever imbecilidades. Procedimento algum, em si, garante nada. Mesma coisa que com alucinógenos, conforme já repeti inúmeras vezes: o fato de Henri Michaux ter produzido obra importante sob efeito de mescalina não significa que alguém, por tomar mescalina, vá escrever Miserable Miracle. Quanto a meu processo criativo, é mesmo espontâneo. A frio, do tipo “vou escrever um poema”, não dá, não sai nada. Tem que haver entusiasmo, no sentido grego da palavra, como embriaguez ou possessão, ou, no mínimo, inspiração. Um dos poemas que saíram publicados naquela edição de Azougue em que figuro, Ruínas Romanas, eu estava lá, e me vi impelido pela emoção a tirar um bloquinho do bolso e ir escrevendo. Nem reparei, mas estava fazendo um comentário à quantidade de autores, de grandes poetas, que já haviam estado lá e escrito sobre essas ruínas — alguns, eu nem conhecia então. Aliás, tudo o que fiz em poesia saiu mais ou menos assim, de impulso. Note bem, não se trata de adesão a “escolas” ou cartilhas, mas do seguinte: aquilo de que André Breton fala no Primeiro Manifesto, das imagens poéticas que batiam na janela, comigo é assim, uma frase, no caso desse poema de que estou falando, a frase “quantos poetas já não estiveram aqui?”, daí para a frente, o texto vai saindo espontaneamente, quase por si só, por sua conta. Aliás, essa experiência, poesia como voz do outro, nem é patrimônio exclusivo do surrealismo, basta ver o que, por exemplo, Derrida escreve a respeito naquele seu ensaio sobre Edmond Jabés em A Escritura e a Diferença.

(Continua)

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS

Há muito tempo não existe jornalismo literário no Brasil. Houve o jornal Nicolau, nas décadas de 1980-90, editado por Wilson Bueno; o caderno Folhetim, da Folha de S. Paulo, no mesmo período; o Suplemento Literário de Minas Gerais, que teve sua melhor fase no final da década de 1990, sob a direção de Carlos Ávila, mas que sobrevive até hoje, e por vezes surpreende com bons textos e autores; a revista CULT, mais recente, que apesar de sua explícita parcialidade, divulgou muita coisa da poesia contemporânea; e hoje, o que há? Os cadernos ditos culturais da imprensa diária estão comprometidos com os lançamentos das grandes editoras, que muitas vezes são anunciantes nesses mesmos veículos. O espaço dado a livros lançados nos EUA ou na Europa não raro é maior que o espaço dedicado a escritores brasileiros. E, claro, a prosa de ficção (o romance, em especial) tem muito mais destaque do que a poesia, não por qualquer critério de qualidade estética, mas apenas porque vende mais. Não se trata de jornalismo literário, mas de um serviço de assessoria de imprensa para as grandes editoras. Quem é do ramo sabe disso. Felizmente, para me atualizar e saber o que está acontecendo de interessante na poesia e na prosa de hoje, eu não preciso consultar a lista de “mais vendidos” da VEJA (uma piada de péssimo gosto), nem ir à FNAC com uma lente de aumento, para descobrir algum volume de poesia excêntrica e invendável, escondido entre pilhas de romances sentimentais e livros de auto-ajuda. Afaste-se de mim, Satanás! Eu sei o que acontece hoje acessando blogues e sites de literatura, como Cronópios e Germina, além de receber, todos os dias, pelo correio, livros enviados a mim por autores dos quatro cantos do país, que é claro eu demoro um pouco para ler. Entre esses livros recebidos, gostaria de citar alguns, inclusive para indicá-los a vocês: Saber o sol do esquecimento, de Casé Lontra Marques (Vitória: Aves de Água, 2010), um poeta jovem do Espírito Santo com um trabalho de linguagem muito refinado; A sombra da ausência, quarto livro de poemas de Antônio Moura (Bauru: Lumme Editor, 2009), sem dúvida um dos mais talentosos autores brasileiros; e o volume de ensaios As ironias da ordem, de Maria Esther Maciel (Belo Horizonte: editora da UFMG, 2010), a crítica literária e pesquisadora mais inteligente e bem-informada que temos hoje na universidade, em minha não-modesta opinião. Recebi também alguns livros instigantes da Gran Cualquierparte: Charles Perrone, o embaixador da poesia brasileira nos EUA, enviou-me o seu livro Brazil, lyric, and the Americas (University Press of Florida, 2010); Armando Roa Vial, da nova geração de poetas chilenos, mandou-me um exemplar de Ejercicios de filiación – Poesía (1998-2008) (Santiago de Chile: Editorial Universitária, 2010); e Casimiro de Brito, um nome histórico da poesia portuguesa, expoente da Geração 61, enviou-me Na Via do Mestre (Coimbra: ed. Temas Originais, 2010), em que ele faz um diálogo/paródia com os textos do Tao Te King, de Lao Tzu (uma das afinidades que temos em comum é o interesse pelo haicai, pela poesia e filosofia da China e do Japão). Outra grata surpresa foi o livro Como un proyecto del que nadie habla, do uruguaio Roberto Echavarren, que é uma tradução para o espanhol de Like a project of which no one tells, de John Ashbery (Montevidéu: La Flauta Mágica, 2009). Com amigos assim, que me enviam livros fascinantes, quem precisa da VEJA e da Folha de S. Paulo?

UMA ENTREVISTA COM SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Maria: Quando a senhora começou a escrever?

Sophia: Quando comecei a escrever eu não sabia escrever. Eu tinha uma pena enorme (rindo). Eu pedi a minha mãe papel e caneta. Escrevia uma grafia que eu tinha imaginado, imagine você... Uns desenhos de umas letras inventadas por mim. Eu contava em voz alta.

Maria: Muito criança ainda, antes de ser alfabetizada?

Sophia: É. Foi. E depois aprendi a ler e a escrever. Comecei a escrever cedo, sim, 14 anos, 12 anos. Primeiro mal, depois melhor, não é?

Maria: E publicou com uns vinte e poucos anos.

Sophia: 23 ou 24, já não lembro mais. Primeiro livro, sim. (pausa. Retoma decidida). Não, publiquei antes. Em revistas e coisas assim. Depois publiquei um livro. Creio que aos 24 anos.

Maria: Isso em 44. O livro Poesias, não é?

Sophia: Poesia. No singular.

Maria: Poesia. É. Depois então em 64 ganhou um prêmio importante aqui em Portugal.

Sophia: Um prêmio importante? Sim, foi no ano passado.

Maria: O Prêmio Camões, no ano passado. Mas em 1964 um livro de poesia da senhora já tinha sido premiado.

Sophia: Sim.

Maria: E sua relação com a poesia brasileira, conheceu poetas brasileiros?

Sophia: Bem, eu acho que tive uma relação muito profunda com o João Cabral e com as coisas que ele procurava (pausa ). Eu não pensava muito nisso. Nuca tive muita teoria. Fui sempre uma pessoa muito antiteórica. Mas encontrei muita coisa. Quando encontrei João Cabral ele disse-me assim: eu tenho muita admiração por si...que é que ele disse? (pausa) como é que foi que ele disse? (procurando na memória) ... porque você é uma poeta que usa muito substantivo concreto. (ri). Eu pensei: é? Mas é verdade, não é? Nos encontramos em Sevilha. Nós fomos com uns amigos brasileiros que iam lá convidados pelo João, para a casa dele. E o João disse: por que vocês não vêm e ficam no hotel? E fomos e ficamos num hotel lindo que o João descobriu. Era lindo, era um antigo palácio de uma família sevilhana. Já não existe, sabe? ( dando um trago no cigarro). Já destruíram ( jogando as cinzas no cinzeiro). O turismo é uma desgraça em toda parte do mundo, não é?

Maria: Vai acabando tudo, nivelando, pasteurizando... O encontro com João Cabral foi quando ele era cônsul em Barcelona, não? E a partir daí a senhora entrou em contato com a poesia brasileira?

Sophia: Não. Eu já tinha lido o Manuel Bandeira. Já tinha lido vários poetas brasileiros. É que nesse tempo havia uma relação muito mais próxima, sabe? Porque o mundo não estava tão confuso como agora. Sai tanto livro. Sai tanta confusão. Agora um poeta se projeta, fala-se de sua obra, não é porque escreveu livros bons. É porque tem uma boa pessoa encarregada de sua propaganda.

Maria: De preparação na mídia, nos jornais. É verdade.

Sophia: Naquele tempo não. Vinha um amigo que dizia assim: - "Li ontem um poeta brasileiro extraordinário". Ele não tinha nada a ver com propaganda alguma. Mas a gente, se queria, lia o livro.

Maria: E a senhora considera importante esta relação entre a poesia portuguesa e brasileira?

Sophia: Bem, eu considero importante a relação entre toda a poesia. A portuguesa com a brasileira é importante, como é importante a relação com a poesia africana. A poesia moçambicana é ótima, não é? Porque são países que falam português. Quer dizer, tem uma experiência de linguagem falada, de uma língua só.

(...)

Maria: E o sentido do trágico? A sua poesia é trágica, no sentido grego... A senhora se considera da mesma tradição de Fernando Pessoa?

Sophia: Não acho muito parecido com a tradição do Pessoa não. (pausa longa) O pessoa é um homem que para escrever renunciou a viver. Isso não se parece comigo nem com o João Cabral, não é?

Maria: A sua é uma poesia de quem vive, não é?

Sophia: Sim. É uma poesia de quem vive.

Maria: A senhora tem um artigo, um ensaio, sobre a Cecília Meirelles.

Sophia: Tenho. Foi o primeiro artigo que fiz na minha vida, não é mesmo? Porque eu não gostava nada de artigos. Mesmo hoje em dia não gosto nada. Mas naquela época eu gostava menos, sabe?

Maria: E por que escreveu sobre a Cecília?

Sophia: Porque havia uma homenagem à Cecília e me convidaram para ir. Então eu fiz o artigo. Correu bem. Houve muita palma na minha intervenção. Mas a Cecília não foi, você sabe? Então aconteceu uma coisa, uma história engraçada. Ela não foi porque tinha uma amiga - agora se pode dizer porque a Cecília já morreu e a amiga também. E a amiga dela era uma mulher feia, fazia muita intriga. E disse à Cecília que éramos comunistas. A Cecília teve medo. Tratou a sério e não veio. Eu fui e também li os poemas dela. Depois ela ficou um bocado escandalizada, não é? Então a Cecília no Natal mandou uma grande caixa com frutos de natal, sabe? Frutas secas, nozes, essas coisas de natal. Você sabe que todos os natais eu ponho na árvore de natal ainda hoje? Mas eu nunca agradeci à Cecília.

Maria: Foi um equívoco que aconteceu entre vocês. Lamentável.

Sophia: (levantando-se para pegar o segundo cigarro). Foi pateta. Mas é melhor perdoar, não? (longo silêncio. Sophia levanta-se, pega a carteira de cigarros na mesa em frente ao sofá e leva para o seu escritório, contíguo à sala onde estamos sentadas). Vou guardar para não fumar mais. Fumo muito pouco. Eu tenho muito pouco cigarro. É uma coisa terrível, porque não se vendem cá estes cigarros. Então quando vem um amigo, me traz.

(...)

Maria: A fonte de sua poesia é Portugal, o mundo ou é interior?

Sophia: Daí eu não sei a diferença entre interior e exterior. Eu vejo com os olhos, ouço com os ouvidos, como com os dentes, sinto com o nariz. Quanto a minha poesia, é Portugal, é interior e é exterior. Tenho uma parte intelectual, evidentemente. Tem uma parte de cultura, tem uma parte intelectual. Mas tem uma parte vivida, não é?

(Entrevista concedida a Maria Maia, em Lisboa, maio de 2000.)

UM POEMA DE CASÉ LONTRA MARQUES

FALA BREVE

Sou o corpo que faz sombra sobre o homem que morre,
o homem não emudecido?
Sou o corpo que o conclui, no momento
de sua extinção,
sou o corpo que o conclui, apesar
de incapaz
de alcançar a precisão?
Saberei seguir o eco que nos contorna, no topo
de uma noite
instalada nas têmporas?
Recusarei, ainda que jamais persistente,
o que descrevemos
como esquecimento receando, no entanto,
assimilar
sua lucidez?
Recusarei a raiva – quase nomeada –
que o sono
– quando refeito – sequer empalideceu?
Poderei repousar
no chão de sua asfixia?
Como delinear
seu incêndio, dedilhar sua hora?
Como preparar
a manhã para uma morte já remota?

(Do livro Saber o sol do esquecimento. Vitória: Aves de Água, 2010)

RELENDO FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO (VI)

17

Escrevo como um animal, mas com menor
perfeição alucinatória. Não sei imprimir as três linhas
convergentes do pé da gaivota, nem os pomos
leves da pata dos felinos. Só de uma forma rudimentar
escrevo, e estou a predestinar-me ao fim.
Depois de tantos séculos posso afirmar
que a escrita é uma escravidão dura.
Sei que é inútil e desumano mover as mãos
assim. Nem estou convicta de que seja digno
escrever desta maneira; é uma manufatura triste,
quando as mãos podiam apenas escarvar
na terra ou no corpo. Podem ficar as palavras
somente na fita magnética como nas cabeças loiras.
Nada na infância nos deveria obrigar
a traçar as patas dos roedores repelentes
que são letras. O som da boca deve escrever-se
no écran, com a nova razão da nova máquina
da realidade. Na areia, porém, ou no mosaico molhado
terei de aperfeiçoar a minha pegada. Aproximar
dela a mão até alcançar a harmonia do trilho
do escaravelho. Uma fieira de montículos
e ranhuras até o infinito que para ele é o mar.
Há quantos séculos os seres humanos me aprisionaram
no mito da caligrafia. Como tem sido penoso esse gesto,
há tanto tempo, e só eu o renego, porque sinto
a opressão com que alguém o tornou mais nobre
do que a minha fala ou a minha visão, únicas
propensões inatas. Prefiro aprender pormenorizadamente
a conservar uma impressão digital. Há um pensamento
abstrato e maquinal que decora a História com inteligência
mecânica, e por isso é supérfluo escrever. Só alguns
raros escribas, como os desenhadores de máquinas,
seriam necessários. E poderia descansar a cabeça
no regaço da lama.

Ensinaria à infância a gravar
no pó de talco a palma das mãos e a considerar as palavras
modulações da voz pura, sem a mancha embaciada
compacta que paira diante dos olhos sempre
que se fala. A mancha que se desloca no raio de visão
e desbota qualquer imagem como a chama de uma vela
com a fuligem constante a torná-la opaca.

(Do livro Área Branca, 1978)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O SAMURAI





“Aos treze anos, Miyamoto Musashi matou um adversário no que seria o primeiro de uma série de célebres combates de espada. Aos trinta, já tinha despachado mais de sessenta lutas sem perder nenhuma. Ele viveria outros trinta anos sem liquidar mais ninguém. Continuaria a participar de combates, mas agora simplesmente neutralizando os ataques dos adversários até eles reconhecerem suas habilidades nas mais diversas técnicas.

Musashi foi uma lenda em seu tempo. Ignorando as convenções, ele preferia uma espada de madeira e em seus anos de maturidade quase nunca lutou com uma arma autêntica. Era mestre em pegar seus oponentes no contrapé com recursos psicológicos exaustivamente estudados. No auge de seus poderes, começou a se preparar artística e espiritualmente, transformando-se num dos mais respeitados pintores a nanquim e notável praticante de caligrafia tradicional, da poesia e da cerimônia do chá. Ele orientava seus estudos tão arduamente conquistados sobre as artes combatentes para metas espirituais zen-budistas.”

(William Scott Wilson, in O Samurai — A Vida de Miyamoto Musashi. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.)

sábado, 12 de junho de 2010

GALERIA: ALBERTUS PICTUR


















A morte disputando uma partida de xadrez, diocese de Estocolmo.

RELENDO FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO (V)

49

Passa no coração uma agulha
o que é uma elipse antiga.
Algo que poisasse os pés junto
a mim. Túmulo que se fechasse.
Os trinados no fim do canto.

Um choro mais terrível
do que a morte. Corre em espiral.
Cai como um tampo. Não é líquido.
São torrões de terra. Um após

o outro. Não suporto esta imagem
transposta. Quero ser real.
Molhar os olhos em vez de
os transformar. Desconhecer
para sempre o pensamento.

Ignorar as pedras que me fazem
assemelhar a si lágrimas.
Passam as esporas das aves
à superfície. Linhas
de que não tolero a dor.

Estar a ser algo no chão.
Pisar-me. Não saber quem
é o sujeito. Destruição breve.
Dou as palavras que conheço.

(Do livro Área Branca, 1978)

RELENDO FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO (IV)

ANTE-IMAGEM

Espelho de um espelho, o líquido olhar turva-se:
o amianto, hiato entre o momento e o longe.
Estou como ali, confronto o quê, ou quando: o anterior,
érebro, a noite (invoco a prata, que iluminasse);
O que sabia hesíodo ante seu vidro, os dias?
Retomo o ovo (um astro) em meu espaço;
olhos da imagem, antes do óxido, como a invocariam?

(Do livro Era, 1974)


MARVÃO

Se eu descer a encosta para a proximidade,
ouvir o corvo, defini-lo e comover-me
com o sussurro, e as vozes
humanas forem inesquecíveis.


LOUSÃ II

Aquela mulher começa a ser objeto
da escrita. Desloco-a.


ZONA DAS METÁFORAS

Estou só, na zona das metáforas
(que é todo o pensamento),
em nenhum resíduo nada exprimo
(mas sempre metaforizo).
Não sinto a solidão total
dos poemas, talvez grutas,
o mar quieto, nem silêncio.
Apenas espero o outro,
um amor esplêndido,
alheio e desejável.

(Do livro Visões Mínimas, 1968-1974)

quinta-feira, 10 de junho de 2010

UMA CONVERSA COM WILSON BUENO








Sua prosa utiliza recursos do texto poético, como os jogos sonoros, imagens de alto impacto, invenções de linguagem, resultando em esmeraldas vivas. Qual é a fronteira entre prosa e poesia?


Bueno — Tudo é a arte da poética, a meu ver. Escrevo assim, sempre escrevi assim. Não sei escrever sem ser íntimo. A prosa retém a poesia e é por ela gerada, num processo que aspira, antes de tudo, a ser livre. Acho que a literatura pode ser o máximo de liberdade que desfrutamos sobre a Terra — e eu quero amar o amor da escrita, o gozo epifânico de sua irradiação. Eu não consigo escrever dividido, amarrado pelo cânone e pela norma. Ora, se aquilo ali é o meu mais exasperado espaço de liberdade, é nele que devo me pôr a vigir. E tudo é a poesia das coisas. Viver já é um ato poético em si, para lembrar Hölderlin. E, dos atos poéticos, o que, convenhamos, requer de nós mais coragem, bravura, heroísmo – chame do que se quiser chamar ao desassombro. Indispensável para que sobrevivamos à perplexidade de nos flagrarmos vivos.

Em várias de suas novelas, há citações da língua e do imaginário guarani, não raro mesclados ou transfigurados por sua própria criação fabulatória. Quando começou o seu interesse pelas culturas dos índios? Você é um estudioso do folclore das nações indígenas?

Bueno — Não, não me considero um expert indigenista, digamos assim. Minha curiosidade com relação ao tema às vezes penso que seja anterior a mim mesmo... Nasci no sertão, aquele tempo, — e nem faz tanto tempo assim —, que o Paraná tinha sertão — a floresta virgem, a fauna nativa quase intocada. Sou bisneto de índia guarani com alemão. Imagina a mistura... Minha bisavó, (mãe de minha avó materna, esta uma bugra de olhos azuis e que comia com as mãos), foi caçada a laço no interior paulista por um germano de fuzilantes olhos azuis. Faço uma pequena homenagem a este meu bisavô em Tio Roseno e claro, bem mais evidente, à minha bisavó índia. A coisa índia está em mim quase como uma segunda pele, sou um bugre angustiado, perplexo olhando as árvores da rua, os automóveis, o trânsito vertiginoso.

Como é o seu processo criativo? Você escreve todos os dias? Elabora o enredo antes de escrever, ou desenvolve a narrativa durante o ato da escritura? Como surgem os personagens? A linguagem molda a elaboração fabulatória, ou as palavras seguem o ritmo da história?

Bueno — Curioso, penso que não escrevo nunca... Estou o tempo inteiro me culpando e me cobrando, mas estou ali escrevendo, escrevendo, escrevendo... São caderninhos, cadernões, agendas, folhas soltas, guardanapos.... E quando não estou literalmente grafando estou pensando no que grafar, como grafar, de que modo grafar. E entre uma coisa e outra estou sempre numa festa constante com as poucas pessoas que me são íntimas, esquecido de que exista a Literatura, e me culpando de que não esteja escrevendo... Sou um preguiçoso olímpico, desses que mourejam noite e dia... Mas acho que é porque encontrei um modo mais leve de exercer o ofício — vou escrevendo sem grandes pretensões a não ser a de fazer coisas que me dêem a satisfação plena de que eu esteja, quem sabe, capturando o improvável...

(Leiam a íntegra da entrevista que fiz com Wilson Bueno no site Cronópios.)