domingo, 28 de fevereiro de 2010

RELENDO GARY SNYDER (VI)


FORA DA TRILHA
Para Carole

Somos livres pra encontrar nosso próprio caminho
Sobre pedras – por entre as árvores –
Onde não há nenhuma trilha. O cume e a floresta
Se apresentam aos nossos olhos e pés
Que decidem por si mesmos
Em sua sabedoria ancestral de ir
Aonde a vida selvagem nos levará. Nós já
Estivemos aqui antes. É de algum modo mais profundo
Do que seguir por sendas que dispõem algumas rotas
Às quais você se apega,
Todos os cursos são possíveis, muitos darão resultado,
Serem bloqueados é seu tipo de prazer próprio,
Atravessar é uma alegria, as rotas secundárias
E os desvios revelam troncos caídos e flores,
Rastros de cervo direto pra cima, rastros de esquilo
Transversais, os afloramentos nos arrastam além.
Descansar em troncos de árvores,
Mudar o passo no leito de rocha, inclinados e olhando tudo
Ambos fazendo escolhas – segurando os rumos agora –
E depois reunindo; eu estou certo, você está certa,
Terminamos juntos. Mattake, “Cogumelos Matsutake”
Elevações na base dum toco. Isto é vida selvagem!
Nós rimos, selvagem com certeza,
Porque nenhum lugar é mais belo do que outro,
Todos os lugares são totais,
E nossos tornozelos, joelhos, ombros &
Quadris sabem bem onde eles estão.
Relembro agora como o Tao Te
Ching
expõe isto: a trilha não é o caminho.
Nenhuma senda levará você até lá, estamos fora da trilha,
Você e eu, e nós escolhemos isto! Nossas viagens ao ar livre
Através dos anos têm sido prática
Desta perambulação juntos,
Nas montanhas recônditas
Lado a lado,
Sobre pedras, por entre as árvores.

Tradução: Luci Collin

RELENDO GARY SNYDER (V)


COPAS DOS PINHEIROS

na noite azul
névoa de geada, o céu fulge
com a lua
as copas dos pinheiros
viram azul-neve, desaparecem
no céu, no gelo, na luz estelar.
o rangido de botas.
rastos de coelho, rastos de cervo,
o que reconhecemos.

RAÍZES

Remover e cavar
O macio solo de cinza
Cabos de enxada são curtos,
O curso do sol é longo
Os dedos fundo na terra buscam
Raízes, arrancá-las; sentir por inteiro;
Raízes são fortes.

Tradução: Luci Collin

RELENDO GARY SNYDER (IV)


CONSELHOS DE ARTES

para Jacques Barzaghi

Porque não há arte
Há artistas

Porque não há artistas
Precisamos de dinheiro

Porque não há dinheiro
Nós damos

Porque não há nós
Há arte

Tradução: Ricardo Corona

RELENDO GARY SNYDER (III)

UMA MANHÃ DE OUTONO EM SHOKOKU-JI

Noite passada mirando as Plêiades,
Tragando o ar enluarado
Lembrança amarga como vômito
Sufocou minha garganta.
Desenrolei um saco de dormir
Sobre as estrelas da varanda
Sob profusas estrelas de outono.
Em sonho você apareceu
(Três vezes em nove anos)
Agitada, impassível, acusante.
Acordei envergonhado e furioso:
As guerras insensatas do coração.
Quase aurora. Vênus e Júpiter.
Primeira vez que vi
Os dois tão próximos.

Tradução: Luci Collin.

RELENDO GARY SNYDER (II)

UMA NOITE DE PRIMAVERA
EM SHOKOKU-JI

Neste maio faz oito anos
Que à noite passeamos sob as flores
Dum cerejal no Oregon
Tudo que eu então desejava
Já esqueci, menos você.
Aqui esta noite
Num jardim da velha capital
Sinto o fantasma tremente de Yugao
Recordo do frescor do seu corpo
Nu sob um leve vestido de verão.

Tradução: Luci Collin

RELENDO GARY SNYDER (I)

DEPOIS DO TRABALHO

A cabana e algumas árvores
pairam na névoa que sopra

Eu tiro sua blusa
e aqueço minhas mãos frias
nos seus seios.
você ri e estremece
descascando alho junto ao
calor do fogão.
recolho o machado, o ancinho,
a lenha

nos encostaremos na parede
um contra o outro
um guisado cozinha devagar no fogo
enquanto anoitece
bebendo vinho

Tradução: Luci Collin

DOIS POEMAS DE MARCELA CIVIDANES


RITMO DA AUSÊNCIA


Verdes janelas saltam horizontes

arejando o abstrato

com planos jazzísticos.

Feixes de sons

se entrelaçam

na luz branca

repercutida de faces.

A mente em tumulto,

caminho no ritmo

das cores ausentes

para relaxar a dor.


ESTRANGEIRA

Seu caos me transforma corpo adentro;

ouço os gritos do meu silêncio,

reinvento todos os caminhos

e sigo, inesgotavelmente,

lua que acolhe todos os ventos.

Inunda-me incandescente,

sou estrangeira em meu próprio mar

— à beira dos sentidos, de um só sentido

DOS DIÁRIOS DE VIAGEM DE BASHÔ (III)

Numa clara noite outonal de lua cheia, passando pela praia de Suma, um poeta de Kyoto escreveu:

sombra dos pinheiros
lua da décima quinta noite
poeta Chunagon

A imagem deste poema não me saiu da cabeça, até que neste outono tomei novamente a estrada, possuído pelo desejo de ver a lua cheia nascendo sobre as montanhas do santuário de Kashima. Acompanhavam-me nesta jornada um jovem e um monge errante. Este, como um corvo, trajava uma veste negra e portava nas costas um pequeno relicário com a imagem de Buda recém-iluminado. Caminhava a nossa frente empunhando firmemente seu cajado, como se tivesse acesso ao mundo através do Portal sem Portas. Eu também, embora não fosse monge ou leigo, estava de negro, vagueando como um morcego que se passava ora por pássaro, ora por rato. Tomamos o barco perto de casa e navegamos até Gyotaku, onde retomamos nosso percurso.

Cobrimos nossas cabeças com chapéus feitos de folhas de cipreste, gentilmente oferecidos por um amigo da província de Kai, e rumamos para o vilarejo de Yawata, onde encontramos a imensa pradaria de Kamagai-no-hara. Conta-se que na China existe um campo tão extenso que os olhos num só relance avistam mais de mil milhas. Aqui nest lugar, a pradaria avança de forma contínua até o horizonte, onde encontra os imponentes picos do monte Tsukuba.

(Do diário de viagem de Matsuo Bashô intitulado Visita ao santuário de Kashima, in: Trilha estreita ao confim. Trad.: Alberto Marsicano. São Paulo: Iluminuras, 1997.)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

DOS DIÁRIOS DE VIAGEM DE BASHÔ (II)


Luas e sóis são viajantes da eternidade. Os anos que vêm e que vão são viajantes também. Aqueles que passam a vida a bordo de navios ou envelhecem montados a cavalo estão sempre em viagem, e seu lar é lá onde essas viagens os levam. Os homens de antigamente, muitos morreram pelos caminhos e a mim também, durante os últimos anos, a visão de uma nuvem solitária levada pelo vento me inspirou idéias contínuas de meter o pé na estrada. O ano passado dediquei a vagar pela costa. No outono, voltei a minha cabana às margens do rio e a limpei das teias de aranha. Aí me surpreendeu o fim do ano. Quando veio a primavera e houve neblina no ar, pensei em ir a Oku, atravessando a barreira de Shirakawa. Tudo o que via me convidava a viajar, e estava tão possuído pelos deuses que não podia dominar meus pensamentos. Os espíritos do caminho me fizeram inúmeros sinais, e eu descobri que não podia continuar trabalhando.

Remendei minhas calças rasgadas e troquei as tiras do meu chapéu de palha. A fim de fortalecer as pernas para a viagem, me untei de “moka” queimada. Logo a idéia da lua na ilha de Matsushima começou a apoderar-se de meus pensamentos. Quando vendi minha cabana e me mudei para o sítio de Sampu para esperar ali o dia da partida, pendurei este poema numa viga da minha choça:

a cabana de ervas secas
(o mundo tudo muda)
vira casa de bonecas

(Trecho inicial do diário de viagem Sendas de Oku, de Matsuo Bashô. Trad.: Paulo Leminski. In: Bashô, a Lágrima do Peixe. São Paulo: Iluminuras, 1983.)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

DOS DIÁRIOS DE VIAGEM DE BASHÔ (I)

O vento de outono inspirou em meu coração o profundo ensejo de contemplar a lua cheia nascendo sobre o alvo cimo do monte Obasute. Esta escarpada montanha na província de Sarashina era o local onde, em tempos remotos, os habitantes das aldeias abandonavam os muito idosos em meio às rochas. Meu discípulo Etsujin resolveu com muita alegria me acompanhar, como também um aldeão enviado por meu amigo, que nos ajudaria a transpor as difíceis passagens. A estrada de Kiso, que nos conduziu a este local, era escarpada e perigosa, serpenteando pelas íngremes encostas e altos penhascos. Como nenhum de nós era suficientemente experiente para esta difícil travessia, sentimos a necessidade de ajuda mútua, pois qualquer descuido naquelas alturas poderia ser fatal. Este sentimento nos transmitiu a coragem necessária para enfrentar esta magnífica jornada.

A certo ponto do caminho, encontramos um velho monge zen, carregando um pesado fardo, ofegante, com um olhar profundo e penetrante. Meus companheiros simpatizaram logo com ele e colocamos o fardo sobre um dos cavalos. No alto, centenas de alvos cumes erguiam-se às alturas no desfiladeiro, e, à nossa esquerda, um vertiginoso precipício se arrojava sobre os turbilhões abissais da correnteza de um riacho. O cavalo ia tangenciando a encosta e eu não conseguia parar de pensar que um pequeno descuido nos faria despencar.


(Do diário de viagem de Matsuo Bashô intitulado Viagem a Sarashina, in: Trilha estreita ao confim. Trad.: Alberto Marsicano. São Paulo: Iluminuras, 1997.)

NA VEIA DO DRAGÃO

Caros, hoje passei a tarde com meu filho Iúri no Parque da Aclimação, uma das áreas verdes mais bonitas da cidade de São Paulo (apesar do desleixo de Kassab na preservação das áreas públicas, mas esta é outra história). O parque é um verdadeiro santuário de árvores. Eu sempre gostei de estar em lugares assim, no meio do mato, entre rios, lagos, árvores, onde há um tipo diferente de energia (os antigos taoístas chineses chamavam esses recantos de “veias do dragão”). Desde pequeno, levo Iúri a parques, sítios e fazendas, para que ele se habituasse à visão de montanhas, neblinas e cachoeiras; para que ele visse vacas, cavalos e pavões, e não apenas seriados de televisão e atrações de shopping center. Do mesmo modo que o incentivei a gostar de ver quadros, esculturas e a ler; ele perdeu o gosto de ir a museus comigo (tudo tem seu tempo), mas adora ler, e eu não faço nenhuma restrição a suas escolhas. Às vezes, ele passa a tarde inteira lendo mangás do Naruto, o Diário de um Banana, algum volume de Harry Potter ou as Profecias de Nostradamus, não importa; o que faz a diferença, sim, é ele gostar de ler, incorporar esse hábito de modo prazeroso. Leitura tem que dar prazer, ponto. Bem, chegamos em casa agora, esgotados; ele vai assistir a um jogo de futebol europeu na televisão, e eu vou ler algumas peças de Gil Vicente, para depois tomar um bom vinho, ouvir jazz e dormir. Sinceramente: com pequenas coisas assim, tão simples, eu me sinto feliz, de verdade.

UM POEMA DE ADEMIR ASSUNÇÃO

5 DIAS PARA MORRER

para Hector Babenco

morreremos loucos, Ana

os sapatos
novos
em cima da mala —
mala notte
o dia, a pior
foto: olhos úmidos
no vídeo
flashbacks:
a virilha imunda
do marinheiro
os eletrodos frios
nas têmporas
as pílulas coloridas
peixes
num aquário
cujo vidro
quase se quebra
toda vez
que o tocamos

sim, Ana
morreremos loucos
mas
esta noite
dormiremos
juntos

(Do livro Zona Branca. São Paulo: Altana, 2001)

O ANO DO TIGRE

Caros, hoje eu fui ao templo budista Zulai, em Cotia, com meu filho Iúri e minha irmã Mildred, para assistir às comemorações do ano-novo chinês. Foi uma festa com danças típicas, incluindo a dança do dragão, música de tambores e demonstrações de artes marciais, como o Kung Fu e o Tai Chi Chuan. As equipes fizeram, inclusive, apresentações breves de armas como a espada, o bastão, a lança e a alabarda. Muito mais divertido do que o carnaval, pelo menos para mim. Após as exibições, comi um pão de legumes chinês e fui ao templo para meditar um pouco e acender um incenso para o Buda. Saímos de lá no final da tarde, e não perdemos a oportunidade de visitar novamente o belo lago do templo. Acredito que o Ano do Tigre trará mudanças boas para mim. Estou confiante em ingressar no doutorado, conseguir um novo emprego e realizar as mudanças necessárias em minha vida. O vento sussurrou em meu ouvido que a boddhisattva Kwanin sorriu para mim. E eu sorrio para ela.

CONVERSANDO SOBRE POESIA (V)

Paul Valéry, em conhecido ensaio publicado em 1939, estabelece uma distinção entre a prosa e a poesia, afirmando que a primeira assemelha-se ao andar, e a segunda ao dançar. Estas imagens remetem ao caráter mais utilitário da prosa, onde importam a clareza e o sentido, enquanto na poesia contam mais o andamento rítmico, a construção de paisagens, a estranheza vocabular e sintática, o trabalho com a metáfora e outros recursos linguísticos, que atribuem ao texto seu valor artístico. Na prosa, está em primeiro plano a função comunicativa, conforme o conceito de Roman Jakobson: o que vale é a informação, e podemos pensar aqui num manual de medicina, num código jurídico, num tratado de filosofia ou em livros de sociologia ou contabilidade. Já na poesia, onde o artesanato semântico é ele mesmo a informação a ser transmitida, temos a função poética, o sentido construído pela forma. Sem dúvida, essa distinção entre prosa e poesia admite exceções: obras como o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, as Galáxias, de Haroldo de Campos e o Catatau, de Paulo Leminski, são textos em prosa permeados de poeticidade, numa voluntária superação de dicotomias, sinalizando também a dissolução das fronteiras entre os gêneros (tendência cujos precursores foram o Fausto de Goethe e os Pequenos poemas em prosa de Baudelaire).

Por sua capacidade de fluidez, simbiose e mutação, a poesia relaciona-se com outras formas de escrita perturbando-as, criando uma instabilidade textual, distante de qualquer idéia de imobilidade ou permanência. Sendo um pouco mais audaciosos, podemos pensar na poesia além da própria literatura, manifestada na canção, no balé, na pintura, no drama cênico, enfim, em todas as criações onde a linguagem está enamorada pela linguagem. Tudo é a arte da poética, de certa forma, quando o dançarino, a dança e o dançar são um único e inquietante movimento. Como afirma Antonio Risério, em seu Oriki Orixá , a poesia não se restringe ao código escrito, inclusive por ser anterior a ele: os primeiros poemas de que temos notícia pertenciam à tradição oral (como os mitos fundadores indígenas, africanos ou escandinavos) e eram transmitidos na forma de canto, com a colaboração da música, coreografia, vestuário, mito e símbolo: arte mágica, onde cada palavra não era apenas a representação de uma coisa, e sim a própria coisa, na forma de som. Não se tratava de imitar, mas de criar realidades, numa síntese entre estética e teurgia. Disso resulta o caráter sagrado, de invocação, dos mantras indianos e dos orikis nagô-iorubás: ao pronunciarem o nome de seu deus, este era corporificado como vibração sonora (o que hoje chamaríamos de isomorfismo, o conteúdo igual à forma).

O caráter mágico ou encantatório da poesia, sem dúvida, estava relacionado a formas de pensamento analógico e ritualístico, mas podemos ver suas irradiações em toda a evolução da escritura poética, que nunca renunciou à vocação taumatúrgica de construir universos “com sua própria fauna e flora”, no dizer do poeta chileno Vicente Huidobro, protagonista do criacionismo. Coube às vanguardas históricas, aliás, a recuperação da visualidade, do gesto e do movimento na poesia, aliando a pesquisa fônica a toda sorte de recursos expressivos. Podemos recordar as experiências dadaístas de Kurt Schwitters, dissolvendo as fronteiras entre poesia e pintura em sua arte MERZ; os textos mais radicais de Antonin Artaud, onde todo o sentido está na sonoridade abstrata (“Katanam anankreta karaban kreta”); as performances de Raul Zurita, que faz da mutilação pública do próprio corpo um recurso poético; e a recente incorporação da tecnologia digital nas criações de Augusto de Campos e Arnaldo Antunes, que criam poemas visuais com efeitos de sonoridade e movimento, ampliando a capacidade de geração e multiplicação de mensagens e rotas de leitura. De certo modo, a vanguarda retoma e atualiza a vitalidade (e a virtualidade) das poéticas ancestrais, emancipando-se do espaço bidimensional da página impressa para projetar-se em outras dimensões, inclusive holográficas, exigindo do leitor ou espectador uma sensibilidade e compreensão diferentes daquelas requeridas para a leitura de textos usuais. Essa ampliação das formas de representação estética tem como corolário uma outra visão da realidade: mutável, não estática; descontínua, não linear; espiralada, não retilínea.

Toda mudança de paradigma provoca, em medidas diversas, o entusiasmo e o desconforto, a apologia e a negação furiosa, nem sempre por motivos estritamente literários, mas também ideológicos (no sentido original dado por Marx aos pressupostos de Feuerbach). Quando se censura a vanguarda por seu suposto hermetismo ou obscuridade, os anátemas são aplicados à sua “extravagância” formal, mas também a sua “ausência de conteúdo” ou “alienação” (para recuperarmos uma acusação de heresia habitual nos anos 60 e 70). Os poetas experimentais estariam distantes da “realidade” e do “mundo”, isolados em modernas torres de marfim. Caberia perguntar, aqui, quais são os conceitos de “realidade” e de “mundo” defendidos por esses críticos, e que estão na essência de textos literários de imediata compreensão, mas escasso valor artístico.

Para os acadêmicos de formação sociológica, discípulos do modelo desenvolvido por Luckács, a realidade é um fato imediato e objetivo sujeito a investigação científica, enfatizando aspectos econômicos ou sociais, dentro de uma linha histórica evolutiva. Essa concepção, que dominou o cenário europeu nas primeiras décadas do século passado, está eivada de certo determinismo (diríamos até fatalismo) que considera todas as criações intelectuais ou estéticas como subprodutos da cadeia produtiva. A partir dessa visão, de indiscutível miopia, surgiram propostas como a do realismo socialista, que intentou ser o “espelho do real”, refletindo as injustiças do capitalismo e projetando, ao mesmo tempo, o futuro socialista (considerado inevitável, dentro de uma perspectiva retilínea e darwiniana da história). Política e estética estavam ligadas, de modo umbilical, a essa hipótese de “realidade”, hoje insustentável, em seu viés stalinista, não apenas pelas mudanças no campo internacional, mas também pelas atualizações conceituais e de paradigma no campo da ciência (em especial com o advento da física quântica). O pensamento científico é hoje menos dogmático e mais propenso a aceitar a realidade como uma caixa de Pandora, que possui em seu interior uma imensa variedade de eventos e transformações possíveis. Em sintonia com esse espírito teórico renovado, podemos afirmar que a poesia experimental não está distante da “realidade” e do “mundo”, mas sim de concepções lineares e limitadas de realidade e mundo, que o tempo se encarregou de enterrar.

Ao afirmar a impermanência, o paradoxo, a ambigüidade e a mutação no campo semântico, o poeta não está apenas recusando certa previsível normalidade da escrita e visões estáticas e anacrônicas de mundo, mas também indicando, em sua materialidade significante, uma compreensão do real como um ciclo incessante de deslocamentos, aproximações e metamorfoses. Temos aqui outro tipo de mímese: não a imitação ingênua de objetos e situações, com seus significados e desdobramentos definidos a priori, mas um ícone do real como ser em travessia. Na literatura brasileira contemporânea, essa expansão do sentido pela construção inusitada ou excêntrica é visível em autores como Horácio Costa, Wilson Bueno e Josely Vianna Baptista, precedidos pelo Haroldo de Campos de Galáxias e dos estudos sobre o barroco. Em seu livro A Arte no Horizonte do Provável, o poeta paulista fez uma interessante distinção entre a abordagem diacrônica da literatura, baseada num fio evolutivo histórico, e a sincrônica, que busca relações de proximidade entre autores de diferentes períodos epocais. Esse é o método que utilizou em seu estudo Uma arquitextura do barroco (em A Operação do Texto), que aponta afinidades entre autores tão diversos como o cubano Lezama Lima, o grego Lícofron, o brasileiro Sousândrade e o chinês Li Shang Yin, distanciados na geografia e no tempo regular, mas muito próximos em seu ostinato rigore e capacidade imaginativa. A aproximação, que a princípio pode parecer arbitrária e impulsiva, é fundadora de uma concepção literária e filosófica que animou os autores mais inventivos da América Latina, a partir dos anos 70, dentro dessa vertente que se convencionou chamar de Neobarroco. Num poema como O Napoleão de Ingres, de Roberto Echavarren, por exemplo, temos uma collage de signos de diversos territórios e culturas, apontando a mestiçagem, a impureza, o paradoxal e o ambíguo como elementos constituintes de nossa realidade: “A cor da seda, sua textura / são quase metálicos: um zepelim no céu / azul-da-prússia, um dragão chinês / voando em seu troar de metais”. Essa mescla de elementos díspares remete à própria formação social e cultural latino-americana, que cozinhou no mesmo caldeirão signos e referenciais europeus, asiáticos, indígenas e africanos, numa antropofagia que perdura até os dias de hoje. Além da diversidade, a desigualdade da convivência entre tecnologia e subnutrição, crescimento industrial e miserabilidade, erotismo e religião, entre outras manifestações contraditórias do nosso continente, colaboram com o conceito do Neobarroco e sua visão de um mundo plural, irregular, multifacetado, sublime e trágico.
(Texto publicado originalmente na revista Continente Multicultual.)

UM POEMA DE MARINA TSVETÁIEVA

ENSAIO DE CIÚME

Como vai indo com a outra?
Tão fácil, não? – basta um impulso
no remo – com a orla, a minha
imagem se borra, se afasta,

vira ilha flutuante (no céu,
- na água, não!).
Alma e alma,
irmãs, sim – mas, amantes, não!
Uma é destino; outra – sem fim!

Que tal viver com tal pessoa
comum – vida sem divindades?
Jogou do trono-olimpo a deusa-
rainha, abdicou – e a coroa

de sua vida, como fica?
Ao despertar, como pagar
o preço de imortal banal-
idade – como? Menos rica?

“Chega de susto e suspeita!
Quero um lar!”. Mas... e a vida
só – com uma mulher qualquer –
Você – eleito de uma eleita?

Ah... e a comida? Apetitosa?
Você se queixa quando enjoa?
depois do topo do Sinai,
ir conviver com uma à-toa

da parte baixa da cidade,
uma coitada? Gostou da anca?
O açoite-vergonha de Zeus
ainda não vincou-lhe a estampa?

Entre viver e ser, dá para
contar? E como encara
o caro amigo a cicatriz
da consciência-meretriz?

Viver com boneca de gesso
– de feira!? Você me acha cara?
depois de um busto de Carrara,
um susto de papier-mâché?

(O deus que eu escavei de um bloco
só me deixou os ocos). Enleva
viver com uma igual a mil,
quem já teve a Lilit primeva?

Não lhe matou a fome a boa
bisca, que atendeu aos pedidos?
Como viver com a simplória
que só possui cinco sentidos?

Enfim, por fim...: você é feliz,
no sem-fundo dessa mulher?
Pior, melhor, igual a mim,
nos braços de um outro qualquer?

Tradução: Décio Pignatari

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

UM POEMA DE VLADIMIR MAIAKOVSKI

LILITCHKA!
EM LUGAR DE UMA CARTA

Fumo de tabaco rói o ar.
O quarto –
um capítulo do inferno de Krutchônikh.
Recorda –
atrás desta janela
pela primeira vez
apertei tuas mãos, atônito.
Hoje te sentas,
no coração – aço.
Um dia mais
e me expulsarás,
talvez, com zanga.
No teu “hall” escuro longamente o braço,
trêmulo, se recusa a entrar na manga.
Sairei correndo,
Lançarei meu corpo à rua.
Transtornado,
tornado
louco pelo desespero.
Não o consintas,
meu amor,
meu bem,
digamos até logo agora.
De qualquer forma
O meu amor – duro fardo por certo –
pesará sobre ti
onde quer que ti encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
Num último grito estronde.
Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.
Quando o elefante cansado quer repouso
Ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
Para mim
Não há sol,
E eu não sei onde estás e com quem.
Se ela assim torturasse um poeta,
ele
trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com o seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos – rodopiante carnaval –
dispersarão as folhas dos meus livros...
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?
Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.

26 de maio de 1916. Petrogrado.

Tradução: Augusto de Campos

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

UM POEMA DE HERBERTO HELDER

O AMOR EM VISITA
(fragmento)

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.

— Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
— Então cantarei a exaltante alegria da morte.

POEMAS DE HUIDOBRO (II)


ALTAZOR, CANTO I
(Fragmentos)

Altazor, por que perdeste tua primeira serenidade?
Que anjo mau parou à porta de teu sorriso
Com a espada em punho?
Quem semeou a angústia nas planícies de teus olhos
como o adorno de um deus?
Por que um dia de repente sentiste o terror de ser?
E esta voz que te gritou vives e não te vês viver
Quem fez convergir teus pensamentos na encruzilhada de todos
os ventos da dor?
Rompeu-se o diamante de teus sonhos em um mar de estupor
Estás perdido Altazor
Só em meio ao universo
Só como uma nota que cresce nas alturas do vazio
Não há bem não há mal não há verdade nem ordem nem beleza

Onde estás, Altazor?
A nebulosa da angústia passa como um rio
E me arrasta segundo a lei das afinidades
A nebulosa solidificada em aromas foge de sua própria solidão
Sinto um telescópio que me apontam como um revólver
A cauda de um cometa me açoita o rosto e passa repleta de eternidade
Buscando infatigável um lago quieto onde possa refrescar sua tarefa ineludível
Altazor morrerás
Secará tua voz e serás invisível
A Terra seguirá girando sobre sua órbita precisa
Temerosa de um tropeção como o equilibrista sobre o arame
que ata as visões do pavor.
Em vão buscas olho enlouquecido
Não há porta de saída e o vento desloca os planetas
Pensas que não importa cair eternamente se consegues escapar
Não vês que estás caindo, já?
Limpa tua cabeça de preconceito e moral
E se querendo alçar-te nada tens alcançado
Deixa-te cair sem deter tua queda sem medo ao fundo da sombra
Sem medo ao enigma de ti mesmo
Talvez encontres uma luz sem noite
Perdida nas gretas dos precipícios
Cai
Cai eternamente
Cai ao fundo do infinito
Cai ao fundo do tempo
Cai ao fundo de ti mesmo
Cai o mais baixo que se possa cair
Cai sem vertigem
Através de todos os espaços e de todas as idades
Através de todas as almas de todos os anelos e todos os naufrágios
Cai e queima ao passarem os astros e os mares
Queima os olhos que tem vêem e os corações que te aguardam
Queima o vento com tua voz
O vento que se enreda em tua voz
E a noite que tem frio em sua gruta de ossos

Cai em infância
Cai em velhice
Cai em lágrimas
Cai em risos
Cai em música sobre o universo
Cai de tua cabeça a teus pés
Cai de teus pés a tua cabeça
Cai do mar à fonte
Cai ao último abismo do silêncio
Como o barco que afunda apagando suas luzes

(...)

Sou todo homem
O homem ferido por quem sabe quem
Por uma flecha perdida do caos
Humano terreno desmesurado
Sim desmesurado e o proclamo sem medo
Desmesurado porque não sou burguês nem raça fatigada
Sou bárbaro talvez
Desmesurado enfermo
Bárbaro limpo de rotinas e caminhos marcados
Não aceito vossas selas de segurança cômoda
Sou o anjo selvagem que caiu uma manhã
Em vossas plantações de preceitos.
Poeta
Antipoeta
Culto
Anticulto
Animal metafísico carregado de angústias
Animal espontâneo direto sangrando seus problemas
Solitário como um paradoxo
Paradoxo fatal
Flor de contradições dançando um fox-trot
Sobre o sepulcro de Deus
Sobre o bem e o mal
Sou um peito que grita e um cérebro que sangra
Sou um tremor de terra
Os sismógrafos assinalam meu passo pelo mundo
Rangem as rodas da terra
E vou andando a cavalo em minha morte
Vou colado à minha morte como um pássaro ao céu
Como uma flecha na árvore que cresce
Como o nome na carta que envio
Vou colado à minha morte
Vou pela vida colado à minha morte
Apoiado no bastão de meu esqueleto
O sol nasce em meu olho direito e se põe em meu olho esquerdo
Em minha infância uma infância ardente como um álcool
Me sentava nos caminhos da noite
A escutar a eloquência das estrelas
E a oratória da árvore
Agora a indiferença neva na tarde de minha alma
Rompam-se em espigas as estrelas
Parta-se a lua em mil espelhos
Volte a árvore ao ninho de sua amêndoa
Só quero saber por quê
Por quê
Por quê
Sou protesto e arranho o infinito com minhas garras
E grito e gemo com miseráveis gritos oceânicos
O eco de minha voz faz troar o caos

Sou desmesurado cósmico
As pedras as plantas as montanhas
Me saúdam
As abelhas os ratos
Os leões e as águias
Os astros os crepúsculos as manhãs
Os rios e as selvas me perguntam
E então, como está você?
E embora os astros e as ondas tenham algo que dizer
Será por minha boca que falarão os homens
Que Deus seja Deus
Ou Satã seja Deus
Ou ambos sejam medo noturna ignorância
Dá na mesma
Que seja a Via Láctea
Ou uma procissão que caminha em busca da verdade
Hoje não me importa
Traga-me uma hora de vida
Traga-me um amor pescado pela orelha
E deixai-o aqui a morrer ante meus olhos
Que eu me precipite no mundo a todo vapor
Que eu corra pelo universo estrela por estrela
Que me afunde ou me eleve
Lançado sem piedade entre planetas e catástrofes
Senhor Deus se tu existes é a mim que deves

(...)

Silêncio a terra vai dar à luz uma árvore
A morte dormiu no colo de um cisne
E cada pluma tem um distinto tremor
Agora que Deus senta sobre a tempestade
Que pedaços de céu caem e se enredam na selva
E que o tufão despenteia as barbas do pirata
Agora sacai a morta ao vento
Para que o vento abra seus olhos
Silêncio a terra vai dar à luz uma árvore
Tenho cartas secretas na caixa do crânio
Tenho um carvão dolente no fundo do peito
E conduzo meu peito à bocaE a boca à porta do sonho
O mundo entra em mim pelos olhos
Entra em mim pelas mãos entra em mim pelos pés
Entra pela minha boca e sai
Em insetos celestes ou nuvens de palavras pelos poros
Silêncio a terra vai dar à luz uma árvore
Meus olhos na gruta da hipnose
Mastigam o universo que me atravessa como um túnel
Um calafrio de pássaro me sacode os ombros
Calafrio de asas e ondas interiores
Escadas de ondas e asas no sangue
Se rompem as amarras das veias
E salta fora da carne
Sai das portas da terra
Entre pombas espantadas
Habitante de teu destino
Por que queres sair de teu destino?
Por que queres romper os laços de tua estrela
E viajar solitário nos espaços
E cair através de teu corpo de teu zênite a teu nadir?
Não quero ligaduras de astro nem de vento
Ligaduras de luas benignas são para o mar e as mulheres
Dai-me meus violinos de vertigem insubmissa
Minha liberdade de música escapada
Não há perigo na noite pequena encruzilhada
Nem enigma sobre a alma
A palavra eletrizada de sangue e coração
É o grande pára-quedas e o pára-raios de Deus
abitante de teu destino
Colado a teu caminho como rocha
Vem a hora do sortilégio resignado
Abre a mão de teu espírito
O magnético dedo
Onde o anel da serenidade adolescente
Pousará cantando como o canário pródigo
Largos anos ausente
Silêncio
Se ouve o pulso do mundo como nunca pálido
A terra acaba de iluminar uma árvore

Tradução: Claudio Daniel

POEMAS DE HUIDOBRO

TREMOR DE CÉU
(fragmentos)

Vestida de branco, Isolda vinha como uma nuvem.

Então a lua começou a cair envolta em chamas. E nas praias dançava um reflexo de fogo.

Os espectros saem um a um de cada onda que se levanta. Vocês que estão aí escondidos, chegou a hora de tremer ante a voracidade da morte.

O sol poente faz uma auréola sobre a cabeça do último náufrago que flutua à deriva sem ouvir mais os cantos da margem.

Os lobos passeiam com os olhos brilhantes entre os ramos da noite, enlaçados estreitamente e chorando sem causa precisa.

O homem aquele, maior que os outros, abre a boca no meio do jardim e começa a tragar vaga-lumes durante horas inteiras.

As árvores estão retorcidas por causa de uma dor estranha. E uma quantidade de meteoros que caem do céu formam espirais em nossa atmosfera como se fossem pedras na água.

O fumo espesso sai de todos os lados. Agora só brilham os olhos dos lobos e o homem cheio de vaga-lumes. Todo o resto é penumbra.

A montanha abre suas portas e o cego entra com os braços estendidos.

Há uma árvore, uma grossa árvore que se retorce no fogo do crepúsculo.

Acima, Deus está embalando um planeta recém-nascido.

Caem estrelas sobre a terra. Uma após outra vão caindo centenas de auréolas sobre a terra, algumas sobre certas cabeças... E nada mais?

Uma ilha de palmeiras surge do mar para os noivos que passeiam enlaçados.

Algum dia um deles encontrará a cabeça que havia perdido, imóvel no mesmo lugar em que a perdera.

Quando? Onde? Qual deles?

(. . .)

Todas essas mulheres são árvores ou pedras de repouso no caminho, talvez desnecessárias.

Garrafas de água ou tonéis de embriaguez, geralmente sem luz própria. Obedecem como as catedrais a um princípio musical. Cada acorde tem seu correspondente e tudo consiste em saber tocar o ponto do eco que há de responder. É fácil fazer tecidos de sons e construir um verdadeiro teto ou magníficas cúpulas para os dias de chuva.

Se o destino permite, podemos abrigar-nos por um tempo e contar os dedos daquela que nos estende os braços.

Logo o fantasma nos obrigará a seguir a marcha. Saltaremos por cima dos seios palpitantes que são suas cúpulas porque ela estendida de costas imita um templo. Melhor dizendo, são os templos que imitam a elas, com suas torres como seios, sua cúpula central como cabeça e sua porta como querendo imitar o sexo por onde se entra em busca da vida que pulsa no ventre e por onde deve sair depois a mesma vida.

Porém, nós não temos de aceitar semelhante imitação nem podemos crer em tal vida. Nesta vida que sai com os olhos vendados e vai estrelando-se em todas as árvores da paisagem. Só acreditaremos nas flores que são berços de gigantes, embora saibamos que dentro de cada casulo dorme um duende.

Tradução: Claudio Daniel

CONVERSANDO SOBRE POESIA (IV)


Caros, escrevi um pequeno ensaio sobre Huidobro chamado Altazor, a demolição sísmica do texto, como uma guia de leitura para mim mesmo, na época em que comecei a ler e traduzir o poeta chileno. Esse texto foi publicado há vários anos na revista eletrônica Agulha. Relendo hoje o trabalho, quase não o reconheço, pois mudei, e muito, o meu estilo de escrever ensaios. Porém, resolvi republicá-lo aqui, na Pele de Lontra, pelo fato de não encontrar muitas referências a esse autor insólito em nossos cadernos literários, cada vez mais superficiais e ilegíveis. É preciso falar sobre Huidobro, um poeta tão essencial quanto Girondo, Vallejo e Lezama Lima para a renovação da poesia latino-americana na primeira metade do século XX.

Vicente Huidobro (1893-1948) é o Colombo da nova poesia na América Latina. Depois da renovação modernista de Rubén Darío, coube ao poeta chileno dar o passo seguinte, assimilando os recursos formais do futurismo, do cubismo e do surrealismo de maneira original e ousada. Em Poemas Árticos e Equatorial (ambos de 1918), ele incorporou as "palavras em liberdade" de Marinetti, suprimiu os sinais de pontuação, trabalhou a collage e o caligrama à maneira de Apollinaire, em grafismos icônicos que estão na gênese da poesia visual. Em Tremor de céu (1931), ensaiou um poema em prosa construído como uma seqüência de flashes, de imagens alucinadas que recordam a pintura de Chagall.

Sua obra central, no entanto, é Altazor (1931), um poema longo em sete cantos em que o poeta operou a gradual desconstrução do texto, sinalizando a dissolução do pensamento e da linguagem — e, portanto, da consciência — no caos do barbarismo tecnizado contemporâneo. Essa é uma elegia à orfandade espiritual do homem moderno, o cântico da "Queda", após o pecado original: lírica sísmica, feita de abalos e rupturas. Huidobro dedicou-se a este poema-limite, redigido primeiro em francês e depois em espanhol, de 1919 a 1931; é, assim, um work in progress desenvolvido entre as duas guerras mundiais. Alguns críticos censuram em Altazor uma suposta descontinuidade, a falta de unidade entre as partes, pela diversidade estilística; o Canto I, o mais extenso, com cerca de 700 versos, é discursivo, fluente, ao passo que nos Cantos seguintes o discurso vai sendo dilacerado, com o emprego de neologismos, palavras-montagem, onomatopéias, até a fragmentação fonética e a irrupção do "transmental" (ou zaúm) no Canto VII.

Essa aparente "desordem" na estrutura textual do poema revela, justamente, o seu princípio normativo e ideológico: a coisificação do caos, da quebra, da ruptura. Altazor, assim como Trilce, de Vallejo, e os Cantos, de Pound, é uma sucessão de epifanias, de mementos, uma montagem de ideogramas em profusão. Conforme Bernardo Ruiz, "ao longo de cada Canto se desenvolverão sete diferentes temas: no primeiro, a Queda; no segundo, a Mulher; o Suicídio é o terceiro. A Separação, a Morte e a Noite compõem o quarto Canto, enquanto o quinto descreve o Além e a consciência: o transmundo. Finalmente, os dois últimos Cantos descrevem a aniquilação dos sentidos e da consciência, quer dizer, da linguagem". Altazor tem como subtítulo "A Viagem em Pára-Quedas", indicando desde aqui o tema da viagem como queda, precipitação. A angústia do personagem, conforme Guillermo Sucre, é "a impossibilidade de uma aspiração ao absoluto", pela morte de Deus (anunciada por Nietzsche em Assim Falava Zaratustra). Em sua solidão existencial e metafísica, abalada ainda pela guerra e pela ausência de uma utopia, ele encontra refúgio na Mulher amada e posteriormente, na Morte: a dissolução, na Noite, de toda consciência. O desejo de aniquilamento, de mergulhar no Vazio original anterior à Criação (um tema caro ao romantismo alemão, de Novalis a Wagner), se manifesta esteticamente na fraturamento dos corpos verbais.

A destruição, porém, tem a sua contraparte dialética, que é a criação de uma nova linguagem _ e, portanto, de uma nova realidade _ a partir da remodelagem das partículas semânticas, numa quase que nova língua. Essa tendência inicia-se no Canto V ("Não há tempo a perder”), em que Huidobro transforma substantivos em verbos e verbos em substantivos; altera a função e o gênero dos objetos e das palavras; cria neologismos pela amálgama de termos (“mandolina” + "ventania" = "mandonia"); tece seqüências rítmicas de paronomásias a partir dessas recombinações semânticas (“La goloniña/ La golongira/ La golonlira" etc) ; e introduz, já no Canto IV, o tema "zaúm", à maneira de Khlébnikov: "Uiu uiui/ Tralalí tralalá/ Aia ai ai aaia i i". O Canto V dá continuidade a essa progressiva dilapidação do sentido nas rimas monocórdicas da seção central do Canto: "Molino de viento / Molino de aliento/ Molino de cuento/ Molino de intento".

Porém, é nos Cantos VI e VII que a dissolução/reconstrução verbal chega a seu ponto máximo. Aqui, Huidobro realiza plenamente o ideário do Criacionismo, que ele formulou pela primeira vez no manifesto Non Serviam, lido no Ateneo de Santiago em 1914: “Podemos criar novas realidades num mundo nosso, num mundo que espera sua fauna e flora próprias". Das ruínas da lógica verbal fraturada, ele ergue um novo edifício, estranho, irreal, inquietante, desafiadoramente belo. Essa arquitetura prometeica tem início no Canto VI. Essa seção do poema sugere uma irrupção de imagens, de ideogramas justapostos ("Vento flor/ seda cristal lento seda"). O discurso é abolido; não há verbos nem sintaxe; o poeta pulveriza a relação causa-efeito e a sucessão início-meio-fim, usando de uma lógica sincrônica; não há sujeito, nem ação, nem objeto. O texto todo é construído como uma tapeçaria, um mosaico ou mandala, em que o encadeamento de substantivos, de idéias-coisas recriadas ("cristal olho cristal seda cristal nuvem") oferece a contemplação do sagrado: a epifania.

Esse aspecto de eternidade é reforçado pela ausência de qualquer noção de espaço-tempo. Huidobro, "antipoeta e mago", faz da poesia a sucessora da religião como mediadora entre os homens e o eterno. O Canto VI é construído numa rigorosa estrutura musical. Conforme René da Costa, "ao pronunciá-lo, percebemos padrões rítmicos da poesia tradicional (. . .). O octassílabo e a repetição de fórmulas características do romance servem como unificadores do ritmo, criando a ilusão de poesia". Essa “ilusão” refere-se, sem dúvida, ao efeito paródico criado pelo poeta, que, ao adotar uma melodia de inspiração folclórica, insinua um lirismo impossível em um texto tão abstrato quanto este. De todo modo, essa seção do poema, se é "estranha", "bizarra", ainda "parece" poesia. O golpe de misericórdia é dado no Canto VII, em que Huidobro destrói a ilusão lírica e disseca a palavra em fonemas e letras, recombinando-as em neologismos impronunciáveis. Neste Canto, Huidobro se aproxima dos experimentos dadaístas e da linguagem transmental, ao mesmo tempo em que, pelo rigor arquitetônico na disposição espacial, pelo uso do princípio do ideograma na construção das palavras-valise e pela tessitura sonora polifônica, antecipa processos da poesia concreta.

O Canto VII começa com um jogo de vogais que recorda a onomatopéia e a linguagem das crianças: "Ai aia aia/ ia ia ia aia ui". Aqui, ele utiliza apenas três letras (a, i, u), combinando-as de quatro modos diferentes (Ai, aia, ia, ui). Em seguida, prossegue a ladainha infantil, similar à linguagem das histórias em quadrinhos: "Tralali/ Lali/ Lalá". Chamar isto de poesia, para alguns, seria uma afronta. De fato, há aqui uma bufoneria paródica que dessacraliza a "seriedade" da poesia, pela incorporação/transformação do banal, como Joyce faria, mais tarde, no Finnegans Wake. Após essa "introdução", o texto evolui numa seqüência de palavras-montagem construídas a partir de fonemas de substantivos e sons abstratos inventados pelo autor: "monluztrela" (montanha + luz + estrela), "eternauta" (éter + nauta), "ululacente" (ulular + sufixo ente) etc. O próprio nome "Altazor", diga-se de passagem, é uma palavra composta: "alto" + "azor" (açor). O final do poema remete ao tom infantil do início: "Lalali/ io ia/ i i i o/ Ai a i ai a i i i i o ia", em que o espaçamento entre as vogais e sílabas indica as pausas na leitura. Apesar da aparente incomunicabilidade do texto, que não possui qualquer nexo lógico em termos cartesianos, o que surpreende é a sua capacidade de oferecer múltiplas possibilidades de leitura. É uma obra aberta que, em sua extrema concisão (apenas 65 linhas, divididas em duas páginas), concentra o máximo de informação com o mínimo de recursos.

Em Huidobro, como em Joyce e Cummings, há uma inflação de significados. Esse aparente paradoxo do comunicável / incomunicável, aliás, é o emblema de toda a poesia de invenção, desde Mallarmé até os dias de hoje. Como sempre, o “incomunicável” torna-se "comunicável" após ser ingerido/digerido pela indústria cultural e retransmitido, diluído, como produto de cultura de massa ("mó, num pa tro pi"). O tabu se transforma em totem.

UM POEMA DE PAULO LEMINSKI

Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui

(Do livro O ex-estranho. São Paulo: Iluminuras, 1996.)

UM POEMA DE ROBERTO PIVA

RITUAL DOS 4 VENTOS & DOS 4 GAVIÕES
para Marco Antônio de Ossain


"Eu trago comigo os guardiões dos Circuitos celestes."
— Livro dos Mortos do Antigo Egito —


Ali onde o gavião do Norte resplandesce
sua sombra
Ali onde a aventura conserva os cascos
do vudu da aurora
Ali onde o arco-íris da linguagem está
carregado de vinho subterrâneo
Ali onde os orixás dançam na velocidade
dos puros vegetais
Revoada das pedras do rio
Olhos no circuito da Ursa Maior
na investida louca
Olhos de metabolismo floral
Almofadas de floresta
Focinho silencioso da sussuarana com
passos de sabotagem
Carne rica de Exu nas couraças da noite
Gavião-preto do oeste na tempestade sagrada
Incendiando seu crânio no frenesi das açucenas
Bate o tambor
no ritmo dos sonhos espantosos
no ritmo dos naufrágios
no ritmo dos adolescentes
à porta dos hospícios
no ritmo do rebanho de atabaques
Bate o tambor
no ritmo das oferendas sepulcrais
no ritmo da levitação alquímica
no ritmo da paranóia de Júpiter
Caciques orgiásticos do tambor
Com meu Skate-gavião
Tambor na virada do século ganimedes
Iemanjá com seus cabelos de espuma.

(Poema do livro Ciclones. São Paulo: Nankin Editorial, 1997)

CONVERSANDO SOBRE POESIA (III)

Caros, eu respeito muito o Luiz Costa Lima, a meu ver um dos maiores críticos literários brasileiros. Seu livro Mímesis e modernidade é exemplar. Ele é um leitor culto, atento e rigoroso de poesia contemporânea, assim como foi João Alexandre Barbosa. No entanto, eu discordo do que ele escreveu no jornal Folha de S. Paulo a respeito da nova edição de Paranóia, de Roberto Piva, para mim, um dos mais impactantes livros de poesia publicados na segunda metade do século XX. Claro que eu não desejo polemizar com Costa Lima, a quem respeito muito, mas apenas registrar a minha opinião, que é diferente da dele. Pois bem: li a poesia de Roberto Piva pela primeira vez no final da década de 1990, após uma conversa de bar com Ademir Assunção. Ele me fez ver que não havia mais sentido na oposição entre os leitores de Haroldo de Campos e os de Roberto Piva. Claro que há diferenças estéticas e conceituais entre ambos, mas isto não significa que, para gostar de um, seja necessário detestar o outro. Durante muito tempo, no Brasil, foi assim: ou você era adepto da Poesia Concreta, logo um inimigo mortal do Surrealismo, ou era adepto do Surrealismo, e portanto inimigo mortal da Poesia Concreta.

Talvez na década de 1960 essa oposição fosse necessária para que cada lado defendesse melhor os seus conceitos teóricos, suas poéticas, suas visões da cultura e do mundo. Hoje, porém, a polêmica entre os dois pólos, o “formalista” e o “lírico-emocional”, pertence à história da literatura, e não precisa alimentar paixões entre os leitores mais jovens. Podemos ler e gostar de Roberto Piva e de Haroldo de Campos ao mesmo tempo, termos clareza das diferenças teóricas entre eles e não tomarmos partido nenhum nessa luta pretérita. Ou ainda: tomarmos o partido da poesia, do que há de mais qualitativo na obra que ambos produziram.

Paranóia é, de longe, o melhor poema de Piva (embora eu também goste muito da Ode a Fernando Pessoa, de algumas das Piazzas, dos poemas de Ciclones e de peças isoladas de seus outros livros). A influência do Uivo, de Allen Ginsberg, nas linhas longas que se aproximam da prosa narrativa e da linguagem conversacional, é óbvia, assim como o eco das leituras que o poeta fez dos Cantos de Maldoror, de Lautréamont, dos surrealistas franceses, de Mário Andrade, Murilo Mendes e Jorge de Lima, entre outros. É um livro que permite várias aproximações intertextuais, ao mesmo tempo em que afirma a voz pessoal de Piva, sua mitologia e obsessões, em que se destacam a visão alucinada das ruas de São Paulo, com seus bares, cinemas e parques, as metáforas que misturam a religião e a obscenidade, o elogio aos narcóticos e aos estados alterados de consciência, entre outros fetiches do autor (estudados em profundidade por Claudio Willer no ensaio que integra o primeiro volume das obras completas do autor, Um estrangeiro na legião, publicado pela editora Globo).

Também é conhecida a visão do poeta em defesa da espontaneidade, do lirismo, numa palavra, da escrita automática, contra o rigor e a construção racional, pensada, da poesia (e nesse ponto está o conflito com João Cabral de Melo Neto e com a Poesia Concreta). No entanto, se lermos com atenção a poesia de Piva, e em especial o livro Paranóia, observamos que a sua escrita nada tem de ingênua, ao contrário: ela é construída (como toda boa poesia), o que nos leva crer que o seu inconsciente trabalha como um engenheiro drogado, que pode fazer loucuras, sim, mas sempre com a noção exata de proporção e medida. Poderia escrever um longo ensaio falando sobre o ritmo na poesia de Piva, sobre a visualidade explícita nas Piazzas, sobre a sua semântica, o modo como ele coordenas as linhas de cada texto, mas vou me ater a um único ponto, já que esta é uma crônica breve, e não um artigo acadêmico. Quero falar sobre a construção das metáforas na poesia de Piva.

Logo no início de Paranóia, o autor escreve: “fagulhas de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde / cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro / da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis / a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e / lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas / tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários / dos manequins”. O ritmo desse fragmento, que acompanha todo o poema, é o da palavra falada, mas a fanopéia recorda o conceito de imagem poética formulado por Pierre Reverdy, para quem a singularidade ou estranheza “não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais as relações das duas realidades forem distantes e justas, tanto mais a imagem será forte, mais força emotiva e realidade poética ela terá”. Esse conceito, claro, deriva de Lautréamont, que falava no “encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação”.

Marinetti expôs o mesmo princípio ao dizer que “a analogia é nada mais do que o amor profundo que associa coisas distantes, aparentemente diversas e hostis”. Tais formulações, no entanto, têm um ancestral ainda mais remoto, no maneirismo europeu — por exemplo, em Tesauro, para quem, nas palavras de Gustav Hocke, “o verdadeiro poeta é aquele que se mostra capaz de estabelecer conexões entre as coisas, ainda que sejam as mais díspares. Tal é, com efeito, a essência dos diversos maneirismos que surgiram na Europa, sob diversas denominações. (...) Na época, a discordia concors de Tesauro mereceu esta explicação na Inglaterra: ‘trata-se de uma tentativa de combinar imagens dessemelhantes ou de descobrir as analogias latentes nos objetos entre os quais, aparentemente, não há nenhuma relação mútua’”.

A oposição entre “espontaneísmo” e “formalismo” encontra aqui, de modo surpreendente, uma harmonia dos contrários... a poesia de Piva, que numa primeira leitura parece ser o oposto de qualquer maneirismo ou barroquismo de linguagem, numa análise mais atenta revela o contrário, o quanto ela se aproxima da “pérola irregular”, inclusive no sincretismo que faz entre mitos indígenas, africanos e orientais, entre diferentes tempos históricos, estilos e registros culturais, de forma paródica.

Enfim: há muito o que descobrir na poesia de Roberto Piva. Não é uma escrita simples, emocional ou fácil; é muito mais densa, elaborada e rica em recursos formais e referências do que podem supor os que não o leram com a devida atenção. Para quem quiser mergulhar nesse universo, sugiro que comece lendo Um estrangeiro na legião, que saiu pela Globo.

Roberto Piva é um dos mais interessantes poetas brasileiros da atualidade, e não podemos nos dar ao luxo de não lermos as suas obras.

UM POEMA DE JOSÉ KOZER

DIVERTIMENTO

Se congelaron las aguas del canal de agua al
pie de la ventana, las
hordas de indigentes
bajaron a mirar el frío.
Una costra la tierra, las cosechas perdidas,
comarcas (cercanas,
cada vez más cercanas)
donde el hambre aprieta:
Oh this is so exciting, said
my neighbor, fuck her.
Al agua patos, que el mundo no se acaba
porque el precio del
tomate y la naranja
se ponga por las
nubes, se congelen
las aguas dos
semanas, tiriten
un poco en los
trópicos, y baje
Dios disfrazado
(como guste) de
quien no es: esta
vez de Santiclós,
todo de rojo (como
buen promotor,
siempre lo fue,
del comunismo) a
recriminarnos por
nuestros pecados
de los últimos lustros,
y son: haber elegido
a Bush, no haber
fusilado a unos
cuantos banqueros,
a un hato de wallstriteros,
a seguir comprándoles a
los chinos sus porquerías:
del Imperio del acero
descendimos al Imperio
del arroz frito, Ay América
Latina, cuándo llegará la
hora del Imperio del
cuchifrito, la cachaza,
el pisco y la banana,
palta, mate, la poesía
neobarroca.
El día (lacayo) es largo, el tiempo corto, antes disputaba,
por una nimiedad me
peleaba con medio
mundo, he enmudecido,
apenas salgo, en casa
hay dos pasarelas de
aire, una me lleva cada
media hora al servicio
(prostatitis galopante)
en la otra me encuentro
al final de un camino
añadiendo capas y capas
de ropa a un cuerpo, ahí
debajo, para combatir el
frío. Fin de mes, fin
pronto de todas (tantas)
cosas. Malvendí mis
libros, las dos biblias,
iconos y tablillas votivas,
el molinillo de las plegarias,
tres carcomidos diccionarios,
faltan palabras a quienes
como a mí les sobran ya
las palabras: se curva el
aire, cruje (vidrio o madera
podrida) la pasarela, a la
vista un estanque (entrañas
malolientes de carpas: restos
en mi cabeza de un haikú de
Basho): el río subterráneo, el
propio cadáver entre remeros
y perros tricéfalos de cien
ojos, ni frío ni calor, no todo
está perdido: me anima
pensar me aguarda un
jardín japonés, el monje
rastrillando guijarros,
monólogo monocromo
(monocorde) de su flauta,
quiebre y rotura, ahí donde
se haga mil pedazos crecerá
el bambú.

CONVERSANDO SOBRE POESIA (II)

Por Nicole Cristófalo

Em seu primeiro livro, de 1922, Girondo se utiliza de diversos elementos da poesia de vanguarda enquanto imprime seu caráter cosmopolita em seus textos, acompanhados por suas gravuras. O cubismo, o surrealismo e expressionismo (em menor medida), a velocidade do futurismo, além da dessacralização do corpo, da caricatura e a não utilização das regras miméticas são algumas das características presentes no livro. O tom cosmopolita se percebe já no título do livro, Veinte poemas para ser leídos en el tranvia, sugerindo que o leitor esteja num bonde durante a leitura, como o fez o escrito Ramón Gómez de la Serna: “Entre los Veinte poemas para ser leídos en el tranvia se intercalaban los toques del timbre tranviario y las ilustraciones de um humor primievo y ruborizadode colores desnatados que les ha puesto el autor. Ya no veían los viajeros el título del libro, de tan gran propiedad y tan gran etiqueta tranviaria (...)”. A paisagem urbana é o cenário onde os objetos e as pessoas irão se encontrar e se relacionar, ocorrendo a coisificação dos primeiros, e a antropomorfização dos segundos:

Otro Nocturno

La luna, como la esfera luminosa del reloj de um edificio
público.
¡faroles enfermos de ictericia! ¡Faroles con gorras de “apa-
che”, que fuman un cigarrillo en las esquinas!
Por qué, a veces, sentiremos una tristeza parecida a la de
un par de medias tirado en un rincón?

Os faróis adoecem e fumam, enquanto nos entristecemos como um par de meias quando jogado num canto. Os objetos incorporam atributos humanos, enquanto as características das pessoas são aproximadas dos objetos. Importante mencionar que, para Jorge Schwartz, “o olhar urbano de Girondo se multiplica na visão simultaneísta de um diário de viagem cosmopolita. Veinte poemas é uma exaltação à cidade moderna, uma representação das tumultuadas Villes tentaculaires, onde o indivíduo reificado se funde e se confunde com o espaço que habita. O novo em Veinte poemas encontra no tempo presente da descrição o chronos ideal da exaltação da cidade”. Outra características que percebemos em Veinte poemas é a utilização do cubismo, e não apenas na descrição das imagens dos seus textos, mas como na própria estrutura do livro, fazendo com que não haja uma ordem cronológica, além do espaço geográfico que se desmonta em diversas cidades, indo e vindo de um lugar a outro, seguindo uma linha descontínua, desenvolvendo-se dentro de uma “estrutura simultaneísta”.

Croquis en la arena

La mañana se pasea em la playa empolvada de sol.
Brazos.
Piernas amputadas.
Cuerpos que se reintegran.
Cabezas flotantes de caucho.

Al tornearles los cuerpos a las bañistas, las olas alargan sus
virutas sobre el aserrín de la playa.

Neste trecho é suprida a perspectiva na descrição das imagens, além da descontinuidade do espaço-tempo. Mas, é importante mencionar que “casi todos los poemas que podrían llamarse “cubistas”, solo quedan en la intención, sin que hayam logrado cumplir la estricta estructura plástico-linguística que requiere el cubismo”. O autor desmonta a linearidade da imagem, porém sua intenção não é a de seguir completamente a estética cubista, e sim escolher os elementos que mais o convém, já mencionados.

Biarritz

Hay efebos barbilampiños que usan una bragueta en el tra-
sero. Hombres com baberos de porcelana. Un señor con un
cullo que terminará por estrangularlo. Unas tetas que salta
-rán de un momento a otro de un escote, y lo arrollarán todo,
como dos enormes bolas de billar.

Cuando la puerta se entreabre, entra un pedazo de “fox-trot”

Neste trecho, percebemos que o autor não exerce uma relação subjetiva com o que descreve, não há uma apropriação dos objetos que menciona ou uma necessidade de interação. Esta posição também chega com a vanguarda que já não escreve através de uma visão subjetiva, romântica. O ambiente do cassino e o foxtrot refletem o tom cosmopolita do poema. Girondo, descrevendo a figura dos seios saltando do decote, comparados a “enormes bolas de bilhar”, ao mesmo tempo em que dessacraliza o corpo, se utiliza da caricatura como em outros poemas, às vezes chegando ao grotesco. Na ilustração feita pelo próprio autor, os mamilos se confundem com duas pequenas fichas de jogo que estão em cima da mesa, criando uma “associação reificada do sexo com o objeto urbano”. Desta forma, mencionamos algumas das características das poéticas de vanguarda em Veinte Poemas, além de seu aspecto cosmopolita, e por que ser fundamental sua leitura para entendermos o que ocorreu na literatura argentina a partir daquela década.

(Leiam o texto integral no blog Dado Acaso, de André Dick e Nicole Cristófalo, na página http://dadoacaso.blogspot.com/)

CONVERSANDO SOBRE POESIA (I)

Caros, conheci a poesia de Ferreira Gullar em 1980, quando eu tinha 18 anos e acabara de ingressar no curso de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Eu li, em poucas semanas, o volume Toda Poesia, publicado pela Civilização Brasileira, que reunia o trabalho poético do autor maranhense escrito entre 1950 e 1980. Fiquei com uma impressão que, acredito, se manteve inalterada até hoje.

O primeiro livro de Gullar, A Luta Corporal, é uma obra-prima; sem dúvida alguma, a melhor coisa que ele fez em vida. Poemas como O Anjo (“O anjo, contido / em pedra / e silêncio, / me esperava. (...) Começo a esperar a morte”), Galo galo (“Grito, fruto obscuro / e extremo dessa árvore”), As peras, O quartel, entre outras, resumem a linhagem mais radical do Modernismo, de Oswald de Andrade e Murilo Mendes a João Cabral de Melo Neto: aqui estão a palavra precisa, a concisão verbal, a geometria, a força das imagens poéticas, a busca de novos meios expressivos.

Em poemas como Roçzeiral e as peças finais do volume, ele não se contenta em explodir o verso livre, mas chega ainda a fraturar a sintaxe e a própria semântica, aproximando-se de uma sonoridade pura. Em A Luta Corporal, Ferreira Gullar demonstrou o domínio impecável das técnicas poéticas, sem abrir mão do lirismo (nos Sete poemas portugueses, por exemplo), da reflexão existencial e sobre o estar no mundo.

Já em Vil Metal, que reúne poemas escritos entre 1954 e 1960, ele parece continuar nesse caminho, no poema de abertura do volume (Fogos da flora), mas logo em seguida retoma o discurso linear, aproximando-se inclusive da linguagem conversacional de Carlos Drummond de Andrade, ainda que com algumas peças inventivas aqui e ali (como Definições). É um Gullar que alterna radicalidade e referencialidade, mas que ainda trabalha num patamar elevado. Nesse tempo, houve a ruptura de Gullar com os poetas concretos paulistas (motivada pelo narcisismo do autor maranhense, cujo ego não cabia no mesmo espaço ocupado por Augusto e Haroldo de Campos), a criação do movimento neoconcreto (que ganhou vida nas artes plásticas, com Lygia Clark e Hélio Oiticica, mas que não apresentou resultados poéticos apreciáveis) e por fim o alinhamento com a esquerda stalinista, representada na época pelo antigo PCB, o “Partidão”, que inspirou as vaias a Caetano Veloso, à Poesia Concreta e a qualquer coisa que parecesse moderna (“formalismo burguês”, na linguagem de nossos comissários do povo).

Fiel à nova cartilha, Gullar aderiu a um versão cabocla do realismo socialista, em seus tristemente famosos Romances de cordel. A leitura desses poemas hoje revelam um gritante anacronismo estético e conceitual, pelo proselitismo típico de uma arte que se confunde com as tarefas de agitação e propaganda da esquerda, como ocorre em versos como esses: “o homem vem caminhando / para a plena liberdade; / tem que se livrar da fome / para atingir a igualdade; / o comunismo é o futuro / risonho da humanidade”. Esse tom panfletário permanece no livro Dentro da noite veloz (1975), onde encontramos poemas dedicados a Che Guevara e à guerrilha no Vietnã, e ainda a problemas sociais do Nordeste brasileiro.

Este talvez seja o livro de menor impacto estético na obra de Gullar, pela ênfase na abordagem ideológica, maniqueísta, dos fatos históricos do período, mas ainda encontramos aqui peças líricas e bem-humoradas como Cantada: “Você é mais bonita que uma bola prateada / de papel de cigarro / Você é mais bonita que uma poça d’água / límpida / num lugar escondido / Você é mais bonita que uma zebra / que um filhote de onça / que um Boeing 707 em pleno ar / (...) Olha, / você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro / em maio / e quase tão bonita / quanto a Revolução Cubana”. Claro que se trata de um poema de circunstância, mas ao menos conserva o bom humor, sem o tom marcial, de banda de música, de seus poemas políticos (que fariam Fidel Castro bocejar e cair no sono, logo na leitura das primeiras linhas).

O Poema Sujo é talvez o livro de Gullar que recebeu melhor acolhida por parte da crítica (Vinícius de Morais afirmou que era “o mais importante poema escrito em qualquer língua nas últimas décadas”), mas também é um livro irregular, intercalando fragmentos inventivos com outros da mais tosca narratividade (culminando com a pérola “Quantas tardes numa tarde!”). Este foi, talvez, o último livro de Ferreira Gullar, já que os títulos seguintes, como Barulhos e Muitas Vozes, são apenas reedições de temas e formas já abordados exaustivamente pelo autor, sem acréscimo de informação nova.

O que fica da obra de Ferreira Gullar, a meu ver, é A Luta Corporal; poucos autores brasileiros da segunda metade do século XX foram capazes de escrever um livro tão forte como este. O que já é mérito suficiente para um poeta que se preze: não é qualquer um que consegue acrescentar à tradição alguma coisa nova. Já os romances de cordel, serão lidos ainda por professores universitários alinhados com a abordagem sociológica da literatura, que apresenta avançados sinais de mofo. Não faz mal: derrubaram a estátua de Stálin na Hungria, na Tchecoeslováquia e até na Albânia; um dia, ela cairá na USP também.