JÁ RESPLENDE A FLOR INVERSA
Já resplende a flor inversa
por troncos, barrancos, pedras.
Flor? Neve, granizo e gelo
que escorcha, tortura e trinca,
guinchos, gritos, brados, silvos,
por folhas, ramos e vimes;
mas vivo estou, verde e feliz,
ao ver já sem vida os servis.
Pois de tal forma os inverto
que os ramos parecem pedras
e tenho por flor o gelo
e é o calor que ao frio trinca,
trovões me são canto e silvo
e parece folha o vime;
assim eu posso ser feliz
sem ver perversos e servis.
É que uma fada os inverte,
como se fossem de pedra,
que me agridem mais que gelo
com sua língua que trinca
e me sussurra seus silvos;
não bastam bastão ou vime:
a surra só faz mais feliz
a língua vil que os faz servis.
Que eu beijando vos inverta
não me impedem pau nem pedra,
Dama, nem neve nem gelo,
É o açoite, que me trinca,
— Dama, por quem canto e silvo —
desses olhos, doce vime,
que não me vêem; eu, feliz,
vos sirvo e vós não me servis.
Andei de cabeça inversa,
batendo por paus e pedras,
triste, sofrendo esse gelo
que escorcha, machuca e trinca,
pois todo o meu canto e silvo
não me deu virga nem vime.
Mas, Deus louvado, sou feliz
malgrado a malta dos servis.
Meu verso assim saia inverso
e vá, contra pau ou pedra,
lá onde não sente gelo
nem o frio pode dar trinca,
à Bela, que canto e silvo,
e deixe a vara de vime
ao que sabe cantar, feliz,
para bem servir aos servis.
Jogral, vosso amor faz feliz
a quem por vós dobra a cerviz.
Que os olhos deste ser feliz,
por não vos ver, querem ser vis.
Tradução: Augusto de Campos
Raimbaut D'Aurenga foi um trovador provençal do século XII, traduzido por Augusto de Campos no livro Invenção (São Paulo: Editora Arx, 2003), que reúne também a tradução integral de todos os poemas de Arnaut Daniel. Um livro fascinante.
ResponderExcluirLia este livro quando a afasia dos afazeres me tirou de prumo. Mas é formidável, de fato, o livro.
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