sábado, 18 de novembro de 2023

BREVE COMENTÁRIO MATINAL

 

A poesia de qualidade publicada hoje no Brasil é quase clandestina. Nāo é publicada pela Companhia das Letras, nem pela 7 Letras, nem pela 34, mas por pequenas editoras, em pequenas tiragens, nāo aparece na mídia, é mal distribuída e, claro, nāo recebe o prêmio Jabuti, nem o Oceanos. É uma poesia feita à margem do apodrecido sistema literário comandado por Manuel da Costa Pinto, Carlito Azevedo, Fábio Weintraub, Tarso de Melo, Heitor Ferraz, Angélica Freitas e associados, que só promovem a si mesmos e a seus amigos, que têm a carteirinha do clube dos puxa-sacos. A poesia de qualidade é lida por quem acompanha os lançamentos das editoras independentes, os sites e blogues de literatura e os perfis de seus autores nas redes sociais. Esta é uma poesia que nada deve à medíocre "geraçāo mimeógrafo" carioca dos anos 1970 nem à revista Inimigo Rumor. É estudada na universidade pelos poucos professores e pesquisadores que sabem o que é poesia. É chamada de obscura, hermética, vanguardista, acusada de afastar o público, embora muitas vezes trate de maneira crítica temas contemporâneos considerados polêmicos, evitados pela turminha do milkshake. Nada tem a ver com o "politicamente correto", o feminismo de vitrine da pequena burguesia ilustrada. A poesia de qualidade nāo é escrita por homens ou mulheres, brancos ou negros, gays ou héteros, mas por POETAS. Autores que dominam os recursos da linguagem poética. Ponto. Esta é uma poesia de resistência ao mercado, à moda, à mídia e ao processo de imbecilizaçāo da cultura brasileira. Seus ícones nāo sāo Ana Martins Marques, Ricardo Aleixo ou Micheliny Verunschk, mas Gilka Machado, Pedro Kilkerry, Sousândrade, Hilda Hilst, Pagu, Joāo Cabral de Melo Neto, Augusto e Haroldo de Campos. Poetas que nāo ligam para a falsa crítica literária nāo têm medo de se declararem comunistas ou de apoiarem a Palestina, por receio de afastarem leitores. Eles já sāo lidos por quem conhece poesia de qualidade (público que pode aumentar, sim). A valorizaçāo dos medíocres e o ocultamento intencional dos bons poetas é um fato político, uma luta política que faz parte da história. E a história nunca recompensou a mediocridade. O destino dos poetas famosos, mas fraquíssimos, é o esquecinento, a lata de lixo da história.


terça-feira, 31 de outubro de 2023

GAZA

 








Claudio Daniel

 

I

escuras são as palavras

do canto:

demolidas

como as casas

na faixa de gaza.

shemá israel!

adonai eloheinu

adonai ehad.

espectros

torvos

arrastam fardos

farrapos

de si mesmos.

pedras

podres

água

barrenta

ruínas

de vidas

mutiladas

torvo horror

medonho

furiais

furiais

furiais

ínferos

antros

infernais

fomes corcundas

arame

farpado

fuzis

automáticos

turvas

antiflores

sob a lua de gaza

 

II

carnes de corpos

já sem rostos

pernas

olhos

mãos

sob o  céu

iluminado

por fósforo

branco.

 

III

corpos

costurados

sem sedação

em hospitais

arrasados

por bombas

torvo horror

medonho

caninos

retorcidos

mordem-se

por dentro

 

IV

gaza

olhos

de gaza

seios

de gaza

cabelos

de gaza

lua

de gaza

até

quando

este

pesadelo?

 

V

a paz

é o chifre

de um coelho?

 

VI

furiais

furiais

furiais

ínferos

antros

infernais

a faixa

de gazaa

é o novo

auschwitz

hitler

gargalha

no inferno.

 

P. S. A crianças palestinas  escrevem seus nomes nas palmas das mãos para serem enterradas junto de suas mães. 

domingo, 23 de julho de 2023

CATORZE HAIKUS DA CHAPADA DIAMANTINA + UM HAIKU DE SÃO PAULO

 


 










Neblina na Chapada:
até a orquídea
treme de frio.

 

Morro do chapéu:
o sol queima
nossas cabeças

 

Nuvens brancas:
melhor amigo
é o silêncio.

 

Cachoeira do céu:
o branco se espalha
sobre arbustos secos

 

Morro vermelho:
a voz vermelha
das rochas.

 

A pétala branca
é a casa
da aranha.

 

Chuva de pétalas
amarelas
na janela do jeep.

 

Cachoeira do mosquito:
pequenos diamantes
sem asas.

 

Trilha de pedras tortas

levam meus pés

até o Poço do Diabo.

 

 

Caminho do poço azul:
gato dorme
sob azaleias

 

Gruta do poço azul:
imagens deslizam
nas águas

 

Rochas negras
verde musgo: branco
voo de borboletas

 

No meio do nada
encontrar tudo
as nuvens, o silêncio

 

***

 

Mendigo fuma
toco de cigarro
encurvado na rua.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

POEMAS INÉDITOS DE CLAUDIO DANIEL

 


















KOANS

 

 

I

 

Para que lado sopra o vento?

A pálpebra

do olho.

A curva

do rio.

A bosta

do cavalo.

O silêncio

antes do grito

do galo.

 

II

 

Onde canta o uirapuru?

Embaixo

da nuvem

em forma

de gato.

No círculo

de pedras

no centro

do lago.

Na lágrima

do homem morto.

Uirapuru

já voou.

 

III

 

O que o surdo disse ao mudo?

Três quilos

de alcatra.

27 de maio.

A sexta cor

do arco-íris.

A urina do cão

no poste

da rua.

A mulher nua

no quarto ao lado.

 

IV

 

Qual é a palma de um só som?

 

V

 

Vivo ou morto?

Um pedaço

de estrume.

O martelo.

Dois loucos

cantam no parque.

Uma, duas,

três estrelas.

Peixes vermelhos.

A baba

que escorre

da boca

do velho.

Um rato

boiando

no balde.

 

VI

 

Onde está o pensamento?

Na caixa

de pregos.

Na toalha

da cozinha.

Na garrafa

de pinga.

Na casa

da bruxa.

No esqueleto

que canta.

No focinho

do porco-

espinho.

 

VII

 

Onde está o Buda?

Na cabeça

da chave

de fenda.

Na pata

amputada

do macaco.

Dentro

da noz.

No tabuleiro

de xadrez.

No bueiro

do esgoto.

No buraco

do rato.

No carrinho

de māo

vermelho.

No choro

do bebê

nāo-nascido.

 

 

VIII

 

A lua que aponta para o dedo não é a lua.

 

 

IX

 

A mente é uma caixa de esterco.

O monte

Sumeru

na cabeça

do alfinete.

Escorpiões

em cópula

na areia

da praia.

Qualquer coisa

entre o nunca

o sempre

o quase

e o nunca

visto.

 

X

 

O que é o nirvana?

Gato branco

gato preto

jogam bola

na sala de jantar.

 

XI

 

Afundar-se na nudez

essencial de Deus

é comer quando

se tem fome;

é dormir

quando se tem

sono;

 

 

2023

 

À memória de D. T. Suzuki e Thomas Merton

 

 LETRAS PEDROSAS

 Para Bruno Contardi

 

I

Caminho de pedras brancas

em Sāo Thomé;

lascas

assimétricas

ásperas

em trilhas

tortas;

pedras

em forma

de serpente;

nuvens

que simulam

ondas

de espuma

branca;

velho tronco

de galhos

retorcidos

que apontam

para

lugar

nenhum.

II

Tudo

tem olhos,

as folhas

o limo

as lascas;

fio de água

escorre

em rochas

negras

como madeira

queimada;

manchas brancas

de uma escrita

secreta

espraiam-se

como lepra

em pedras

e troncos.

Nuvens

concentram-se

como jorros

de esperma

sobre o verde

das colinas.

Estar aqui

como no centro

de uma galáxia.

 

2023

  

CABO FRIO

 

Cachos de flores amarelas

falésias, galhos,

conchas, líquens

na praia de areia fina;

barcos de pesca

em frente à linha

verde do mar.

Passos lentos

na orla diurna

voo fotográfico

de mergulhões.

Súbito, árvore caída

no meio do caminho

tronco coberto

de conchas brancas.

Quem já viu

a festa de Yemanjá

em Cabo Frio?

O canto das filhas

de mãe d’água

mistura-se ao azul

das ondas do céu.

De volta à cidade,

em frente à peixaria,

o magro gato cego

anseia pelo atum.

Morador de rua

diz boa noite

ao pássaro de outro nunca.

 

2023

  

A MULHER QUE MATOU OS PEIXES

nada sabia das ilhas japonesas,

de suas cachoeiras, rios e cascatas;

nunca reparou na beleza ondulante

dos pequenos dragões vermelhos

brancos, amarelos, prateados

nem viu as “imagens do mundo flutuante”

pintadas em gravuras de madeira coloridas

nem as pipas em formato de peixe

hasteadas por meninos em dias festivos;

a mulher que matou os peixes

nada sabia sobre as antigas histórias

que as avós japonesas contavam aos  netos:

que as carpas nadavam contra a correnteza

saltavam cascatas e até mesmo montanhas

para depositarem os seus ovos

e por isso dizia-se que eram dragões.

Não, a néscia nada sabia dessas histórias

e mesmo que soubesse, não faria diferença:

ela só queria roubar as pequenas moedas

jogadas por turistas no lago do Palácio.

 

2023