sexta-feira, 30 de outubro de 2015

TEMOS O MELHOR CONGRESSO QUE O DINHEIRO PODE COMPRAR















Desde o início de suas atividades em 2015, o atual Congresso Nacional se constituiu em um governo paralelo, colocando em pauta projetos que se chocam não apenas com o Governo Federal, mas com a própria democracia, o estado laico e de direito: redução da maioridade penal, flexibilização da legislação trabalhista, estatuto da família homofóbico, restrição do direito ao aborto, fim da lei de desarmamento, entre outras insanidades. O Parlamento declara guerra às mulheres, aos negros, aos jovens, aos homoafetivos, aos trabalhadores, enfim, à sociedade.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O QUE ESTÁ EM JOGO NA ATUAL CRISE POLÍTICA



A atual crise política brasileira é um conflito entre dois projetos de país: um que promove os direitos sociais, a inclusão, o crescimento econômico com distribuição de renda, a transparência, a democracia, a defesa de nossos recursos naturais, a participação popular, a independência e soberania nacional; e outro que defende o retorno a um modelo autoritário de exclusão social, de repressão aos movimentos sociais e criminalização de mulheres, jovens, negros e homoafetivos, de liquidação dos direitos trabalhistas e elevada concentração de renda, especialmente nos setores financeiro, fundiário e agroindustrial, de entrega de nossas riquezas naturais às grandes companhias internacionais e de submissão ao capital internacional e à política externa dos Estados Unidos e de Israel.

POEMAS DE CHIU YI CHIH



 












 ALEPH

rastro de luz absorvida pelas ásperas formigações da cratera, sua mão esconjurada se contorce entre embriões, frascos e oblíquas vidraças – seu sangue que agora parece submergir numa tênue bolha d’água ainda se incrusta com as raízes da recém-nascida massa – e tudo escorre nessa rústica tecedura de pálidos borrões, nesse ofuscante zênite de rumores


COMO SE UM SURDO ESTREMECIMENTO

pudesse arrancar-lhe a voz que no fundo das gramíneas vacilantes se encasula e se encobre, como se nesse intervalo de incubações as raposas se agitassem no alto das copas de um pinheiro com súbitos escândalos ao lado das areias, nuvens, escamas, folhas, estradas, cinzas, manchas, trilhas, ecos, sementes, lascas, aços, pedras, espelhos, galhos, arcos, cílios, papoulas, flancos, cascos, desertos, algas, ídolos, êxodos, insônias, vidros, insetos, ilhas, plumas, cardumes, glóbulos, poros, renúncias, fissuras, páginas, rios, clavículas, riscos, silvos, aquários, quedas, ossos, cipós, trapos, ruídos, fivelas, alças, telhas, vértebras, laços e fiapos

quando todas as fibras se retesam em círculos impróprios quando todas as tábuas se dividem por entre as malhas de carbono quando todos os movimentos se recurvam até o vértice da constelação quando todas as palavras se desprendem dos seus próprios invólucros quando todo ouro é transposto ao fundo do invisível quando toda pele se desfaz e se refaz em concêntricas colunas quando todos os micróbios se encarregam de conduzir o sopro da vida quando todas as luzes e sombras se rebatem contra o teto quando todas as janelas desabam lentamente ao longo da avenida iluminada

enquanto eu e você escutamos aquela fera de narinas obtusas enquanto as áridas flechas de gelo atropelam o perfume das sacadas enquanto as asas retilíneas se alongam sob as estreitas películas enquanto começamos a duvidar de todas as aventuras e tragédias enquanto meus olhos translúcidos se fecham pouco a pouco enquanto seu reflexo se eleva ao limiar de um recomeço improvável enquanto os pensamentos se flagelam contra as brasas e as têmporas se estendem aos astros insufláveis


UM RIO DE AMÊNDOAS

espalha-se no leito dos sulcos, um rio que sobe e desce, como animal intocável, signo recoberto pelas insígnias da fuligem, ronronando debaixo das calçadas, dos ladrilhos e das embocaduras, relíquia-faca, gesto-hiato, susto-império


COMO SE UM FEIXE DE LUZ

pudesse atravessar-lhe o peito que na superfície das rochas enrugadas se desvela e se descobre, assim como se nesse ponto dourado os olhos pudessem apalpar a tímida e sonora rachadura que arde e retorce e repousa sob os inúmeros algarismos

com suas chamas que se resguardam com seus truques impassíveis com suas litografias impalpáveis com seus calcanhares que se empalidecem com suas ébrias efemeridades com seus cegos rangidos com seus gritos que se emudecem com suas imprecisas caminhadas com seus suores desvalidos com seus versos quiromânticos com seus lábios inalcançáveis com suas pálpebras insolúveis com seus dedos intangíveis com suas válvulas que se intumescem


como se ainda em convulsões cada estrela fosse uma abrupta circunferência daquilo que jamais se nomeia

nessa voragem em que relampeja o bico das armaduras durante a invasão de cada pedaço onde o assobio do cristal é quase uma nuvem-esgrima

apesar de que nascemos e morremos sem que nenhum de nós possa guardar consigo a relíquia da difusa claridade que resplandece diante de nossos olhos

apesar de que toda rosa se desvanece e nenhuma luz se revela no meio da balbúrdia quando alguns pássaros crucificados começam a dançar em torno das clareiras

apesar de que nenhuma alma se entrega ao corpo desenganado quando ninguém sonha na expiação do enxofre e nunca eu mesmo fui capaz de compreender minha própria insignificância

apesar de que nem seríamos corajosos a ponto de acariciar aquela cordilheira longínqua e tampouco isso faria a mínima diferença já que um chimpanzé saltaria de um prédio a outro num milésimo de segundo

apesar de que nem todo fogo poderá ser apagado pela velocidade do córrego assim como jamais o medo será extirpado de nossos pensamentos enquanto os músculos se revigoram em diversas gotículas numa espécie de transbordamento incessante

apesar de que algumas linhas esgarçadas se recompõem à margem dos contornos imponderáveis quando são açoitadas numa turbulência sem volta e assim se precipitam em inúmeras verticalidades

apesar de que a sombra por onde se infiltra o acaso jamais continuará sendo a mesma e por isso aquela porta vislumbrada em seu perfil poderá se desmanchar numa figura incognoscível

com rasgos e viscos e larvas e lírios
e fios e fendas e joelhos e cordas

com varetas e tijolos e presilhas e joias
e papéis e cartões e anéis e assoalhos

com chicotes e braços e motores e cadarços
e tesouras e xícaras e réguas e relógios

com sedas e quadros e ímãs e agulhas
e sacos e grampos e trincas e bússolas

com sinos e alumínios e calças e bicicletas
e palitos e livros e escoras e andrajos

com flocos e discos e rastros e espinhos
e hélices e ovários e luvas e gessos

com vasos e gases e ruínas e rosas
e roncos e relinchos e berros e arrepios

com tudo que pode se dispersar em ralos com tudo que pode se dissolver em ondas com tudo que pode se destrincar sob os muros com tudo que pode se desembaraçar atrás de cordões

com tudo que pode se destravar por meio de parafusos com tudo que pode se descolar em trombas com tudo que pode se desembocar em frotas com tudo que pode se despovoar no meio de tropas

com tudo que pode se desmentir em gestos com tudo que pode se desfazer em imagens com tudo que pode se descosturar em escórias com tudo que pode se desmembrar em membranas

com tudo que pode se desarranjar por meio das erosões com tudo que pode se desalojar após as explosões com tudo que pode se desencravar em escarificações com tudo que pode se desossar com a ferrugem

com tudo que pode se dissipar em ceras com tudo que pode se desandar em rodas com tudo que pode se destrancar em ruas com tudo que pode se desenredar em feiúras

com tudo que pode se desamarrar em escadarias com tudo que pode se despencar atrás das portinholas com tudo que pode se desatrelar em troças com tudo que pode se desvelar em vórtices

com tudo que pode se desatar acima das violas com tudo que pode se desdizer com astúcias com tudo que pode se desprender com alicates com tudo que pode se desarticular em restos

com tudo que pode se desalinhar atrás das grades com tudo que pode se deslizar acima das traves com tudo que pode se desaprumar das cadeiras com tudo que pode se desanuviar no centro das tempestades

com tudo que pode se descuidar após a saciedade com tudo que pode se despregar atrás das estantes com tudo que pode se desdourar em demônios com tudo que pode se destroçar com miolos

com tudo que pode se desaguar sobre formigas com tudo que pode se dissecar em parábolas com tudo que pode se desacreditar em fábulas com tudo que pode se desferir em frestas

ENQUANTO UMA GARGANTA SE RETORCE

e a gralha desce da nuvem
e nenhum orvalho atravessa o campo


ENQUANTO UM ADORMECIDO SE ERGUE

e o outono se deita sob as rosas
e nenhum rosto amanhece


ENQUANTO UM CASCO SE DESESPERA

e o ruído enrouquece
e nenhuma sombra se apaga


ENQUANTO UMA LÁSTIMA SE FAZ AUSENTE

e a curva estremece
e nenhum soldado se condensa


ENQUANTO UM VASO SE ENRAIVECE

e o galo acende sua crista
e nenhum estábulo desmorona


ENQUANTO UM OLHO SE APROXIMA

e o vício amadurece
e nenhum escaravelho se silencia


ENQUANTO UMA VOZ SE ESPALHA

e o mundo se contrai
e nenhum artifício aniquila


ENQUANTO UM MURO SE MULTIPLICA

e o rosto se mumifica
e nenhuma teia ilumina


ENQUANTO UM TANQUE SE ENRIJECE

e a mesa se congela
e nenhum sono anoitece

os túneis, as escrivaninhas e as escumadeiras começam a se enlaçar ao redor das axilas tal como se antes nunca houvesse ocorrido aquele entrecruzamento de nódoas esfomeadas

quando um vestido se estilhaça sobre os terraços suspendendo-se contra aquela inversão que acaba de ser expelida através das entranhas

ou como se tudo pudesse retornar à sua nulidade inesperada atravessando o deserto das cloacas ainda que nem toda terra seja restituída à sua forma primordial

como aquele rosto a dissolver-se com as suas minúsculas ventosas para além do centro da sala e nunca mais permanecesse encerrado em sua própria moldura

à semelhança daquela abóbada seviciada que recomeça a trajetória acima dos gestos de um ancião eclodindo em mil fagulhas de aço

enquanto as ventanias ainda resistem no insoldável nódulo das imensas cavidades da casa de alvenaria ao mesmo tempo que os quartzos gemem de ponta a ponta na infame réstia de percevejos onde debaixo do olho da tristeza a porta do saguão se pulveriza

e todos cães emplumados se inclinam contra os degraus enfurecidos tal como se a maçaneta se retorcesse num murmúrio incompreensível de algumas cutiladas sonolentas no instante em que balbuciamos as intermitências de uma língua absolvida

como se um leve relampejar pudesse arrancar-lhe a mão que no fundo dos lajedos se enclausura e nessa efusão de manchas uma minúscula orla esbranquiçada se atirasse contra seu rosto

e assim pouco a pouco o devolvesse ao céu crivado de artérias enquanto um sorriso se derrama no interior da vasilha desconsolada

tal como se um grito escarrado se sonhasse para fora de si quando somos compelidos a esculpir a cada noite por mais breve que seja a vida no estreito cadafalso do vento


(Poemas do livro Metacorporeidade, de Chiu Yi Chih. São Paulo: Córrego, 2015.)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

POEMAS DE RONALD POLITO



MANHÃ


Um fórceps.
Do escuro para
dentro. Da luz
parcial. Aos solavancos.
Numa cratera.
Sem tamponamento.
Entre moscas. Tapas.
Pelo meio do maciço
contrativo. Refilado.
No coração da bomba.
Da propriedade dos meios de.
Com tentáculos.
Glaciares.


MÃO DUPLA


horizonte-abismo
daqui nada é distinto
nem se emenda
daqui tudo é miúdo
não se tem a ideia de muito
nenhuma trilha ou asa
ou pausa
acordar já parece grande
o bastante
no peito uma pedra crescendo para
si
há certos animais que
sangram mais
na hora da agonia da alegria
mãos que antes são
garras que ainda
são facas
cédulas xifópagas
páginas diárias de despedaçar
luas e luas sem luz
aqui nesta paragem ou pane
para cada célula
que dana
então
de onde
abismo-horizonte


APARIÇÃO

Nenhum rastro ou luz,
vento sem assento,
não coração, legião.

Nos ombros, tudo (menos
a loucura).
E a lição absurda das entranhas.
Então; a visão.

Eu, um holocausto vivo.


SIM

deste único lugar um
lugar algum
aqui de dentro
da pós-morte
o tempo depois do tempo
este além sem suplemento
o adiante redundante



ENCANTAMENTO

Nem teus passos.
Nem teu peso.
Ou o hálito
como novelo. Ou
a pele feito correnteza.
E um roçar de braços.
Com a prumada do peito.
E já o rosto inteiro.
Não. Nenhuma palavra.


QUEM IMAGINARIA


um deserto sem desertos


* * *


Um relâmpago.
Escuro.
Um homem.

(Poemas do livro Ao abrigo. Belo Horizonte: Scriptum, 2015.)

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

ANTILABIRINTO










éstos mis alarmados compañones.

César Vallejo
À desordem de pensamentos escuros —
figuras foscas, restos roídos
nos escaninhos
da memória.
Este é o meu braço esquerdo
que por sua conta
recusou ser treva.
Este é o meu braço direito
avesso a considerações
indelineável como um pesadelo.

Absurdidade, minha fêmea
entulhada em meu desterro.
Tudo são retalhos,
figuras em folhas-de-flandres
refratadas em meu próprio minério.
Morde-se, minha memória.
Nenhuma similitude
com o lameiro do cotidiano.
Estamos quites. Ensarilhados
em nosso nevoeiro.

Absurdidade, minha fêmea
reverbera em meus ossos:
estas quinas sem remate;
estas quinas de um antilabirinto
que sozinho percorro.
Esta é a minha clavícula;
esta é a carantonha com que insulto
as febres no espelho. Porque nada
faz sentido. Estamos quites.
Ensarilhados em nosso nevoeiro.

Absurdidade, minha fêmea
esta é a minha língua deformante,
meus jogos dissuasórios.
Porque nada faz sentido, nada.
Anjos pictóricos de estranhas asas
anunciam o próximo massacre:
corpos carbonizados numa aldeia
da Nigéria. Dois mil mortos.
Nenhuma repercussão na mídia.
São apenas negros: quem se importa?

2015

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

SOBRE A "LITERATURA DE MERCADO" (II)



A Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), evento criado para promover os autores publicados pelas grandes editoras, em especial a Companhia das Letras, com amplo apoio midiático, recebe patrocínio de um banco estatal, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDS). Sim, um evento de empresas privadas recebe financiamento de um banco público. Alguém sabe dizer quais são as contrapartidas oferecidas por essas empresas privadas ao estado brasileiro? Ou trata-se apenas de mais um triste exemplo da privatização do estado nacional?

terça-feira, 20 de outubro de 2015

SOBRE A "LITERATURA DE MERCADO"

Há literatura de entretenimento de qualidade? Sim, há. Escritores que se dedicaram à ficção científica, ao terror, ao romance policial ou de aventura, como H. P. Lovecraft, H. G. Wells, Julio Verne, Ray Bradbury, Conan Doyle, Alexandre Dumas, para citar poucos exemplos, criaram obras originais, com enredos que anteciparam invenções e descobertas científicas que aconteceriam muito tempo depois, como os submarinos e a viagem à lua, ou que ainda não ocorreram, como o deslocamento para outras dimensões do tempo. Não se trata, é claro, de obras com a mesma densidade psicológica de Dostoievski, com a riqueza da investigação social de Balzac ou com a violenta novidade formal de Joyce, mas são bem construídas, prendem a atenção do leitor ingênuo ou culto (Jorge Luis Borges amava Robert Louis Stevenson, autor de A Ilha do Tesouro) e conseguiram passar pelo crivo do mais severo dos críticos literários, o Senhor Tempo. 
 
OUTRA COISA, totalmente diferente, é a "literatura de mercado" promovida pela mídia, grandes livrarias e editoras, como a Companhia das Letras, que não tem a mesma originalidade temática de um Júlio Verne ou de um H. G. Wells, nem preocupações de ordem filosófica, estética ou social, mas que é maquiada para ser apresentada ao público como se fosse "grande literatura". Nisso reside a sua essencial mentira: não estamos falando aqui de obras que acrescentam alguma coisa à tradição literária, em geral elas apenas repetem clichês sobre a violência urbana, o misticismo, a sexualidade, conflitos culturais ou supostos dramas existenciais com a leveza e descompromisso de uma crônica de jornal ou livro de autoajuda. São publicações para serem lidas no salão de cabeleireiro, no consultório da psicanalista, no metrô, na fila do banco, e depois emprestadas a um amigo e completamente esquecidas. Não têm substância que permaneça, que mereça releitura, para a descoberta de outras camadas de significados ou para o reencantamento dos sentidos, pelo prazer estético do texto. São livros realmente ruins. 

Sem dúvida, é possível argumentar que essa avaliação depende também de critérios de gosto, que é subjetivo, ou de modelos teóricos da crítica literária. Neste caso, podemos contra-argumentar apresentando a seguinte comparação: um livro como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, foi publicado em capítulos na imprensa diária da época, há mais de cem anos – logo, havia um propósito comercial nessa literatura – mas ainda hoje é lido e estudado, por sua imensa riqueza formal e imaginativa; alguém acredita, sinceramente, que o romance de Fernanda Torres será lembrado daqui a cinco anos, ou mesmo cinco meses? Não há nenhum mal na diversidade de estilos, gêneros e técnicas literárias, não há nenhum mal num escritor pensar deliberadamente em escrever obras de entretenimento, para obter retorno financeiro, quando suas obras são bem escritas (pensemos no caso de Edgar Allan Poe, criador da literatura policial). 

O problema ético, literário e cultural, em minha opinião, acontece quando a “literatura de mercado” monopoliza a atenção da mídia, se impõe ao leitor pelo lobby de grandes editores e livreiros, obtém o favor de concursos, bolsas e editais, pelo poder de fogo da indústria cultural, acaba sendo reconhecida inclusive pelo Ministério da Cultura e secretarias estaduais, em detrimento da literatura séria produzida por poetas, contistas, romancistas ou dramaturgos que não compactuam com o mercado e produzem obras densas e inventivas que são recusadas pelo lobby da indústria cultural. Não existe igualdade de oportunidades porque o livro que saiu pela pequena editora não terá o mesmo espaço, na vitrine da Livraria Cultura, que o título publicado pela Cosac & Naif ou pela Record, não terá resenha ou mesmo notinha nos jornais, não será comprado pelos órgãos públicos para ser distribuído em bibliotecas escolares e raramente receberá prêmios ou bolsas em concursos. É uma literatura que já nasce com o estigma de “difícil”, “não comercial”, portanto, à margem do sistema. É negada a igualdade de oportunidades e, assim, é negada a liberdade de escolha do leitor: o mercado impõe aquilo que bem entende, com uma imensa rede de apoio pública e privada, e assim implanta a massificação, a boçalização da sensibilidade. Quem perde com isso? Os escritores, os leitores, a literatura e a construção da memória e da cultura nacional. 

CARAPUÇAS PARA TODOS



Poetas que defendem o golpe de estado contra Dilma não são ingênuos, desinformados ou ignorantes, não desconhecem a história recente do país nem estão preocupados com ética, democracia, inclusão social ou com o desenvolvimento do país. São apenas burgueses que defendem os seus interesses de classe e pequeno-burgueses que imaginam fazer parte da elite e estão pouco se lixando para os programas sociais e a erradicação da miséria. São bons poetas? Sim, muitos deles são bons poetas, mas, como seres humanos, são LIXO e prefiro não conviver com a escória fascista. P.S.: a carapuça é para todas as cabeças que a merecerem.

domingo, 11 de outubro de 2015

PEQUENA LISTA DE COISAS DELICADAS

1) microleão esculpido em marfim; 2) leque decorado com uma lua vermelha; 3) formigueiro seco construído sobre um pedaço de cristal; 4) borboleta amarela voando sobre um filete de água; 5) faca tradicional japonesa (tanto), utilizada no suicídio ritual dos samurais (seppuku); 6) um anel de estanho entalhado; 7) coleção de malaquitas; 8) visão inesperada de seios; 9) caracol subindo numa folha; 10) pintura de galo a nanquim em papel de seda; 11) cálice de saquê do tamanho de um dedal; 12) o som da flauta de bambu; 13) pêlos ruivos púbicos; 14) o desenho da espuma nas ondas, recordando um dragão-do-mar; 15) o desenho das nuvens simulando um elefante; 16) frasco de mercúrio líquido; 17) pequeno peixe obeso cor de mercúrio; 18) arcos no pátio de uma igreja franciscana do século XVII; 19) espadas curvilíneas árabes; 20) fazer um tucano sangrar pelos olhos; 21) lagarto marrom se escondendo atrás das rochas numa tarde clara de sol.


PEQUENA LISTA DE COISAS ENÉRGICAS

1) deusa Kali dançando sobre o corpo de Shiva, com um colar de crânios sobre os seios e um cinturão com mãos de demônios decepadas; 2) Avalokiteshvara com seus 108 braços segurando diferentes armas sobrenaturais; 3) Ogum dançando com a sua espada; 4) vendedor na feira partindo um coco ao meio com o seu facão, em um único golpe; 5) zigurate de sete andares da antiga Babilônia; 6) a cidade de pedra de Angkor, no Camboja; 7) hélices de um helicóptero russo; 8) casal de leões fazendo amor na caverna; 9) leopardo correndo na savana; 10) kotegaeshi (chave de pulso do Aikidô e outras artes marciais japonesas) aplicado com timing, energia e precisão; 11) anel de ouro com um rubi vermelho-marrom; 12) a voz de sua mãe, em algum momento de sua infância; 13) os dentes de um cão pincher; 14) a Sagração da Primavera de Igor Stravinski; 15) caça russo Sukhoi-32 voando a dois mil km/2 sobre a Síria, mandando os terroristas para o inferno; 16) Claudio Daniel arrancando a mandíbula de tucanos e liberais.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A LÍRICA ANARCOPUNK DE DELMO MONTENEGRO





















Delmo Montenegro publicou em 2003 o seu livro de estreia, Os jogadores de cartas, poema longo que mescla narrativa histórica, mitologia, crítica política, drama teatral e sátira do discurso da alta cultura. Seguindo o conceito do poeta norte-americano Edgar Allan Poe, para quem o poema longo é uma sucessão de poemas breves, Delmo Montenegro constroi seu livro inaugural como uma sequência fragmentária e descontínua de elementos verbais e visuais, utilizando diferentes tipologias de letras e recursos de espacialização de palavras e linhas, à maneira do Lance de dados de Mallarmé, que funcionam como a notação em uma partitura musical, indicando pausas, ênfases, mudanças de timbre, materializadas na oralização. A dicção do poeta pernambucano é paródica, captura e amplia diversas vozes, a melopeia simbolista, o jorro semântico beatnik e certo brutalismo expressionista, como podemos ler nestas linhas: “nos túneis de horror materno / nós caminhamos / por ordem da rainha de Bethsabath / (...) tateando pelo escuro pelas fossas / pelo sol pútrido das fezes / caduceu das moscas / avançamos / pelo Horror disforme / em nossas máscaras”. O jogo paródico e polifônico é reforçado pela colagem de desenhos e ilustrações que funcionam como ready made dadaístas, assim como as citações de personagens históricos e mitológicos de diversos tempos e espaços, reais e imaginários. Todas essas citações têm evidente caráter lúdico e compõem uma alegoria jocosa e cruel da jornada humana.

Ciao cadáver, segundo livro de Delmo Montenegro, publicado em 2005, com projeto gráfico de Jorge Padilha, investe em outra estratégia criativa, apresentando poemas de arquitetura minimalista que exploram recursos semânticos como neologismos, arcaísmos, termos científicos extraídos da medicina e da biologia e vocábulos estrangeiros para a criação de teratologias que recordam a pintura de Pieter Bruegel ou Hieronymus Bosch: “luxo-caveira”, “mandíbula-bistrot: vagina”, “achtung-esqueleto”, “cobra-caveira”, “pirâmide fecal”.  É uma poesia altamente concentrada, com ecos evidentes da música erudita de vanguarda – Boulez, Stockhausen, Varèse, Cage –, porém, não deve ser identificada com alguma forma de poesia pura ou abstrata, alheia aos acontecimentos no mundo, bem ao contrário; trata-se de uma poesia crítica, tanto às formas consolidadas do discurso quanto à própria realidade, crítica que se concretiza em compactas metáforas como “latão-ônix-pesadelo”, “televisão-diapasão-diarreia”, “língua-porco-crematório”, “aracnoacordedestempero”. Ciao cadáver tem uma dicção anarcopunk habitada por pesadelos de Francis Bacon ou fantasmas de Franz Kafka, em que o próprio lirismo se transfigura em cenários hellraiser, como nestas linhas da composição intitulada ausência: tálamo-caveira-canto (para greta): “um leque / esqueleto-cobre: / rizoma-de-dores (maria / erêndira / recostada) ossuário- / fragonard / pânico da língua / vestes / sob vestes / : ali (ônfalo-angústia- / cachalote) sobrescreves / beleza-máscara”.   

Em seu livro mais recente, Recife no hay, publicado em 2013 e vencedor do I Prêmio Pernambuco de Literatura, Delmo Montenegro retorna a um discurso mais linear, porém, mantém a ironia, o sarcasmo e o humor negro já presentes em seus livros anteriores, em versos como estes: “vamos para a praia dos nervos / para as geleiras / infames / desossar orquídeas / montar na prancha dos assassinos / o grande / kahuna / espera / por / nós”. Em outra composição, intitulada os dinossauros, o poeta pernambucano escreve: “poetas são como / dinossauros / todos vão ser extintos / de uma hora / pra outra, todos / sem exceção / guarde o seu lote / na cratera / de / Chicxulub”.  A virulência satírica, mais visível neste volume que nos anteriores, aproxima Delmo Montenegro da tradição marginal de poetas como Roberto Piva, Sebastião Nunes e Glauco Mattoso, linha criativa diversa do construtivismo de Ciao cadáver mas com o mesmo potencial subversivo em relação às “boas maneiras” do verbo. Outro aspecto que chama a atenção em Recife no hay são as narrativas poéticas, a meio fio entre a fabulação e o canto dissonante, como por exemplo nesta peça, de alto impacto: “sim, seremos amantes / solte sua voz / valvulada / durma comigo / seja meu cadáver esta noite / depois / ponha / os cílios postiços / e / desapareça / sem amor, sem paradas cardíacas / sejamos / apenas / dóceis animais empalhados / -- ouça agora, revolva agora -- / meu / nome /é / cão / -- abra meu zíper // / palhas”.

(Artigo de Claudio Daniel  publicado na edição de outubro da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

RECITAL DA CAIXA PRETA & CADERNOS BESTIAIS


















O Recital da Caixa Preta acontecerá no dia 22 de outubro, quinta-feira, a partir das 19h, na Casa das Rosas, situada na Av. Paulista, n. 37. Na ocasião haverá leituras poéticas de autores convidados e o lançamento de vários livros da Lumme Editor, inclusive do segundo volume de minha obra Cadernos Bestiais. Publico abaixo um dos poemas do livro:

HINO À POLÍCIA

Toca o terror —
cabeças de arimãs

reverberam féretros
assanha-se histérica

turba de behemoths
damballas beherits

capacetes visores
escudos tonfas

vidro moído ferro
esturricado pneus

incendiados entre
balas de borracha

rasgando rasgando
vielas entrevértebras

fantoches toscos
fantoches-ferrabrás

com fuzis automáticos
de mira telescópica

escarnecidos espectros
em carros blindados

para a contra-insurgência
nas avenidas furiosas

de meu próprio país.

2015

terça-feira, 6 de outubro de 2015

PEQUENA LISTA DE LIVROS ESSENCIAIS



1) a Odisseia de Homero; 2) Tao Te King, de Lao Tzu; 3) Dhammapada; 4) Bhagavad Gita; 5) I Ching; 6) Cântico dos Cânticos de Salomão e o Qohélet, do Antigo Testamento (pela poesia); 7) A Antologia da Poesia Clássica definida por Confúcio; 8) A poesia de Li T'ai Po; 9) os diários de viagem de Bashô; 10) a Chrestomatia arcaica, que reúne a poesia trovadoresca galego-portuguesa; 11) a Divina Comédia de Dante; 12) os Lusíadas (e os sonetos) de Camões; 12) os Ensaios de Montaigne; 13) o Fausto de Goethe; 14) As Flores do mal de Baudelaire; 15) a Poesia Completa de Rimbaud; 16) idem, de Mallarmé; 16) Parerga e Paraliponema, de Schopenhauer; 17) Assim falava Zaratustra, de Nietzsche; 18) A origem das espécies, de Darwin; 19) o Manifesto Comunista e O Capital, de Marx; 20) O futuro de uma ilusão e O mal estar na civilização, de Freud; 21) Crime e castigo e Os irmãos Karamazov, de Dostoievski; 22) O castelo, A metamorfose e O processo, de Kafka; 23) A montanha mágica e Doutor Fausto, de Thomas Mann; 24) Obras completas de Jorge Luis Borges; 25) O eu profundo e os outros eus, de Fernando Pessoa; 26) Os cantos, de Ezra Pound; 27) Terra devastada, de T. S. Eliot; 28) Ulisses e Finnegans Wake, de James Joyce; 29) Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa; 30) Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; 31) Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade; 32) Poesia completa de Maiakovski; 33) Poesia completa de João Cabral de Melo Neto; 34) centenas de outros títulos que não caberiam aqui.

PEQUENA LISTA DE COISAS SENSUAIS



1) tatuagens; 2) tecidos indianos; 3) safiras; 4) conchas brancas; 5) frutos-do-mar; 6) a Lua; 7) papel de seda; 8) o marfim; 9) a madrepérola; 10) saquê gelado; 11) estátuas do período alexandrino; 12) pés femininos nus; 13) gargantilhas; 14) correntinhas de tornozelo; 15) o mar; 16) a cor azul; 17) morangos, goiabas; 18) gravuras coloridas japonesas; 19) danças africanas; 20) Cuba; 21) a noite; 22) música de Debussy e Henri Duparc; 23) poesia de Herberto Helder; 24) uma larva, transformada em borboleta, rompendo o casulo e alçando voo pela primeira vez.

PEQUENA LISTA DE COISAS ADMIRÁVEIS



1) sashimi e sushi com saquê; 2) arroz indiano com passas e especiarias; 3) chá do Ceilão; 4) vinho tinto seco; 5) doces portugueses; 6) danças tradicionais da Indonésia; 7) espadas japonesas; 8) máscaras africanas; 9) os Cantos de Ezra Pound; 10) os Ensaios de Montaigne; 11) os haicais de Bashô; 12) o jazz de John Coltrane; 13) as óperas de Wagner; 14) gatos, tigres, panteras, felinos em geral; 15) orquídeas; 16) a pintura de Miró, Kandinsky, Maliévitch; 17) a Palestina; 18) a Índia; 19) a China; 20) o Japão; 21) Marx, Engels, Lênin, Stalin; 22) a arquitetura de Gaudí; 23) a mulher que nunca conheci; 24) a cor vermelha; 25) a revolução socialista internacional.

PEQUENA LISTA DE COISAS ABOMINÁVEIS



1) couve-de-bruxelas; 2) beterraba; 3) mandioquinha; 4) vinho doce espumante; 5) a cor roxa; 6) karaokê; 7) pastores evangélicos; 8) sertanejo, pagode e outros ruídos antimusicais; 9) a mídia hegemônica; 10) bancos; 11) latifúndios; 12) juízes; 13) Paulo Coelho; 14) Angélica Freitas; 15) Ricardo Domeneck; 16) fome; 17) guerra; 18) ódio; 19) preconceito; 20) P$DB; 21) o telefone; 22) capitalismo; 23) racismo; 24) sionismo; 25) fascismo; 26) imperialismo; 27) a burrice.

domingo, 4 de outubro de 2015

SOBRE A CRÍTICA LITERÁRIA


Críticos literários cometem erros? Sim, com frequência! Saint-Beuve condenou a suposta "imoralidade" de Flaubert e Baudelaire. Sílvio Romero não reconheceu plenamente o talento de Machado de Assis. José Veríssimo condenou a linguagem “obscura” de “Os sertões”, de Euclides da Cunha. Antonio Candido excluiu o barroco de sua “Formação da Literatura Brasileira” e não compreendeu Sousândrade. Wilson Martins considerava Mário Palmério superior a Guimarães Rosa -- para citar poucos exemplos. A crítica literária, quando não segue determinada teoria literária, com um método particular de leitura e interpretação de textos, obedece a critérios subjetivos de gosto pessoal, e em AMBOS os casos pode cometer injustiças, inclusive pela inadequação da teoria ao texto analisado. Isto não significa que o trabalho do crítico seja sempre insuficiente ou inferior ao texto literário: ele é uma intervenção paralela à obra literária e o seu mérito, quando o crítico realiza bem a sua tarefa, está na discussão inteligente dos procedimentos artísticos adotados pelo escritor, contribuindo para iluminar o entendimento dessa obra. O crítico fracassa quando sua leitura não é capaz de dar conta da proposta do autor analisado, quando valoriza excessivamente autores de segunda ordem, por motivos nem sempre literários, ou quando subestima autores de maior originalidade, por não compreendê-los ou por razões de desavença pessoal, interesse comercial, orientação jornalística ou política literária. Uma atividade de especial importância do crítico literário é a do questionamento, ampliação ou reinvenção do cânone literário, pela inclusão de autores de qualidade injustamente esquecidos, como Augusto de Campos fez com Sousândrade e Pedro Kilkerry, e também pela exclusão de autores sem originalidade e densidade semântica, cuja reputação foi construída a partir de redes de relacionamento social próximas às instâncias de poder universitário, editorial ou midiático (sim, esta é uma referência direta a Ricardo Domeneck, Angélica Freitas e outros autores medíocres inventados por Carlito Azevedo). Em todos os casos, a crítica literária nunca é mais importante que a leitura direta dos poemas, contos, novelas ou romances. Ela própria constitui um gênero literário, quando tem a densidade do ensaio, e pode ser considerada, para além da dimensão argumentativa, como construção estética, como no caso dos livros de Walter Benjamin.

FILÓSOFOS, COGUMELOS
















Rumor de verde-água esse bosque de caninos que desaparece.

Trevos
na boca

— odor
de cogumelos

e lua-de-
mosquitos —.

Estranha senhora fênix viaja em
caligrafia sua
tiara
azul.

Vagares da lua de outono biombo jasmim dragão
no teto
curvo
como atravessar
espelhos.

— Armas e cascos de cavalos
ao longe —.

Filósofos-de-laca conjeturam possíveis amanhãs

2003 

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

LEOA, CLAVÍCULA




















Jovem negra pinta de azul-violeta as pontas dos mamilos.
Há jaguares
sob as unhas.
Mímica
de esfinge
nos pulsos.
Núbia voz animal raio-de-pedra golpeia nudez janaína
reflexo de híbrida
orquídea
ou seio-
noite-
flor-
que incandesce.
(Três colares
de relva;
riscos
gravados
na rocha,
sortilégio.)
(Pintura: mascar o carvão leonino da desértica
epiderme,
ruminando
arenoso
até cantar
a clavícula.)

Claudio Daniel, 2003.

Imagem: Uwe Ommer.

(Poema publicado no livro Figuras metálicas. São Paulo: Perspectiva, 2004.)