domingo, 30 de agosto de 2015

ZUNÁI, REVISTA DE POESIA & DEBATES















AGOSTO / 2015
  
A figuração do cigano em narrativas modernistas: leitura de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, Rui Lobato Bahia Jr.

Guimarães Rosa, Peter Lund e o homem da lagoa santa, Jean Marcos Torres de Oliveira e Wellingtin Diogo Leite Rocha

Cadernos bestiais, a linguagem fundida da poesia, Antônio Moura

Partituras do insólito: a poesia de Ricardo Aleixo, Claudio Daniel

Exatos trinta anos depois, o crítico sociólogo ainda tropeça na poesia, Leda Tenório da Motta

A flor de lótus de Adriana Zapparoli, Lucas Zapparoli de Agustini

Poemas traduzidos de Federico Garcia Lorca, Antonin Artaud, Henri Michaux, Lezama Lima, Júlio Cortazar, Gonzalo Rojas

Entrevistas com Glauco Mattoso & Ademir Demarchi

Prosa de Fernando Ramos, José Tamargo, Roseana Nogueira

Galeria: obra visual de Henri Michaux, poemas visuais de Gil Jorge, poemas e trabalhos plásticos de Chiu Yi Chih (projeto LOZ)

Especial: homenagem a Gilka Machado.


Zunái, Revista de Poesia & Debates, www. zunai.com.br

Preço: Inconcebível. Inefável.


Onde encontrar: no ciberespaço, essa “gran cualquierparte” (Vallejo).

terça-feira, 25 de agosto de 2015

UMA CRÔNICA DA TRAGÉDIA PALESTINA


Claudio Daniel

Ghassan Kanafani (1936-1972), um dos escritores palestinos mais importantes do século XX, considerado um dos renovadores da prosa de ficção em língua árabe, também se destacou como ativista da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e escreveu um notável ensaio histórico sobre a gênese dos conflitos na região, que acaba de ser publicado no Brasil, com o título A revolta de 1936-1939 na Palestina (São Paulo: Sundermann, 2015). Nesta obra, Kanafani – nascido na cidade de Akka (Acre), numa família de classe média, exilado no Líbano desde o massacre da aldeia palestina de Deir Yassin, em 1948, e assassinado pelo Mossad em 1972 –, retrata o início da colonização do pais das oliveiras, quando milhares de judeus europeus imigraram para a região, nas primeiras décadas do século XX, com apoio explícito do Império Britânico, que administrava o país árabe. Conforme escreve o autor: “Entre 1933 e 1935, 150 mil judeus imigraram para a Palestina, elevando a parcela dessa população no país a 443 mil, ou seja, 29,6% do total” (nos primeiros anos do século XX, a população judaica na Palestina era de apenas 5%). A imigração foi facilitada pela compra de vastas extensões de terras na Palestina por capitalistas judeus da Europa, que expulsaram os camponeses palestinos das propriedades agrícolas para oferecer emprego unicamente a trabalhadores judeus. A dominação econômica dos novos senhores estendeu-se também ao comércio e à indústria: “Em 1935, por exemplo, os judeus controlavam 872 de um total de 1.212 estabelecimentos industriais na Palestina, empregando 13.678 trabalhadores, enquanto os demais eram controlados por árabes-palestinos e empregavam 4 mil trabalhadores”. Além disso, as diferenças salariais eram gritantes: “Um censo oficial de 1937 indicava que um trabalhador judeu recebia 145% a mais em salários que um árabe palestino. Na indústria têxtil, a diferença entre trabalhadoras judias e árabe-palestinas atingia 433%, e na indústria de tabaco, 233%”. A situação causada pelo êxodo rural dos camponeses palestinos, desemprego nas grandes cidades, baixos salários e segregação étnica motivou greves e manifestações de protesto da população palestina: “Durante os levantes de 1929 e 1933, muitos pequenos camponeses árabe-palestinos venderam suas terras aos latifundiários para comprar armas para resistir à invasão sionista e ao Mandato Britânico. Foi essa invasão que, por ameaçar o modo de vida no qual religião, tradição e honra jogam um papel importante, capacitou os líderes feudais e clericais a permanecerem numa posição de liderança”. O Partido Comunista Palestino, nessa época, tinha pouca adesão de trabalhadores árabe-palestinos e sua influência era escassa. Os países árabes vizinhos, por sua vez – Síria, Iraque, Jordânia – eram governados por monarquias reacionárias alinhadas aos interesses britânicos e não tinham interesse em apoiar uma revolução nacionalista e antiimperialista das massas trabalhadoras palestinas, que poderia repercutir na região e desestabilizar as tiranias locais. A revolta palestina, portanto, reencenava o mito bíblico da luta de Davi contra Golias: neste caso, um imenso Golias, representado pela Inglaterra – maior potência econômica e militar do planeta, na época –, pelo sionismo, governos árabes feudais e uma liderança palestina que temia tanto a perda de poder para os sionistas quanto as aspirações revolucionárias da classe trabalhadora palestina. Este é o cenário da tragédia.          

LEVANTE QASSAMISTA

No dia 12 de novembro de 1935, um clérigo palestino, Izz al-Din al-Qassam, partiu para as colinas de Ya’bad com um grupo de 25 homens, com o objetivo de iniciar a resistência armada contra a ocupação sionista e o Mandato Britânico. Conforme relata Kanafani, a revolta deveria acontecer em três etapas: “preparação psicológica e a disseminação do espírito revolucionário, a formação de grupos secretos, a formação de comitês para recolher contribuições e outros para adquirir armas, comitês de treinamento, segurança, espionagem, propaganda e informação e para contatos políticos – e, então, revolta armada”. Os planos revolucionários foram descobertos pelos britânicos, ainda em sua etapa inicial, e al-Qassam foi executado, gritando: “Morrer como mártir!”. O cortejo fúnebre do clérigo atraiu as massas palestinas e logo se tornou um ato de protesto político, cujos desdobramentos aconteceriam nos anos seguintes.

Em 1936, foi decretada uma greve geral, seguida por um movimento de desobediência civil e insurreição armada. “Centenas de homens em armas afluíram para juntar-se aos bandos que haviam começado a espalhar-se pelas montanhas”, escreve Kanafani. “O não-pagamento de impostos foi decidido na conferência que ocorreu na Universidade Raudat al-Ma’aref al-Wataniya em Jerusalém em 7 de maio de 1936, à qual compareceram 150 delegados representando os árabes da Palestina”. Foi nessa conferência, prossegue Kanafani, “que a liderança do movimento de massas comprometeu-se com uma aliança imaterial entre a liderança feudal-clerical, a burguesia comercial urbana e um número limitado de intelectuais. (...) A conferência decidiu unanimemente anunciar que nenhuma taxação será paga, a iniciar-se em 15 de maio de 1936, se o governo britânico não fizer uma mudança radical em sua política, cessando a imigração judaica”. A resposta das autoridades britânicas foi clara: nenhum diálogo, nenhuma negociação, apenas a mais feroz repressão, realizada conjuntamente com as forças sionistas locais, como a milícia paramilitar Haganá e os quadros policiais integrados por imigrantes judeus. Conforme relata Kanafani: “o número de palestinos-árabes mortos na revolta de 1936 foi por volta de mil, além dos feridos, desaparecidos e internados. Os britânicos utilizaram a política de explodir casas em larga escala. Além de explodir e destruir parte da cidade de Jaffa (18 de junho de 1936), onde o número de casas explodidas estimado foi de 220 e o número de pessoas que ficaram sem teto, 6 mil. Além disso, centenas de cabanas foram demolidas em Jabalia, 300 em Abu Kabir, 350 em Sheik Murad e 75 em Arab al-Daudi. (...) Nos vilarejos, de acordo com as estimativas de al-Sifri, 143 casas foram explodidas por razões diretamente ligadas à revolta”. A prática da demolição de casas de suspeitos de colaboração com a resistência contra a ocupação sionista é realizada até hoje nos territórios palestinos e, para citarmos apenas um episódio, cerca de cem mil palestinos ficaram desabrigados durante a ofensiva israelense na Faixa de Gaza, em 2014, como resultado dos bombardeios e da demolição de moradias realizada pelo Exército israelense.

A revolta de 1936 foi encerrada em 11 de outubro, devido à pressão das monarquias árabes da região, ansiosas pelo fim do conflito, e não trouxe nenhuma conquista significativa para os palestinos. Ao mesmo tempo, os vínculos entre os britânicos e os sionistas se fortaleceram, sobretudo no campo da repressão: em 1935, havia 365 sionistas servindo nas forças policiais na Palestina; no ano seguinte, esse número aumentou para 682, e logo saltou para 1.240 sionistas, armados com rifles militares. No final de 1936, o número de policiais judeus armados era de 2.836, sem contar as milícias sionistas, como a Irgun e a Haganá, que somavam 6.500 homens. Estas organizações dariam origem, a partir de 1948, às Forças Armadas da entidade sionista.

Nova ascensão revolucionária: 1937-39

Entre 1937 e 1939, porém, a revolta palestina assume novo fôlego: segundo Kanafani, “as forças britânicas que dominavam a Palestina estavam enfraquecidas, o prestígio do colonialismo estava no seu ponto mais baixo e a reputação e influência da revolta tornaram-se a força principal no campo”. Como sinal de solidariedade aos camponeses rebelados, nas cidades palestinas, muitos estudantes, intelectuais e trabalhadores passaram a usar o lenço típico do camponês, o keffiya. A repressão, novamente, se abateu sobre o movimento: um grande números de camponeses foi executada apenas pela posse de arma, cerca de dois mil palestinos foram encarcerados e cinco mil casas destruídas. Além disso, 148 revoltosos foram enforcados em Acre.

Novamente, os governos árabes submissos ao Império Britânico, especialmente os da Arábia Saudita e Iraque, realizaram missões diplomáticas com o objetivo de encerrar toda atividade de resistência, mas a revolta prosseguiu até 1939, apesar da lei marcial e do toque de recolher impostos pelos britânicos, das prisões em massa, execuções e demolições de casas. Em março de 1939, é assassinado um dos principais líderes da revolta, Abd al-Rahim al-Haji Muhammad, e pouco depois as forças jordanianas prendem Yusuf Abu Daur, entregue por eles aos britânicos. “Além disso”, escreve Kanafani, “o terrorismo britânico e sionista nos vilarejos fez com que as pessoas ficassem com medo de apoiar os rebeldes e supri-los com munição e comida e, sem dúvida, a ausência de até mesmo uma mínima organização tornou impossível superar esses obstáculos”.

O Partido Comunista Palestino atribuiu a derrota a vários fatores, entre eles a ausência de uma direção revolucionária, a falta de comando central para as forças revoltosas e a situação mundial desfavorável (em 1939, teve início a II Guerra Mundial e o fascismo estava em plena ascensão na Europa). Como resultado do fracasso da insurreição, entre 1936 e 1939 as perdas árabes-palestinas totalizavam 19.762 mortos e feridos, além de 5.679 presos. A burguesia judaica aproveitou-se do clima de instabilidade política para ampliar a sua presença na região e “construir uma rede de rodovias entre as principais colônias sionistas e as cidades que mais tarde formariam a porção básica da infraestrutura da economia sionista. Depois, a principal rodovia de Haifa a Tel Aviv foi pavimentada, e o porto de Haifa foi expandido e aprofundado. Um porto foi construído em Tel Aviv, o que mais tarde ‘mataria’ o porto de Jaffa”. Além disso, cinquenta novas colônias sionistas foram estabelecidas entre 1936 e 1939, e, no mesmo período, as milícias sionistas, armadas e treinadas pelos britânicos, tornaram-se ainda mais poderosas: “havia 12 mil homens na Haganá em 1937, além de mais 3 mil na Organização Militar Nacional de Jabotinski”. Em 1939, os sionistas contavam com “62 unidades motorizadas, de oito a dez homens cada”. Com autorização britânica, as milícias sionistas começaram a fazer ações de patrulha e operações militares contra os árabes-palestinos, assumindo, na prática, o papel de força repressiva estatal.

Após o final da II Guerra Mundial, os sionistas, motivados pelo “clima internacional extremamente a favor, seguindo a atmosfera psicológica e política causada pelo massacre de Hitler aos judeus”, sentiram-se fortes o suficiente para se voltarem contra os seus parceiros do Mandato Britânico, naquilo que entrou para a história da entidade sionista com o nome de “guerra da independência”, que culminou com a criação artificial do Estado de Israel, em 1948, em mais da metade dos territórios palestinos – o restante seria ocupado nos anos seguintes, durante a chamada Nakba (“catástrofe” em árabe), que resultou em 500 aldeias palestinas destruídas e no exílio forçado de 750 mil palestinos, entre eles a família de Ghassan Kanafani, que imigrou do Acre, situado no norte da Palestina, para Sidon, no sul do Líbano. A história política da Palestina é a matéria-prima dos romances e contos do autor palestino, como é o caso do romance Homens ao sol (São Paulo: Bibliaspa, 2012), que comentaremos, futuramente, em outro artigo.


Claudio Daniel é poeta, tradutor, ensaísta e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Editor da Zunái, Revista de Poesia e Debates, publicou, entre outros livros de poesia, os Cadernos bestiais e Esqueletos do nunca (ambos pela Lumme Editor, 2015).

UM POEMA DE VELIMIR KHLÉBNIKOV



VOZES E CANTOS DA RUA

Tzares, tzares tremiam,
Tzares, tzares tremem!
Para o ô
Para o oco da foice
Patrões,
Para o ô,
Para o oco
Patrões,
Para o ô,
Para o oco
Tzares,
O tzar,
O tzar,
O povo,
O po,
O povo.
Ferreiro,
Malha,
Malhador.
A rou,
A roupa
Rapa
Dos patrões,
Para o ô, para o ô, os tzares
Rapa
E põe
O povo.
Malha,
Malhador,
Os tza
Os tzares
Para o oco,
E que se dani
Fiquem
Na Sibé,
Na Sibéria lá nos mon,
Nos montí,
Tículos brancos de neve.
Patrões, patrões põe
Põe, põe,
Povo,
Põe,
Põe,
Povo,
Põe o tzar branco,
Põe o tzar branco! O tzar branco!
O tzar branco!
- O tzar!
E nós? – E nós olhamos, e nós, nós olhamos!
Tzares, tzares tremem!
Eles tremem, tremem!
O grão-duque
O quê? É agora?
(Olha para o relógio)
Sim, está na hora!

novembro 1921

Tradução: Augusto de Campos e Boris Schnaiderman

POEMAS DE ORIDES FONTELA


AURORA

Rosa, rosas. A primeira cor.
Rosas que os cavalos
esmagam.


DO ECLESIASTES

Há um tempo para
desarmar os presságios

há um tempo para
desamar os frutos

há um tempo para
desviver
o tempo.


REBECA (II)

A moça do cântaro
e
seu
silêncio de água
e de barro.


ESTRELA

A tranquila explosão
fria
fora do tempo e
nos olhos

esplêndida
solitária

no ápice do amor
tremeluzia.


ESFINGE

Não há perguntas. Selvagem
o silêncio cresce, difícil.

HABITAT

O peixe
é a ave
do mar

a ave
o peixe
do ar

e só o
homem
nem peixe nem
ave

não é
daquém
e nem de além
e
nem

o que será
já em nenhum
lugar.


A LOJA (DE RELÓGIOS)

I

O relógio
horologium
a hora
o logos.


II

Os peixes estão
no aquário
o touro está
na balança

e a virgem
parindo
os gêmeos.


III

os relógios estão
na eternidade.


* * *

O branco é campo para o desespero
É quando sem infância persistimos
E nos fita de face a luz sem pausa
Da memória suspensa (tempo em branco).

O branco é luz aberta: existimos
Sem sombra de segredo, sem mais causa
Sem mais infância em nós. É desespero
Nos fixando (puro campo branco).

O branco é branco apenas. Sem refúgio
Insistimos na luz. A luz constrói
A flor em nós (sua rosácea branca).

O branco é campo para a crueldade
Onde nos encontramos: tenso espaço
Na luz vivente (branco apenas).



(FONTELA, Orides. Rosácea. São Paulo: Roswitha Kempf Editores, )

domingo, 23 de agosto de 2015

O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO


Nas duas guerras mundiais, a de 1914-18 e a de 1939-45, causadas pela disputa entre as principais potências capitalistas europeias por mercados, fontes de matérias-primas, vias de transporte e campos cultiváveis, morreram cerca de 94 milhões de pessoas, entre civis e militares (10 milhões na I Guerra Mundial, 84 milhões na II Guerra Mundial). Apenas em Hiroshima e Nagasaki, os Estados Unidos mataram 220 mil pessoas, usando armas de destruição em massa. Nos anos seguintes, a França matou um milhão de pessoas na Guerra da Argélia e os Estados Unidos mataram quatro milhões de coreanos e um milhão de chineses, na Guerra da Coreia, quatro milhões de vietnamitas e dois milhões de cambojanos e laocianos, na Guerra do Vietnã, entre 500 mil e dois milhões de indonésios, após o golpe de estado de Suharto, apoiado pelos EUA, entre 400 mil e um milhão de iraquianos, na Guerra do Golfo, para citarmos apenas alguns números.


P.S. No livro Churchill’s secret war, Madhusree Mukerjee, estudiosa indiana que já pertenceu ao conselho de editores da Scientific American, denunciou o holocausto indiano de 1943, causado pelo desvio de alimentos imposto à região de Bengala por Winston Churchill, na época em que a Índia era ocupada militarmente e colonizada pelos ingleses. O então primeiro-ministro britânico recusou até mesmo a ajuda alimentar oferecida por americanos e canadenses, que teria permitido evitar o genocídio de até 5 milhões de indianos. Viva o "liberalismo democrático" da burguesia!

terça-feira, 18 de agosto de 2015

POEMAS DE HORÁCIO COSTA



 











 DO LIVRO DOS FRACTA


IV

QUETZALCÓATL


Neste 16 de Agosto os pardais derramam
plumas sobre lagartixas. Em meu jardim
anuncia o deus o seu regresso.



XVI

LA STORIA


Um alvéolo sonha a árvore;
o ponto-que-desliza, o aleph.
A identidade é imitação.



XX

THE PLUMED SERPENT


Plumas sobre lagartixas, you’ve said? descem elipses, caminham helicoidais?se fundem no espaçotempo entre azáleas, bananeiras? No jardim, Tabu vira delicioso Totem. Na Coisa, Frisson Nouveau petrifica o observador e observado.


XXXIII

TEBAIDA


paredes em branco, jejum às sextas, Auto-Transportes Silêncio LTDA., carvão de néon, baobás-bonsai, MILS-Minist. da Implant. de Lantej. Subcutân., dunasinvadem o meio da paisagem sobre lagoas forradas de caramujos, luz azul

XXXIV

LOS BIGOTES DE MALLARMÉ

ônix de Tiffany’s, timbre mudo, pesado veludo sobre a representação, fios de prata nas fraldas do rideau, voz de fundo, entr’acte,desce a cortina sobre os lábios, sinais dançantes no panejamento, OM.



XLVII

PONTO EUXINO

negra mina, uma segunda pele veste-me a tua presença, ao bisonte íbis jaguarque sós ocupavam a tela dos sonhos a procissão me leva a teu negrumr,move-se tão lentamente como deito-me no divã, mar negro, mar eterno, vem


(COSTA, Horácio. O livro dos fracta. São Paulo: Iluminuras, 1990) 

CRÍTICA



CRÍTICA LITERÁRIA significa fazer escolhas, seleção de textos e autores, a partir de um modelo de teoria literária e gosto pessoal. O bom crítico, segundo Ezra Pound, é reconhecido não apenas pela qualidade de seus argumentos, mas pela excelência de suas escolhas. Intervir na cena literária, de forma crítica e criativa, implica reconhecer o que há de inovador e consistente nos novos autores, mas também indicar aquilo que não é bem realizado esteticamente (ainda que seja incensado pelo mercado e pela mídia). Fechar os olhos, esconder a cabeça na areia, como avestruz, e adotar o discurso de que "tudo é válido, tudo é lindo, tudo é maravilhoso, vamos ser todos amiguinhos" é uma postura indefensável do ponto de vista ético e intelectual; mais do que tudo, é uma postura covarde.

UTAMARO E SUAS CINCO MULHERES















Kenji Mizoguchi (1898-1956), um dos três grandes diretores de cinema do Japão, ao lado de Kurosawa e Ozu, foi frequentador assíduo das casas de prazer do Bairro das Flores. No filme Utamaro e suas cinco mulheres (1946), Mizoguchi recupera episódios da vida do artista plástico japonês, célebre por suas gravuras de cortesãs. Filme belíssimo do mesmo diretor de "Contos de lua vaga depois da chuva". Ele é, há bastante tempo, um de meus diretores favoritos, pela beleza fotográfica de seus filmes, pela técnica de desenvolvimento da narrativa e por seu pensamento pacifista e feminista, numa época em que o Japão era uma sociedade patriarcal e belicosa.

UM POEMA DE MICHELINY VERUNSCHK



 


















CALIGRAFIA

eu me escrevo
para você
contínua
e repetidamente
me escrevo
para você
em rasura
e ranhura
fissura
tessitura
essa rima
tatuagem
essa música
eu me escrevo
para você.
obsessiva escritura
é o seu nome
em minha pauta
em minha pele
o seu nome
estrela pulsar arquitetura
clara-escura criatura
é o seu nome
letra
signo
lavratura
que eu escrevo
para você.

sábado, 15 de agosto de 2015

A BUSCA DE UM DEUS QUE SAIBA DANÇAR





Chiu Yi Chih realiza um trabalho poético que tem como ponto de partida o conceito de imagem poética formulado por Paul Reverdy – a aproximação inusitada de referências que pertencem a realidades diferentes (conceito antecipado por Lautréamont, nos Cantos de Maldoror, que imagina “o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação”, formulação que descende das metáforas de agudeza da poética barroca). No livro de estreia de Chiu, Naufrágios, publicado em 2011 pela editora Multifoco, vamos encontrar uma rica variedade de imagens bizarras, tais como: “mãos de lânguidas grutas”, “línguas em forma de ovo”, “mar-avenida-mulher”, “peixe triângulo losango”. A imagem poética, recurso frequente na poesia simbolista e surrealista, busca aproximar os planos do sonho, da imaginação e da realidade cotidiana, estimular a experiência sensorial, pela junção de elementos sonoros, visuais, táteis em imprevistas sinestesias e – não menos importante – fazer da poesia uma jornada de liberdade. A alquimia verbal de Chiu viola, deliberadamente, a ordem rotineira das coisas, criando paradoxos como “O triângulo possui lados incalculáveis”, ações impossíveis como as pedras que “lambem espirais de verde osso”, definições como “cor é quase um feixe de barbatanas sem fios” ou “o mar não é a esfera de Parmênides”, imagens monstruosas de seres híbridos, como “homem de brânquias”, embora o poeta também seja capaz de uma lente quase realista, como no poema Macau: “Os cais de Macau / são / lama podre / faiscando / coágulos: a vida / arrastada entre / osso / e poças / a madrugada que cai / os olhos / da lua / exilados / no peito”. 

O universo mitológico é uma constante em sua poesia, onde encontramos referências greco-romanas – Orfeu, Ulisses, Cronos – ao lado de divindades do candomblé, do budismo, do xamanismo. Claro: não se trata de poesia mística, no sentido doutrinário, mas de uma visão de mundo baseada no retorno à natureza, à experiência sensorial, lúdica, do sagrado – cuja expressão máxima são as danças iniciáticas dos rituais antigos, que Chiu retoma em suas performances: a poesia se corporifica, a palavra ganha expressão de voz, rosto e corpo em movimento (nesse sentido, podemos fazer uma aproximação entre a poesia-corpo de Chiu e as intervenções no palco de Marcelo Ariel, poeta também fascinado pelo hermetismo). Em sua poesia escrita, Chiu enfatiza o movimento na espacialização das linhas na página, como acontece na composição Pólipo, dedicada a Roberto Piva (uma de suas mais fortes referências literárias).

O uso de palavras e frases em caixa alta, o uso do itálico, de palavras ou sílabas isoladas na linha, entre outros recursos – que remontam ao Lance de dados de Mallarmé – atribuem timbre e ritmo às palavras, como se fossem notas de uma partitura musical – além do aspecto plástico do poema, que ganha uma ênfase, uma retórica, própria do ideograma e das primeiras formas de escrita caligráfica. A própria leitura torna-se operação lúdica, como acontece em Rezando com José Agripino de Paula, poema escrito em homenagem ao autor de Panamérica, em que as linhas podem ser lidas na horizontal ou na vertical, ampliando a construção de significados. A formação do autor, mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo, sugere possível viés filosofante em seus poemas, que não raro citam Nietzsche, Heráclito, Parmênides, Deleuze – porém, não se trata de logopeia, a “dança do intelecto entre as palavras”, conforme Ezra Pound, nem de mera exibição de citações cultas: Chiu não busca encontrar ou defender uma suposta “verdade”, e sim celebrar a experiência do estar no mundo: o seu deus, como aquele de Assim falava Zaratustra, é um deus que sabe dançar.     

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A TRAIÇÃO DO P$OL


Durante toda a crise política vivida pelo país nos últimos meses, que quase resultou em um golpe de estado, o "Partido Socialismo e Liberdade" (P$OL) manteve-se em cima do muro. Não apoiou diretamente a derrubada de Dilma, posição assumida, sem pudores, pelo P$TU, não deu apoio crítico ao mandato legítimo da presidente, como fez Guilherme Boulos, não participou dos encontros de movimentos sociais contra o golpe e em defesa da democracia, nada. Em seu site, aliás há um bom tempo desatualizado, ainda defende a pseudo-esquerda do Syriza grego como um "modelo" para o Brasil. Com essa postura, o P$OL não pode mais ser levado a sério como partido de "esquerda" (?), o que nunca foi. É uma organização pequeno-burguesa que, pela profunda cegueira e sectarismo (chegou a confundir um golpe pró-nazista na Ucrânia com uma "revolução popular"!), caminha para a absoluta irrelevância. É nas crises profundas que conhecemos as pessoas e organizações. P$OL é um partido COVARDE, e nunca será absolvido por seu oportunismo e covardia.

POEMAS DE NELSON ASCHER



BASHÔ EM PARIS

p/ Rose

Manhã de gala:
flores, imóveis
damas desnudas,
desfilam cores.

Midi le juste;
suicida, o sol,
no mar de suor,
se põe a pino.

Tarde-alfarrábio:
folhas em verde,
como as impressas,
amarelecem.

Que noite albina!
A torre, embora
de ferro, quase
treme de frio.


VOZ

Ninguém jamais
regeu tão extra-
(pois sem rivais)
vagante orquestra

como a que destra-
vando os umbrais
com chave-mestra
 cordas vocais –

propõe que, além da
canção, com elas,
a mente aprenda

(mais do que vê-las
sem qualquer venda)
a ouvir estrelas.


MÁRIO DE SÁ CARNEIRO

Caído em si numa ironia
do contragosto feito pele,
mas acossado pela mera
constatação do que existia
quase de todo fora dele,
quem era, enfim, senão quimera
de si, perdido em cada veia
de sua própria carne alheia?


ONDE HÁ FUMAÇA

Dan steigt ihr als Rauch in die Luft

(Paul Celan)


Fumaça alguma implica
memória, já que as coisas
se perdem na fumaça
que, assim, tampouco pode

tornar-se um monumento,
pois sendo transitória
nem mesmo homenageia
a transitoriedade.

Fumaça enquanto tinta,
embora branca (um branco
mais palidez de horror
que alvura de inocência),

serve talvez à escrita;
porém, não há destreza
que inscreva na fumaça,
como na pedra, um nome.

Quando a fumaça, quase
vegetativa, irrompe e,
traindo o genealógico,
assume aspecto arbóreo,

não cabe perguntar
acerca (onde há fumaça,
há cinzas) das raízes
mais fundas da fumaça.


(Poemas do livro O sonho da razão. São Paulo: ed. 34, 1993)

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

POEMAS DE ANTONIO RISÉRIO















LEMINSKIANA

Querido Enigma:
estou bêbado.

Vou, como se diz,
pisando nas asas.

Paro numa estrela
e sorteio o mar.

Mas estranho
– e muito –
o meu e o teu

linjaguar.


ARTE POÉTICA

na serra da desordem
no piracambu tapiri
em cada igarapé do pindaré
em cada igarapé do gurupi
existe uma palavra
uma palavra nova para mim

(Do livro Fetiche. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1996.)


PARA O MAR

1

Países intraduzíveis
em seus caprichos
de treva e luz.

Pai de feitiços
em praias de coral.
Mãe de mistérios
de inúmeras cores negras.

Cama de deusas,
mina de deuses,
sob estrelas.

3

Águas marinhas
sobem acima
do nível do mar.

Sambaquis submersos
na memória
das marés.

Barco sem saída
e eu aqui
nesse convés.


FIM DE CASO 3

onde quer
que você        
me esqueça

que eu
apareça
e cresça

fantasia
espessa

doendo
densa

na sua
cabeça.


ORIKI P/ OIÁ-IANSÃ

Leopardo no ar alto
fuzilando a treva.
Ira e brisa pelos campos.
Corisco na cara da escuridão.

Senhora que incendeia
a casa da mentira
Senhora sem medo algum
Senhora que relampeia
entre os tambores do orum.


STRASSENKINDER

Crianças que miram espelhos
e giram as caras cansadas
onde narciso não é conselho
nem comboio acha a estrada.

Criança de poucos pentelhos
de rubras roupas rasgadas
entre guinchos gosmas e relhos
orgasmos de putos no ralo.

Crianças de coxas vermelhas
no beco das bocas usadas
moeda e moenda dos grelos
nas fodas das doidas danadas.

Crianças que masturbam velhos
e chupam xotas grisalhas
lambendo o sangue dos medos
nos dedos grudando de gala.

*

Sob a navalha da ira
o sol se descola sagrado
que a vida por mais que me fira
não me verá conformado.

(Do livro Brasibraseiro. São Paulo: Landy, 2004)

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

LIVRO DOS ORIKIS



Dia 22 de agosto (sábado), a partir das 19h, no bar Canto Madalena (rua Medeiros Albuquerque, 471, próxima ao metrô Vila Madalena), haverá o lançamento de meu novo livro de poesia, publicado pela Patuá: o LIVRO DOS ORIKIS, anotem na agenda! Abaixo, um dos poemas do livro:


OXALÁ

Oxalufon —
aquele-que-caminha-
na-areia-
mestre dos corcundas
Obatalá —
aquele-que-come-
caracol-
forte como touro branco
Onírinjà —
aquele-que-nunca-
se-esquece-
faz o mentiroso
ficar surdo.
Ọbaníjìta —
aquele-que-nunca-
se-esquece-
faz o mentiroso
ficar mudo.
Olufón —
aquele-que-grita-
quando-acorda-
livra a filha
da armadilha.
Òòsàálá —
aquele-que-come-
rato-e-peixe
faz a moça estéril
embarrigar.
Olúorogbo —
aquele-que-fulmina-
fascista-
faz tucano virar
farelo.
Orixanlá —
aquele-que-se-veste-
de-branco
aquele-que-canta-
vestido-de branco
aquele-que-dança-
vestido-de-branco
aquele-que-é-dono-
da-xota-de-Iemanjá
— Òrìşáko!


Epa Bàbá!

DOIS POEMAS DE JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES



ÀS VOLTAS

1.

por dentro um deserto
se poderia pensar
que com o tempo
para fora se alastrasse

(tenaz das imagens
sons em entrechoque
insinuações e recuos
às voltas com a rarefação)

e se movimento que não há
acabasse por operar
dos ardis do horizonte
até mesmo sua linha


2.

com toda a aspereza
de uma operação
às voltas com o que
sequer aventa um corpo

nem todo o peso
do mundo ou da falta
repovoaria regiões
(ora talvez sem

impossíveis relatos)
entre devolutas e infensas
ante o meio-dia
de um raciocínio e corrosões


DOS ESTUDOS DE OBJETOS E VER

1.

tão brutal a matéria
ao excurso do olhar
que a impossibilidade
de qualquer imagem

pois o adensamento
(cores e formas se desfazem)
que sobre o suporte
obstrui por acúmulo


2.

a expansão da contextura
na superfície que
(sequer hipótese de simulacro)
concreta se amalgama

ainda se acrescenta
na espessura com que
a crueza da matéria
reocupa o espaço


3.

nem é que pela medida
um espaço se define
antes o peso da intensidade
com que severa a cor

pode impor-se como massa
e ora grave e sobretons
se elabora um corpo
que ocupa seu espaço



4.

se os planos se distinguem
pela superposição de recortes
que irregulares compartilham
fragmentos uns dos outros

tal diretriz para medida
ou controle de uma área
avança pela imaginação
se arredores se desvãos


5.

a matéria como objeto
de dimensão do olhar
quando no espaço
não só uma ordenação

nem frágil descompasso
mas todo um percurso
linhas volumes cálculo
talvez resumo de paisagem


(Poemas do livro Práticas do extravio. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003)

terça-feira, 11 de agosto de 2015

NÃO VAI TER GOLPE!


Por que os golpistas recuaram em sua estratégia de derrubar a presidenta Dilma? Por vários motivos: 1) falta de apoio das Forças Armadas, que não desejam aventurar-se numa guerra civil por tempo indeterminado e consequências imprevisíveis; 2) falta de apoio dos governadores e de outras forças políticas; 3) falta de apoio dos grandes industriais, que temem uma crise institucional generalizada, com a volta da hiperinflação e da retração econômica; 4) falta de unidade interna no maior partido golpista, o PSDB (leia-se: a disputa entre Aécio NeveR e Geraldo Alckmin, sendo este último o candidato favorito da burguesia para as eleições de 2018); 5) falta de apoio do PMDB ao golpe -- no caso de um impeachment, Dilma e também Michel Temer seriam impugnados, e o único favorecido neste caso seria Aécio; 5) a resistência dos movimentos sociais à onda golpista -- vide a calorosa recepção a Dilma no Maranhão; 6) os interesses econômicos de nossos parceiros internacionais, em especial os BRICs, sobretudo a China, que investirá 50 bilhões no Brasil. A virada editorial da FALHA e da Rede Goebbels, a apenas dez dias da marcha fascista marcada para o dia 16, tem o propósito claro de frear o movimento golpista. Claro: o recuo do golpe não significa que a mídia, o judiciário e setores tucanos infiltrados no aparelho de estado deixarão de atacar diariamente Dilma, Lula e o PT, mas, agora, a estratégia é outra: antecipar a propaganda eleitoral de 2018 para tentar desgastar ao máximo a esquerda e fortalecer a candidatura de Geraldo Alckmin em 2018.

EM TEMPO: mesmo que tenha sido afastado o risco do golpe de estado, a direita permanecerá agindo contra a soberania nacional, via mídia, judiciário, polícia federal e demotucanos. Privatização da Petrobrás, fim do regime de partilha para a exploração do pré-sal (projeto do canalha José Serra), desmantelamento de nosso programa nuclear, são alguns dos objetivos dos vende-pátria. A luta política continuará e os movimentos sociais não podem abandonar as ruas!

AUGUSTO DE CAMPOS: “SEM MÉDIA, SEM MÍDIA, SEM MEDO”


















Claudio Daniel

Augusto de Campos – o mais jovem dos poetas brasileiros, pela curiosidade em conhecer o que há de novo na poesia, na vida, no mundo – conversa com a CULT a respeito de seu mais recente livro de poemas, Outro, publicado pela editora Perspectiva, que em 2015 comemora 50 anos de existência. Como não poderia deixar de ser, um dos temas centrais da conversa é a relação entre a poesia e a tecnologia – há quase vinte anos, o autor pesquisa as possibilidades de criação poética com os novos recursos eletrônicos, que permitem realizar plenamente o sonho da Poesia Concreta de unir palavra, imagem, som e movimento. Ganhador do Prêmio Pablo Neruda, concedido pelo Conselho Nacional de Cultura e Artes do Chile, e reconhecido no cenário internacional, sendo estudado em universidades europeias e norte-americanas, Augusto de Campos ainda é pouco compreendido por uma parcela de nossa crítica literária, incapaz de assimilar a radicalidade da informação estética nova, que desafia modelos teóricos mumificados ou em adiantado estado de decomposição. Sensível aos acontecimentos políticos do país, o poeta, mais uma vez, “desafina o coro dos contentes”, repudiando o discurso de ódio e o clima de golpe instaurado no país pela grande imprensa. “Sem média, sem mídia, sem medo” é a palavra-de-ordem do poeta, na contramão dos que preferem a crise e o caos.

Você publicou, recentemente, uma nova coletânea de poemas, Outro, que reúne composições visuais elaboradas com recursos das mídias eletrônicas. Como foi o processo de criação do livro? Você planeja previamente os temas e recursos estéticos que serão utilizados? Ou o livro é resultado do trabalho de criação de cada poema?

O livro foi planejado a partir do que produzi ao longo de doze anos, desde a última reunião de poemas inéditos. Com Despoesia (1994) e Não (2003), forma uma trilogia. Todos foram inteiramente produzidos em meu computador e assinalam o meu ingresso, sem volta, no mundo da linguagem digital.

O título do livro faz referência a um termo musical recorrente nos textos que acompanham discos norte-americanos, com o sentido de “bônus”, ou “extra”. Qual é o paralelo que você faz entre esse termo, pleno de significados, e o seu trabalho poético?

Eu desconhecia a expressão “outro”, em inglês. Depois, me dei conta que era o contrário de “intro” (introdução) e achei interessante. Há uma certa autoironia no emprego que faço dela. De fato, o livro é um “bônus”, um extra, ou “pós”, provavelmente o meu último livro de poemas. Ao mesmo tempo, sempre impliquei com o palavrão “outrossim” e o “outro” inglês me lembrou o “outronão” que criei há tempos e que dá título ao prefácio. Tem também a ver com a discussão literária em torno da apropriação poética, que se vem acentuando nos Estados Unidos sob a designação de poesia “conceitual”, ou “unoriginal language”. Entre nós, há precedentes nos textos de Oswald, em Pau Brasil, onde ele apresenta, como poemas, trechos da carta de Pero Vaz Caminha e dos nossos primeiros cronistas. Venho praticando esse tipo de leitura crítico-poética, pelo menos desde os anos dos anos 70, com os “profilogramas” e as “intraduções”, agora acrescidos das “outraduções”, em que apenas reorganizo graficamente certos textos alheios.

Walter Benjamin, em texto publicado em 1926, imaginava que, no futuro, a escrita e o próprio objeto livro seriam radicalmente transformados. Estamos próximos da realização dessa profecia, pelo diálogo da poesia com as artes visuais e a tecnologia?

Sem dúvida. Não direi que é a “mão única”, porque a poesia tem muitos caminhos e não pode nem deve congelar-se num só. O único caminho que a poesia rejeita é o do meio. Mas, Benjamin, inspirado no poema Un Coup de Dés de Mallarmé, anteviu a crescente incidência da linguagem icônica sobre a verbal. No universo digital, as imagens se interpenetram cada vez mais com as palavras. O textograma se instagrama.  E em vez de se deixar atropelar pelas imagens, é mais interessante trazê-las para o mundo da poesia, que, segundo Pound, está mais próxima da pintura e da música do que da prosa. A tecnologia nos fornece as ferramentas para essa inflexão icônica no discurso. É pegar ou largar. A poesia já não poder ser a mesma.

Você cita, com frequência, uma obra de Timothy Leary, Chaos and cyberculture, publicado em 1994. Em sua opinião, quais ideias apresentadas pelo autor norte-americano são pertinentes para a discussão da poesia e da cultura hoje?

As idéias visionárias de Buckminster Fuller, McLuhan, John Cage, assim como as do último Leary, sempre foram desprezadas pelo cânone acadêmico, porque não vieram envelopadas no protocolo universitário, seus “apuds” e notúnculas. Mas eles têm um traço em comum. Vivenciaram a tecnologia antes dos outros. Aqui, Oswald foi o nosso profeta com o seu “bárbaro tecnizado”. Pós-wald, a poesia concreta. Nos últimos anos, Timothy trocou o LSD pelo PC, i. é, o computador. Propôs uma difração semântica no conceito da cibernética, palavra derivada do grego “kubernetes”, piloto, de que se  originou o verbo “gubernare” em latim.  Desligando-a da ideia de governo, associou-a à de navegante. Percebeu a questão da ingovernabilidade do ciberespaço, que ainda prevalece, apesar das macrotentativas “bigbrotherianas” de controle, e deu toques relevantes sobre a revolução digital da linguagem artística. “Haicais eletrônicos.” “Trailers melhores do que filmes.”

Seu livro de estreia, O rei menos o reino, publicado em 1951, com recursos próprios, pela fictícia “Edições Maldoror”, traz ainda uma epígrafe de Lautréamont. Este é um aspecto pouco abordado em sua poesia: como foi o teu contato com a obra desse autor francês, considerado o precursor do Surrealismo, movimento antípoda da Poesia Concreta?

Não estou certo de que o Surrealismo seja inteiramente oposto à Poesia Concreta. A Seção de Estudos Regionais do Departamento Administrativo do Partido Surrealista  Brasileiro é que declarou guerra aos “concretistas”… Não faz sentido pregar o surrealismo, quando virou substantivo comum, vivenciado cotidianamente. Os mais perduráveis são os  “dessurrealistas”, isto é, os dissidentes, de Artaud a Ghérasim Luca. O problema dos ortodoxos é que eles não enfrentaram o problema estrutural do discurso poético. O Surrealismo deu a sua contribuição. Aumentou o espectro das associações da imagem, mas se ateve às convenções retóricas lógico-discursivas, optou pelas metáforas de significados e não de significantes, e se afastou das matrizes dadaístas inflando-se de “conteúdos” psicologizantes. Foi superado pelos vocabulemas radicais de Joyce, Gertrude Stein e Cummings e pelas estruturas ideogrâmicas  de Pound. A ruptura dadá foi mais consequente e alimentou tanto a antiarte de Duchamp quanto o acaso indeterminado de John Cage, que repaginaram a história da vanguardas, na segunda metade do século passado, como polo dialético das utopias construtivistas. Li os Cantos de Maldoror aos 20 anos, e meu primeiro livro foi muito influenciado pelo “delírio lúcido” da obra de Isidore Ducasse. Este, que inscreveu nos seus Cantos uma grande ode “às matemáticas severas” e proclamou em suas Poésies que “a poesia é a geometria por excelência”, ultrapassa de muito a leitura unilateral bretoniana, que chegou a incluir Mallarmé,  mas não se apercebeu da revolução do Lance de Dados e diluiu a ruptura do lance de dadá.

Como crítico musical, além de artigos publicados sobre a música erudita contemporânea, reunidos no volume Música de invenção, você publicou textos sobre João Gilberto e Caetano Veloso, em Balanço da bossa & outras bossas, e tem parcerias com músicos como Arnaldo Antunes, Cid Campos, Arrigo Barnabé. Você tem acompanhado a música brasileira atual? O que tem chamado a sua atenção na MPB?

Preocupei-me mais com a MPB quando de suas grandes transformações, a Bossa Nova e a Tropicália. Esses movimentos, então muito contestados , hoje são vitoriosos e só algumas múmias carregadas pelos Flips da vida ousam renegá-los. Ainda trabalho com Cid nas experiências da “poemúsica”, para contrastar a banalização das letras de consumo. Com ele planejo um CD com as suas composições para os balés O Inferno de Wall Street e Profetas em Movimento. Volto a dedicar-me à música contemporânea num segundo tomo da Música de Invenção já entregue à editora. Há um enorme vácuo cultural em nosso país com respeito à música erudita moderna, a mais segregada das artes entre nós. São cem anos de silêncio, que podem ser ilustrados pela última coletânea de CDs de música clássica servida em bancas de jornais. Pulou o Pierrô Lunar, de Schoenberg, que é de 1912, e parou na Sagração da Primavera, de Stravinski, que é de 1913. No Brasil nos dão 5% do repertório moderno contra uma infinidade de redundãncias clássico-românticas ou neo-ambas. Musicalmente, vivemos no século XIX.

O Conselho Nacional de Cultura e Artes do Chile concedeu a você, neste ano, o Prêmio Pablo Neruda. O que esta premiação representa para o reconhecimento de sua poesia?

Recebi o prêmio com muita surpresa, porque não tenho relação alguma pessoal com os intelectuais chilenos. Dos vivos, Nicanor Parra, que faz  em breve 101 anos, é o poeta com quem tenho mais afinidade. Apesar de ver com muita desconfiança a atribuição de prêmios, tão vulneráveis a interesses grupais ou ao conservadorismo de confrarias acadêmicas, não pude deixar de sensibilizar-me com esse prêmio, dado pela primeira vez a um brasileiro e justificado pelo que o júri chamou de  “transversalidade” da minha poesia, o que demonstra, independente do juízo de mérito, conhecimento pleno de meus objetivos poéticos. Aqui, ao longo de mais de 60 anos, só recebi um prêmio pela minha poesia, o da Biblioteca Nacional, pela publicação do livro Não, em 2003. Outros me foram concedidos, sempre por traduções, jamais pela poesia. Recebi a premiação chilena com humildade, mas com bons fluidos, quase como um desagravo ao sobrevivente que sou nos meus 84 anos.  Vindo de fora. O que é mais doce.

O Brasil vive hoje uma assustadora onda de discursos e crimes de ódio, que trazem à tona o que há de mais atrasado na sociedade – racismo, misoginia, homofobia, anticomunismo, intolerância religiosa. Em sua opinião, o que está acontecendo no país?

Um passo para trás, instigado por não sei que interesses da grande mídia. A população é induzida por ela a manter-se num clima de permanente desconfiança e descrédito. Enfatizam-se somente os defeitos, jamais as qualidades ou sucessos do governo. Pouca atenção deu a mídia ao fato de que o Brasil conseguiu reduzir a pobreza extrema em 82% entre 2002 e 2013 e saiu do mapa mundial da fome, segundo atestado internacional da FAO.
Como você avalia a situação política brasileira, com a ameaça de impeachment da presidente Dilma? Há riscos para a democracia?
Sim, há riscos. A insensatez da oposição e a sua ânsia delirante pelo poder  foram levados ao  limite. Não estão interessados nem na democracia nem na melhoria do país. Incapazes de aceitar a derrota nas urnas, querem a cabeça da presidente. É um dos momentos mais deploráveis da política brasileira. Tudo o que a oposição logrou foi associar-se às correntes regressivas de um dos congressos mais reacionários que o Brasil já teve. Exploram a ignorância da população fazendo da presidente uma espécie de bode expiatório primal, como se ela não fosse vítima e refém de um sistema político que a oposição não faz nenhum esforço para aperfeiçoar. O ódio é grande. Uma jornalista de encomenda, percebendo que a presidente emagrecera ao fazer uma dieta, arreganhou-se: “Vamos ver até quando isso vai durar…” Torcem até contra a sua saúde… Perderam a compostura e a cabeça.

O que podem fazer os poetas e intelectuais do lado de fora do “ovo da serpente”?

Os poetas raramente são ouvidos. Preferem ouvir futebolistas, cantores populares. apresentadores da TV. Mas se conseguirmos ser ouvidos, cabe-nos denunciar as falsidades da maioria dos políticos brasileiros, a sua hipocrisia e a sua desumanidade. Protestar contra o retrocesso do congresso. Defender a democracia contra a grande “pedalada” política que é o pretenso impedimento da presidente eleita. “Sem média, sem mídia, sem medo.” Golpe nunca mais.

(Entrevista publicada na edição de agosto da revista CULT.)